Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

26 de out. de 2012

A timidez da Autoridade é tão prejudicial quanto o abuso de poder

         A intolerância é das infrações mais graves que alguém pode cometer. Ela se dissipa silenciosamente, enraizando-se nos mais diversos setores, corroendo o espírito de fraternidade que deve existir entre seres humanos, contaminando os influenciáveis, fomentando o ódio gratuito e fazendo milhares de vítimas mundo afora.
         Trabalho em Penápolis(SP) há apenas três anos e meio, mas penso que nunca tinha havido manifestação explícita de intolerância como a protagonizada pelo Sr. Fernando Costa Fernandes por meio do texto “Casamento Homoafetivo”, publicado nos jornais “Interior” e “Diário de Penápolis” de 18/10/2012.
         Diante da gravidade das publicações, já remeti cópias delas à Secretaria Nacional de Direitos Humanos, à Secretaria de Justiça e Cidadania e São Paulo, ao egrégio Supremo Tribunal Federal e ao egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, para conhecimento e eventuais providências.
         Não discuto decisões que tomo no exercício da judicatura. Para contrariá-las existem recursos previstos em lei. Anoto apenas que não posso fundamentar nada com base na Bíblia ou em qualquer outro texto religioso, mas apenas na Constituição, na legislação infraconstitucional e também nos tratados e convenções internacionais de que o Brasil é signatário.
         Também não pretendo convencer ninguém da adequação de se legalizar o casamento homoafetivo, muito menos o Sr. Fernando. Não quero ficar dando “murro em ponta de faca”. Os comentários que seguem terão o condão apenas de comprovar que não houve mera regular manifestação do pensamento.
         Causou-me espanto não o posicionamento contrário ao casamento homoafetivo, que eu receberia com o respeito se tivesse sido equilibradamente exposto, mas a agressividade do pronunciamento e o ódio que o articulista, que sequer conheço, dirigiu à minha pessoa e à instituição “Poder Judiciário”, do qual, com muita honra, faço parte.
         Meu currículo já é bem conhecido e não tenho necessidade de fazer autopromoção. Também não preciso ficar afirmando que tenho orientação sexual heteroafetiva porque isso não interfere nas minhas convicções e ninguém tem nada a ver com isso.
         A publicação do texto, no meu entender, materializou infrações penais contra a minha honra, pelo que representei ao Ministério Público, no mesmo dia, por providências, bem como estou cogitando outras medidas legais.
         O representado tentou dar roupagem de mera crítica embasada no direito de expressão ao discorrer sobre duas decisões por meio das quais, na condição de Juiz Corregedor do Cartório de Registro Civil de Luiziânia(SP), autorizei conversões de uniões estáveis homoafetivas em casamentos. Ocorre que não se contentou em debater idéias. Tanto isso é verdade que, na parte final, já previu que poderia ser acionado judicialmente, evidenciando seu dolo e admitindo seus excessos e a ilegalidade da sua iniciativa.
         Até tentou minimizar a gravidade da sua tese extremista, reconhecendo que as minhas decisões tinham amparo legal, muito embora tivesse dito que delas decorreriam “maléficos e catastróficos riscos danosos à sociedade” (é inegável o estilo “bate, depois alisa”, do artigo).
         Afrontou a instituição “Poder Judiciário” (resvalando, inclusive, no Ministério Público, ao citar o Promotor de Justiça Fernando Cesar Burghetti, que opinou pelos deferimentos dos casamentos), cuja intervenção tem sido cada vez mais essencial à preservação do regime democrático e à fruição dos direitos constitucionais por parte dos hipossuficientes e discriminados.
         Em dado momento, o articulista tachou todos os Srs. Ministros da mais alta Corte de Justiça do País, assim como este subscritor, de covardes, imorais e antiéticos. Imputou-nos falta de “coragem jurídica, civil e moral de confrontar seguimentos minoritários”. Sustentou que aquiescemos “à imoralidade em nome da legalidade (...) visando angariar a simpatia das pessoas ligadas aos movimentos GLTB’s”. Afirmou que aderimos à “mentalidade pós-cristã, que tem solapado a nossa sociedade e amaldiçoado violentamente as famílias, as crenças, a moral cristã, as instituições sociais, as organizações religiosas e a sociedade brasileira”.
