Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

21 de dez. de 2014

Malhação de Judas


            Segundo a Wikipédia, a “Malhação de Judas ou Queima de Judas é uma tradição vigente em diversas comunidades católicas e ortodoxas ... também realizada em diversos outros países, sempre no Sábado de Aleluia, simbolizando a morte de Judas Iscariotes. Consiste em surrar um boneco do tamanho de um homem, forrado de serragem, trapos ou jornal, pelas ruas de um bairro e atear fogo a ele, normalmente ao meio-dia”.
            A tradição de “malhar Judas” está se perdendo, mas o costume de “malhar todo mundo” tem se intensificado...
            Antigamente as pessoas discordavam ou mesmo se desentendiam e cada uma ia para o seu lado refletir sobre o ocorrido, tentar se colocar no lugar da outra, se aconselhar, reconhecer acertos e falhas, enfim, analisar friamente o incidente e quiçá se desculpar. Atualmente, com a proliferação de redes sociais e o acesso facilitado pelo telefone celular, muitas vezes uma pequena divergência faz com que a parte envolvida, de forma impensada, leviana, “despeje” publicamente os seus descontentamentos e dessa forma macule a imagem do outro sem qualquer necessidade. Essa reação tem certa dose de infantilidade (“vou contar para a minha mãe que você me fez isso”), na medida em que pessoas adultas e maduras devem solucionar elas próprias os seus problemas sem ficar lamuriando e importunando desnecessariamente terceiros. Em alguns casos esses “desabafos” acabam “recheados” de ofensas, prejulgamentos e generalizações. E depois fica difícil se arrepender e reparar o prejuízo à honra alheia.
            Pior do que ficar postando todo e qualquer incidente em redes sociais é comentar situações cujos detalhes não são todos revelados por quem “desabafa” e em relação às quais não consta a versão do outro contendor. Tem gente que se acostumou a julgar tudo o que chega ao seu conhecimento, como se essa tarefa fosse simples. Como magistrado, por exemplo, já cheguei a refletir durante alguns dias para solucionar alguns casos. Formar convicção é uma tarefa difícil e que deve ser realizada com absoluta isenção. O problema é que ela nem sempre está presente nas postagens no Facebook e no WhatsApp acerca de fatos supostamente vividos pelos contatos de quem o comentarista se propõe a ser conselheiro mesmo quando não foi chamado... E os comentários acabam se sucedendo com a mesma rapidez e a mesma imprudência, no melhor estilo “Maria vai com as outras”...
            Como exemplo dessa leviandade é possível citar o caso do juiz fluminense que se desentendeu com uma agente de trânsito e acabou vencendo demanda e tendo o direito de ser indenizado reconhecido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apenas pelo fato de ele, segundo a imprensa, já ter se envolvido em outros incidentes, as pessoas simplesmente o trataram como se fosse um boneco feito com trapos. Foi achincalhado e internautas até fizeram uma “vaquinha” para que a agente de trânsito pudesse pagar a indenização, eliminando, dessa forma, o caráter pedagógico da condenação judicial. Fiz questão de ler com atenção o acórdão prolatado nos autos do Proc. 0176073-33.2011.8.19.0001 aos 12/11/2014 e verifiquei que ele analisou com profundidade as provas colhidas antes de concluir que o juiz nada tinha feito que justificasse a reação da agente de trânsito