         Veja-se que não se restringiu aos conteúdos das decisões, mas ofendeu as pessoas dos julgadores, dentre eles, este subscritor, que foi escrachado publicamente, classificado como Magistrado incapaz de decidir com imparcialidade, despreparado, imoral, e que, no entender do articulista, ao julgar, procura agradar um ou outro, o que não posso admitir e o que deverá ser severamente reprimido.
         A falta de ponderação do representado e a falta de tecnicidade do texto saltaram aos olhos a partir do momento em que, ao comentar argumento utilizado pelo eminente Ministro Ayres Brito, do egrégio Supremo Tribunal Federal, no sentido de que é vedada qualquer discriminação em função da preferência sexual, o articulista o classificou como uma “distorção aviltante, catastrófica e satanizada na interpretação do preceito legal” [que no caso foi o art. 3º da Constituição Federal].
         Ao classificar a decisão do Supremo como “famigerada e diabólica aberração, que na verdade, serve de escudo para a poltronaria do egrégio colegiado do STF, bem como dos demais magistrados, que se broquelam no efeito vinculante”, o representado novamente depreciou este Magistrado, dando a entender que não se preocupou em promover a detida apreciação de cada caso e se limitou a se alicerçar na decisão da última instância, que, em verdade, muito embora a informação tenha sido omitida, apenas reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo e lhe outorgou os mesmos efeitos da união estável regida pela Lei 9.278/1996, não tendo tratado, especificamente, nem de casamento homoafetivo direto, nem da conversão de união homoafetiva em casamento (confira-se a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277, decidida aos 5/5/2011, por unanimidade, com eficácia “erga omnes” e efeito vinculante para que todos os Magistrados decidam no mesmo sentido).
         O representado até chegou a dizer, contraditoriamente, que não é contra os homossexuais (?!), muito embora tivesse externado verdadeira fúria ao afirmar que eles “cometem pecado, torpeza e perversão”, e que jamais os admitiria “como membros da Igreja Evangélica Denominada Primeira Batista em Penápolis”, o que é remediável, na medida em que outras igrejas e crenças se dispõem a destinar respeito, conforto e ensinamento verdadeiro àqueles seres humanos.
         Em dado momento, o articulista tornou a evidenciar a sua repugnância às pessoas dos eminentes Ministros e deste profissional, recomendando que consultassem a Bíblia e novamente os descrevendo como desprovidos de equidade, parciais e incompetentes, que decidem com base na “ética de situação, (...) no existencialismo orientado pelo que se imagina ser politicamente correto”. Generalizou nossa forma de trabalhar e fomos praticamente endemoninhados.
         Ainda não satisfeito, exteriorizou todo o seu ódio com deboche, afirmando que os Magistrados do STF e este julgador lançaram “maldição sobre as futuras gerações de Penápolis” e, expondo, no seu dizer, como um “profeta da desgraça”, que Penápolis(SP) passaria de “Princesa da Noroeste” a “drag queen”.
         O seu apelo final reforçou a intenção de incitar os leitores à homofobia e de jogar a comunidade religiosa contra este Juiz de Direito, e escancarou a pessoalidade das ofensas e o distanciamento do texto da mera “opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica” protegida pelo ordenamento (art. 142, inc. II, do Código Penal): “creio e penso que o homossexualismo e a homossexualidade são pecados abomináveis aos olhos de Deus, assim como creio que Deus (...) tem poder para libertar e curar os homossexuais desta escravidão espíritoexistencial que flagela o ser e que lança terrível, catastrófica e abominável maldição sobre a sociedade e às futuras gerações, ao contrário do que argumenta Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira”.
         Está claro, com a devida vênia, que o representado extrapolou o direito de manifestação do pensamento, desrespeitando autoridade judiciária em razão do exercício da função, ofendendo-lhe a honra sem qualquer necessidade, já que seu ponto de vista poderia ter sido exposto de outra maneira, com educação, urbanidade, respeito, enfim, com observância dos ensinamentos morais, éticos e religiosos que ele alegou que costuma observar e divulgar, mas que, verdadeiramente, foram atropelados.