que o desprestigiou. O juiz apenas tinha esquecido a carteira de habilitação na bolsa da esposa, que por sua vez trouxe rapidamente o documento. Não portar a CNH é infração leve. O carro estava sem placas porque era novo e o juiz contava com autorização do Detran para que pudesse transitar daquela maneira porque a repartição estava atrasada nas instalações de placas. O condutor se submeteu ao teste do etilômetro e não tinha consumido álcool. E ele apenas queria que o carro não fosse apreendido de imediato porque estava cheio de processos que tinha trazido do Fórum e temia que os documentos fossem para o pátio. Segundo o Desembargador relator, “ao desdenhar do conhecimento jurídico do réu, afirmando ‘você é juiz e desconhece a lei?’, a autora [agente de trânsito] zombou dolosamente da condição do autor [magistrado], menosprezando seu saber jurídico e a função por ele exercida na sociedade, se distanciando da seriedade e urbanidade que se exige de um servidor público no exercício de suas funções”. Ao receber voz de prisão por desacato, segundo consta, a agente de trânsito afirmou que o fiscalizado era “só um juiz, não Deus”. O julgado reconheceu abuso de autoridade da mulher. Embasou-se nos relatos de várias testemunhas, dentre elas, uma que afirmou que “em alguns momentos os funcionários do Detran que trabalhavam na Lei Seca se mostraram arrogantes”; e outra que garantiu que “em momento algum o representado perdeu o controle”. O desembargador enfatizou, inclusive, que o processo administrativo deflagrado pela agente contra o juiz foi julgado improcedente pela maioria dos integrantes da Corte Especial do Tribunal, isentando de qualquer reprovação a conduta do magistrado. De resto, o que não está no processo não pode ser considerado pelo Judiciário. Será que o juiz realmente se excedeu ou a agente quis se aproveitar do fato de ter detectado infração praticada por ele? Afinal, infração praticada por juiz acaba sendo sempre grave...
            A nossa Constituição garante a liberdade de manifestação do pensamento, mas, é claro, ela não é absoluta. Se não for bem exercida, aquele que “falar o que quiser” poderá “escutar o que não desejar”, além de ser compelido a pagar indenização, ser alvo de apuração criminal e experimentar vários outros aborrecimentos... O juiz foi “malhado como Judas”, mas, oficialmente, no entendimento de vários desembargadores do órgão especial do Tribunal e do relator do recurso da agente de trânsito, agiu acertadamente diante do excesso, o que tem de ficar bem claro. E nem se diga que o Tribunal o “protegeu”, pois ao decidir outro caso, absolveu uma jornalista a quem o juiz imputava a prática de crimes contra a sua honra. É lamentável que a seriedade da atuação do Tribunal tenha sido colocada em xeque por opiniões desprovidas de fundamentos técnicos e fáticos e muitas vezes tendenciosas e sensacionalistas. Não tenho a intenção de defender o “Judas”, mas apenas de expor a verdade apurada.
            Que cada um de nós possa, a partir do que foi exposto, avaliar melhor a necessidade e a conveniência de “arremessar pedras” por meio das redes sociais em vez de usá-las para difusão de conhecimento, de encorajamento e de boas práticas!
Adriano Rodrigo Ponce de OIiveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
(publicado no Diário de Penápolis de 27/11/2014 e na Revista Comunica de dez/2014)



12 de dez. de 2014

Pane jornalística


            Dias atrás tive acesso à edição de 11/11/2014 do jornal “O Dia - Marília” e fiquei mais uma vez estarrecido...
            Digo “mais uma vez” porque recentemente tratei das críticas feitas de forma inconsequente ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro por conta do julgamento do caso que envolveu o juiz e a agente de trânsito, e, na ocasião, enfatizei que infelizmente a imprensa nem sempre procura se informar de detalhes que envolvem as decisões do Poder Judiciário e acaba ela mesma promovendo injustiças com pessoas e com a própria justiça.
            O editorial da referida edição, intitulado “Pane Jurídica”, expressão que inspirou o tema deste artigo, começou afirmando que “tem algo de errado com a Justiça no Brasil” e, dessa forma, levianamente ofendeu milhares de profissionais compromissados com o que fazem.
            A crítica teve a ver, segundo consta, com a ordem de soltura prolatada pelo mesmo Tribunal fluminense: “Agora, também no Rio de Janeiro, desembargadores colocam em liberdade acusado de chefiar o tráfico que já tinha mandado de prisão contra si”.
            As ofensas e os equívocos prosseguiram: “Ao que parece, os nobres magistrados estão em ‘pane’. Algo de muito errado está acontecendo. Será que é sobrecarga de trabalho? Peças processuais mal feitas que dificultam o entendimento dos juízes ou é ‘apenas’ prevaricação? (...) Ninguém observou que o tal Orelha, que é o vulgo do traficante Edson Silva de Souza, tinha contra si um outro mandado de prisão e por isso não poderia ser solto? (...) O alvará de soltura foi expedido, mesmo havendo um outro mandado de prisão contra o acusado” (sic).
            Como sempre faço, vou tentar desmistificar essas idéias equivocadas...
            Em primeiro lugar, o crime de prevaricação consiste em “retardar ou deixar de praticar, INDEVIDAMENTE, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal” (artigo 319 do Código Penal).     Havendo escolhas legais, afasta-se o crime. Só se consuma se houver dolo na ação e na finalidade. O erro, a preguiça, a deficiência e a desídia não são suficientes. Determinar a expedição de alvará de soltura nem de longe se encaixa na definição legal.
            Mas o mais importante é desfazer um engano ainda mais grave do redator. Quando o juiz analisa determinado caso, tem a liberdade de optar pela soltura independentemente do que se passa em outra investigação e do que já decidiu outro magistrado. Não está vinculado a nada e nem a ninguém, mas apenas à sua consciência e ao seu entendimento, que é livre, muito embora tenha de ser motivado. Nada impede o juiz de conceder liberdade mesmo que outro juízo tenha imposto ou mantido a prisão do mesmo investigado. Quem tem o dever de verificar se existe alguma ordem de prisão que impeça a soltura é a autoridade policial ou o diretor do estabelecimento prisional. E é isso que está sendo averiguado: qual foi a razão de a soltura ter se efetivado pela equipe da carceragem...
            Em resumo: os mandados de prisão e alvarás de soltura são cadastrados em sistema informatizado e remetidos para a mesma autoridade administrativa. Cabe a esta autoridade, antes de dar cumprimento ao alvará de soltura, verificar se pode colocar a pessoa em liberdade. Se existir determinação de prisão a ser cumprida, a autoridade administrativa deve certificar cumprimento ao alvará de soltura, mas, ao mesmo tempo, manter o indivíduo custodiado, de tudo informando o Judiciário.
            Assim sendo, não é possível que o juiz de um processo desfaça a decisão de prisão exarada pelo juiz de outro processo. Cada magistrado age de forma independente e a convicção da necessidade de manter a prisão antes da condenação é formada a partir do que consta em cada processo. No Direito costumamos dizer que “o que não está nos autos, não está no mundo”, ou seja, que a convicção não pode ser formada a partir de elementos externos. O juiz não pode se deixar levar pelo que a imprensa e/ou a população desejam que aconteça, mas tomar a sua decisão de forma isenta e técnica. A imprensa e a população devem respeitar a decisão ou pelo menos comentá-la com educação, responsabilidade e, preferencialmente, depois de consultar alguém do ramo. Isso porque se o Direito já é bastante complexo para quem lida cotidianamente com ele, a possibilidade de o leigo fazer um comentário impertinente é muito grande.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
(publicado no Correio de Lins de 10/12/2014 e no Diário de Penápolis de 11/12/2014)