         Nem de longe detectei a “sensatez” que o colunista Gilson Ramos, Diretor do Jornal Interior, fez questão de “aplaudir” por meio de nota inserida na mesma página do artigo (o que não costuma ser usual, diga-se de passagem, uma vez que comentaristas normalmente se reportam a publicações de edições anteriores e não sobre as constantes na mesma edição). Falo do mesmo Gilson que, na edição de 23/10/2012 do jornal “Interior”, solicitou que posicionamentos sobre o assunto que, no seu dizer, “está rendendo”, “sejam sempre respeitosos”...
         Em suma: este subscritor passou de julgador a réu. A sua forma de atuar, a sua imparcialidade, a sua ética, a sua lisura no proceder, o seu profissionalismo e toda a sua experiência de 15 anos de atividade jurídica foram lançados na lata de lixo pelo Sr. Fernando. As suas qualidades pessoais e profissionais foram violenta e propositalmente atingidas por quem fez questão de agredir, de uma só vez, num só dia, por meio de dois dos três jornais locais, fazendo publicar texto longo que, aliás, se distanciou dos padrões usuais de espaço destinados à participação de leitores (e que justificou resposta na mesma medida).
         Isso posto, adiantando que não alimentarei polêmica, faço questão apenas de informar a quem se indignou (sou grato pelo apoio que já recebi de muitos), que solicitei a deflagração de persecução penal tendente a apurar crimes contra a minha honra, nunca antes aviltada sem motivo algum e com tamanha brutalidade.
         Era o que tinha a fazer. Eu não poderia silenciar depois de ter me tornado, na condição de Juiz de Direito, mais uma vítima da intolerância contra a qual sempre lutarei, custe o que custar, doa a quem doer.
         Afinal de contas, tal como sustentava o saudoso Hely Lopes Meirelles: “A timidez da autoridade é tão prejudicial quanto o abuso do poder. Ambos são deficiência do administrador, que sempre redundam em prejuízo para a administração. O tímido falha, no administrar os negócios públicos, por lhe falecer fortaleza de espírito para obrar com firmeza e justiça nas decisões que contrariem os interesses particulares; o prepotente não tem moderação para usar do poder nos justos limites que a lei lhe confere. Um peca por omissão; outro, por demasia no exercício do poder”.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito da 2ª Vara de Penápolis(SP)
(publicado no jornal Regional Penápolis de 25/10/2012)

21 de out. de 2012

E daí que ouço Racionais?

E daí que ouço Racionais?
            Em matéria de música, escuto de tudo um pouco. Ora gosto da melodia, ora me interesso pela letra, ora me divirto com as duas. A depender da ocasião, elejo um ritmo. A batida forte às vezes me distrai, faz a diferença. Afinal, meu ofício requer silêncio o dia todo.
            Tem quem seja mais exigente, selecione alguns gêneros musicais e ignore outros, porém, os respeite. E tem gente que é radical: não gosta de certas músicas e não admite que ninguém goste. Tem prazer em criticar, parecendo se incomodar com a alegria alheia, talvez, pela frustração de não se satisfazer com suas próprias escolhas (quiçá, de não se divertir com nada...).
            O fato é que o desrespeito às preferências alheias é corriqueiro, mas precisamos superá-lo, sermos nós mesmos, independentemente de padrões que a sociedade tente nos impor. A assertiva não tem a ver apenas com gosto musical.
           Foi pensando nisso que decidi escrever para dizer que escuto Racionais MC’s. Nossa, mas Juiz não tem de ouvir apenas MPB, jazz ou clássica? É preciso desmistificar mais esse equívoco. Tempos atrás escrevi sobre tatuagens e a repercussão, em geral, foi muito positiva...
            Mas tem alguma coisa demais eu assumir que também ouço rap? O tema merecia um artigo? Sim, pois para a nossa sociedade cheia de “regrinhas de conduta” e estereótipos, só pode “curtir” esse “som” o morador da periferia ou o bandido. Afinal, um Juiz, por ser uma pessoa “estudada”, teria de ter gosto mais “refinado”, não é mesmo? Claro que não! Foi por isso que se justificava o meu relato, cujo objetivo é, mais uma vez, induzir reflexão sobre a conduta dos Magistrados.