Observação: este texto complementa o artigo "Malhação de Judas", que será publicado em breve neste blog, assim que a edição de dezembro da revista Comunica for distribuída.

8 de dez. de 2014

Internação do adolescente infrator


            Os mais desinformados costumam comentar, em tom de deboche, que “a Polícia prende e a Justiça solta...”. Essa assertiva até que tem fundo de verdade: realmente a Justiça não prende ninguém, mas autoriza ou determina a prisão (não executa o ato de custodiar); e realmente a Polícia não solta, a não ser em situações excepcionais, por ex., quando o preso recolhe a fiança arbitrada pelo delegado e mantida pelo magistrado; ou quando se vence o prazo de custódia temporária.
            De qualquer forma, o objetivo aqui não é comparar competências e atribuições, mas apenas esclarecer como a internação do adolescente infrator tem sido tratada pelo Judiciário e tentar desmistificar a absurda idéia, cultivada por alguns, de que juízes não estão preocupados com a segurança da população.
            Primeiramente, é preciso deixar claro que juiz não é “justiceiro”, ou seja, que ele tem o dever de atuar e de decidir, como é sabido, conforme lhe faculte a lei. Não pode fazer o que bem entender... Não raramente acaba tendo de fazer certas concessões a contragosto, pois também é cidadão e também se aflige com o avanço da criminalidade. Às vezes liberta porque não tem opção, ainda que pessoalmente entenda injusto esse desfecho.
            Dentre as medidas aplicáveis ao adolescente infrator está a internação provisória, solução parecida com a prisão preventiva para o adulto criminoso.
            Dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal 8.069/1990):
            a) Art. 108 – A internação, antes da sentença, pode ser determinada pelo prazo máximo de quarenta e cinco dias. Parágrafo único: A decisão deverá ser fundamentada e basear-se em indícios suficientes de autoria e materialidade, demonstrada a necessidade imperiosa da medida;
            a) Art. 121 - A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento;
            b) Art. 122 – A medida de internação só poderá ser aplicada quando: I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa; II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves; III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.
            Muitas vezes as pessoas ficam indignadas quando um adolescente detido por ato equiparado ao tráfico de drogas acaba sendo prontamente liberado. Ocorre que muito embora o tráfico seja delito equiparado aos hediondos e gere inegável risco à coletividade, os atos executórios não envolvem violência ou grave ameaça. Assim sendo, ainda que existam fortes elementos de convicção sobre o envolvimento do jovem no tráfico, segundo o Supremo, a internação deve ser excepcional. Em suma: o tráfico promovido por adolescente é gravíssimo, mas o juízo não pode se desviar do que está escrito no Estatuto.
            Era relativamente comum depararmos com custódias provisórias de adolescentes investigados por infrações do gênero, mas os Tribunais superiores acabaram pacificando o entendimento de que a gravidade da traficância não justifica, por si só, a privação da liberdade. O Supremo, por exemplo, em 2011, ao decidir o Habeas Corpus 94.447, cuja relatoria foi do Min. Luiz Fux, enfatizou que o ECA reconhece o caráter extremo da custódia ao condicioná-la aos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (artigo 121) e ao prever a sua subsidiariedade, determinando que “em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada” (artigo 122, § 2º). Enfatizou que em razão desse caráter extremo, a internação se justifica nas hipóteses taxativamente elencadas no artigo 122, que deve ser interpretado restritivamente.
            O posicionamento da mais alta Corte de Justiça do País, como se vê, longe de retratar leniência com a delinquência juvenil, apenas fez valer a opção daqueles que nós mesmos escolhemos como legisladores.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
(publicado no Diário de Penápolis de 4/12/2014 e no Correio de Lins de 6/12/2014)



23 de nov. de 2014

Justiça Restaurativa


            João trabalhava com ajudante de Pedro no corte de lenha. Aproveitando-se de um descuido do “patrão”, subtraiu uma folha do talão de cheques da vítima, a preencheu, a assinou e se serviu dela para tentar obter vantagem indevida em prejuízo de um estabelecimento comercial. Por ter sido surpreendido, foi acusado da prática de estelionato.
            Por ocasião do interrogatório de João, tive oportunidade de fazer algo inusitado. O réu sustentava inocência e alegava que, em verdade, Pedro havia lhe emprestado a folha de cheque assinada, mas não preenchida. Ocorre que algumas incoerências na sua versão indicavam que mentia. Eu lhe disse que como ele afirmava que não tinha assinado o cheque, encomendaria exame pericial, já que a providência não tinha sido tomada na fase de inquérito. Alertei-o de que a perícia provavelmente constataria a sua culpa, pois havia coincidências nas grafias do preenchimento do cheque (cuja autoria ele tinha admitido) e da assinatura. Passei a ponderar que a negativa não se coadunava com o que o acusado havia anunciado: que queria mudar de vida, pois tinha perdido o emprego e a família. Enfatizei que durante a sua fala, João tinha se referido ao amigo (e vítima) como “um pai” (de fato havia diferença etária suficiente entre eles) e usei isso para emocioná-lo e incentivá-lo a confessar, o que acabou fazendo, quando então chorou. Percebi sincero arrependimento naquele que instintivamente tentava se defender, mas que, em verdade, lamentava muito por ter traído o companheiro de trabalho que tanto havia lhe ajudado, segundo ele mesmo revelou. Propus, de forma inédita, e o réu concordou, que o vídeo do seu interrogatório fosse remetido à vítima. Afinal, ele tinha deixado registrado que queria voltar a trabalhar com Pedro quando deixasse a prisão. Tive a idéia de remeter as imagens para que Pedro pudesse tomar conhecimento do arrependimento de João e quiçá um dia conceder ao infrator uma nova chance... Naquele caso, se eu tivesse embasamento legal, teria designado uma nova audiência, colocado os dois frente a frente e teria evitado impor sanção penal. O encontro teria sido suficiente à prevenção de novos deslizes. Ao final da audiência, percebi que a “justiça restaurativa” pode, em muitos casos, ser benéfica para todos.
            O Papa João Paulo II certa vez esteve na prisão onde o turco Ali Agca se encontrava para conceder misericórdia ao autor da tentativa de homicídio de que foi vítima. O próprio Jesus pediu que aqueles que o maltratavam fossem perdoados porque não sabiam o que estavam fazendo...
            Sérgio Salomão Shecaira, certa vez, ao prefaciar “Justiça Restaurativa: Amanhecer de uma Era”, de César Barros Leal, fez referência à justiça restaurativa como a “justiça em que todos ganham e ninguém perde” e relacionou alguns termos que já foram utilizados para denominá-la: justiça doce, transformadora, relacional, reconciliadora, pacificadora, participativa, reconstitutiva, restauradora, reparatória ou transformadora.
            Em síntese, os defensores dessa modalidade sustentam que a vítima de um delito deva participar mais intensamente do processo. Facilitadores cuidam de buscar, por meio de entrevistas com o ofendido e com o criminoso, acordo de reparação que pode prever a indenização dos danos, a prestação de serviços comunitários e vários outros tipos de respostas à infração que traduzam maior conforto à vítima e à comunidade e maior possibilidade de reflexão ao delinquente. Todos são estimulados a analisaram ponderadamente o ocorrido. As necessidades e os direitos dos afetados são expostos e debatidos. Tudo isso não costuma ocorrer com a mera imposição de pena...
            Não se trata de criar uma nova justiça, mas de introduzir uma fase não obrigatória no processo penal, tendo em vista a ineficiência da sistemática em uso, que na maioria das vezes não faz cicatrizar os traumas que o delito impõe não só à vítima, mas também ao delinquente. Sai de cena a vontade exclusiva do Estado para que seja considerada também a opinião do ofendido, que depois de ouvir o autor do crime poderá desenvolver empatia e entender que uma boa composição gera mais satisfação do que a imposição de uma pena que nem sempre terá capacidade de reconstrução, já que o poder público não oferece condições para tanto (e terá dificuldade para oferecer, frente à crescente demanda).
            Consta que em alguns países a justiça restaurativa tem sido aplicada até em casos mais graves como o homicídio, o estupro e o tráfico de pessoas. No dizer dos adeptos, a resposta acaba sendo mais rápida, humana e eficiente. No Brasil tem se fortalecido a idéia de que a justiça restaurativa poderia ser uma ótima maneira de dar encaminhamento, por exemplo, às apurações de atos infracionais.
            De certa forma, a vontade da vítima já tem sido observada nos casos de crimes cujas apurações dependem da sua iniciativa (ação penal de iniciativa privada ou condicionada à representação). No que tange às infrações ditas de menor potencial ofensivo, em alguns casos o acordo de reparação civil (indenização) implica no arquivamento da persecução penal. A Lei 9.099/1995 também flexibilizou a obrigatoriedade de propositura da ação penal por parte do Ministério Público, tendo instituído a possibilidade de transação penal e de suspensão condicional do processo para várias situações e, dessa forma, propiciado a possibilidade de investigados se redimirem por meio do cumprimento de determinados compromissos.
            Para alguns é meio utópico acreditar que a justiça restaurativa possa vir a ser uma solução viável, mas penso que se ela for legal e criteriosamente ampliada e que se sobrevier progressiva mudança de mentalidade acerca do papel do Direito Penal, a sensação de impunidade será reduzida e a efetiva recuperação do faltoso atingirá índices muito mais expressivos.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
(publicado na Revista Comunica de nov/2014, no Diário de Penápolis de 6/11/2014 e no Correio de Lins de 25/11/2014)  