            Fui Delegado de Polícia por mais de 9 anos e não tolerava o rap. Afinal, algumas letras enfatizam que a polícia comete abusos, bem como fazem apologia ao crime e ao consumo de drogas. A minha intolerância tinha a ver com a profissão (muito embora nem todos os policiais sejam contrários ao gênero) e também com a idade. Mas fui refletindo e amadurecendo...
            Tornei-me Juiz e, objetivando reciclar idéias, resolvi ouvir as “rimas” com mais atenção. Não se discute que há trechos melancólicos e derrotistas que, em tese, teriam de ser ignorados. Às vezes é cômodo dizer que “o sistema” não permite que pobre progrida, especialmente quando lhe falta força de vontade. Mas foi justamente por conta de afirmações dessa natureza que me interessei em ouvir os Racionais e outros rimadores. Há também mensagens para que jovens se afastem do crime e das drogas, porque essa vida não compensa. Na verdade elas preponderam. O mais importante é que a realidade vem à tona sem cerimônia.
            Na condição de filho amado de família estruturada (que não tinha dinheiro, mas me deu exemplo e incentivo), era natural que eu achasse um exagero a forma de protesto retratada no rap. Mas, ao passar a ouvir com atenção as letras, percebi que seria importante para mim, na condição de julgador, colocar na balança certas impressões que eu tinha sobre as reclamações do povo da periferia.
            As letras são muito inteligentes (muito mais do que muitos dos ritmos, digamos, mais tolerados). Até Shakespeare já foi citado. Os trocadilhos surpreendem. Trazem muitas verdades. O sistema realmente não ajuda muito as pessoas das favelas a progredirem. Não que isso seja justificativa para infringirem a lei; não é isso que estou defendendo! Penso apenas que a falta de apoio da família, a falta de bons conselhos e de uma boa conversa dentro de casa, mais do que a insuficiência de recursos financeiros, realmente é um complicador para que filhos trilhem o bom caminho. Tanto isso é verdade que filhos de famílias abastadas muitas vezes decepcionam. E os Racionais abordam o tema com maestria.
            Outras verdades (no meu entender) são “cantadas” abertamente: (i) há mesmo servidores públicos corruptos que espalham pânico (embora pequena minoria); (ii) o Estado realmente precisar dar mais atenção aos pobres com antecedentes criminais; (iii) a mídia cada vez mais “obriga” as pessoas a serem bem-sucedidas e a possuírem determinados bens materiais, o que certamente estimula prática criminosas pelos que não detêm recursos e não são bem orientados sobre os valores mais importantes; (iv) negros, infelizmente, ainda sofrem preconceito e discriminação (em uma das canções o interlocutor se diz “pós-graduado em tomar geral”); (v) alguns jovens ricos, em virtude do descuido da família e/ou da má-índole, desperdiçam futuros promissores, elegem bandidos como heróis e se enveredam na vida do crime para satisfazerem suas frustrações; (vi) está cada vez mais difícil confiar nas pessoas; (vii) o meio onde se vive não é tudo, mas tem grande influência na formação da personalidade; (viii) a felicidade é um estado de espírito que nem sempre depende da classe social que se integra e dos recursos que se possui; (ix) a vida deve ser aproveitada dia-a-dia e com intensidade.
            Escutar essas histórias, parece que não, interferiu positivamente no exercício do meu mister. Passei a interpretar fatos e a analisar pessoas também sob essa ótica. Não é que eu tenha me sensibilizado ou que tenha ficado mais ou menos tolerante ao crime, que continua merecendo, da minha parte, na justa medida, a resposta que a lei prevê. Simplesmente passei a refletir mais e com constância sobre os problemas que as pessoas enfrentam e sobre o que interfere na sua forma de agir, o que, para mim, já foi uma vitória. E refletir levando em conta não só as idéias predominantes, mas também idéias novas, é fundamental não só para o exercício da profissão, mas para se viver melhor. Afinal, toda tese tem sua antítese. A nossa verdade pode ser ou não melhor do que a verdade do outro. Talvez o terceiro é quem esteja certo...
            Dito isso, pergunto: e daí que ouço Racionais?
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito da 2ª Vara de Penápolis(SP)
www.twitter.com/adrianoponce10
(publicado no Correio de Lins de 24/10/2012)