1 de nov. de 2014

Alterações no Código de Trânsito


            A Lei 12.971, de 9/5/2014, entrará em vigor no dia 1º/11/2014.
            Ela previu interessantes modificações no Código de Trânsito que basicamente terão o objetivo de sancionar com mais severidade o excesso de velocidade, as manobras arriscadas e as suas conhecidas consequências.
            Algumas infrações de trânsito passarão a ser apenadas com a multa prevista para a categoria “gravíssima” multiplicada por dez vezes:
            a) disputar corrida (art. 173);
            b) promover, na via, competição, eventos organizados, exibição e demonstração de perícia em manobra de veículo, ou deles participar, como condutor, sem permissão da autoridade de trânsito com circunscrição sobre a via (art. 174);
            c) utilizar-se de veículo para demonstrar ou exibir manobra perigosa, mediante arrancada brusca, derrapagem ou frenagem com deslizamento ou arrastamento de pneus (art. 175);
            d) forçar passagem entre veículos que, transitando em sentidos opostos, estejam na iminência de passar um pelo outro ao realizar operação de ultrapassagem (art. 191).
            Outras infrações embasarão multas multiplicadas por cinco vezes:
            a) Ultrapassar outro veículo pelo acostamento ou em interseções e passagens de nível (art. 202);
            b) Ultrapassar pela contramão outro veículo: I - nas curvas, aclives e declives, sem visibilidade suficiente; II - nas faixas de pedestre; III - nas pontes, viadutos ou túneis; IV - parado em fila junto a sinais luminosos, porteiras, cancelas, cruzamentos ou qualquer outro impedimento à livre circulação; V - onde houver marcação viária longitudinal de divisão de fluxos opostos do tipo linha dupla contínua ou simples contínua amarela (art. 203);
            No caso de homicídio culposo (que decorre de imprudência, negligência ou imperícia, sem a intenção de matar), se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência (droga) ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente, poderá ser condenado a 2 a 4 anos de reclusão e à suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
            A constatação da condução de veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência (droga), crime previsto no art. 306, poderá ser feita mediante teste de alcoolemia ou toxicológico, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.
            A alteração mais relevante foi introduzida no art. 308. A consumação do delito antes exigia a demonstração de “dano potencial à incolumidade pública ou privada”. Agora o Código se contentará com a demonstração de “situação de risco à incolumidade pública ou privada”. De resto, o crime continuará com mesma descrição: “Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente”. Mas por força da inclusão de dois parágrafos, se da prática resultar lesão corporal de natureza grave, a pena corporal será de 3 a 6 anos de reclusão; e se resultar morte, será de 5 a 10 anos de reclusão. Tudo isso, é claro, se as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado (agiu com dolo direto) nem assumiu o risco de produzi-lo (agiu com dolo eventual), pois caso contrário responderá por lesão corporal dolosa ou homicídio doloso. A pena para o “racha” com resultado “morte” será de no mínimo 5 anos de reclusão e a pena para o homicídio doloso simples já é de no mínimo 6 anos de reclusão, ou seja, a lei quase equiparou as penas mínimas. A diferença é que o crime de trânsito, cujo resultado é culposo (não desejado), não é julgado pelo júri, pois não se classifica dentre os dolosos contra a vida. A resposta para o praticante de “racha” que matava ou lesionava era muito mais branda...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
(publicado no Diário de Penápolis de 30/10/2014 e no Correio de Lins de 31/10/2014)


25 de out. de 2014

Breves reflexões sobre o ensino superior


O aperfeiçoamento do ensino superior sempre foi um assunto muito debatido e polêmico. Os desafios são enormes. Muito se fala sobre metodologia e outros temas relacionados...
Não se discute que todos almejam um ensino de qualidade. As instituições estão sempre preocupadas com a preservação do seu conceito perante a comunidade e os órgãos públicos que as fiscalizam. Tentam motivar os professores ao aperfeiçoamento constante e oferecer cursos condizentes com as exigências do mercado de trabalho. Acontece que nem sempre estão dispostas a investirem o suficiente ou nem sempre têm condições para tanto. O que se sabe é que concedem muitas bolsas de estudos, seja por exigência do Ministério da Educação (MEC), seja pela necessidade de facilitar matrículas. O elevado índice de inadimplência às vezes compromete a arrecadação e, em consequência, mais investimentos. Nem sempre conseguem, por ex., auxiliar o docente nas despesas relacionadas à pós-graduação ou à participação em cursos e congressos que favoreceriam a sua pontuação junto ao MEC...
O professor, em consequência, muitas vezes protela a pós por conta dos gastos inerentes. Viagens, hospedagens, alimentação e materiais didáticos costumam comprometer consideravelmente o orçamento do docente, que, como contrapartida, depois de concluir mestrado ou doutorado, fica satisfeito, eleva a sua autoestima, tem condições de oferecer mais aos alunos, mas acrescenta poucos reais à hora-aula, ou seja, demora bastante para recuperar ou sequer recupera o investimento. Por essa razão, muitos não se aventuram... Mas não é só por isso: o mestrado e o doutorado exigem sobremaneira (trabalhos, seminários, fichamentos, pesquisas, domínio de outras línguas, distância da família, falta de tempo para lazer, estresse etc.).
No magistério superior há alguns anos, cheguei a algumas conclusões, é claro, sem qualquer pretensão de esgotar o assunto e sempre respeitando opiniões contrárias.
O uso do “power point” facilita o trabalho do docente que leciona disciplinas com muitos termos técnicos e que precisa comentar imagens. Nos demais casos, penso que o projetor pode gerar acomodação para o aluno, especialmente se for ter acesso à apostila das telas projetadas. O equipamento pode intensificar o sono, especialmente se a iluminação da sala for reduzida. E o professor pode acabar se rendendo à mera leitura dos “slides”, atitude que nenhuma platéia merece. Por isso, sou bastante favorável ao uso do quadro para a orientação da classe.
Os alunos sonham com cursos “fortes”, mas nem sempre conseguem acompanhar o ritmo do docente que se propõe a inovar demais, notadamente os que estudam à noite e trabalham durante o dia e/ou já constituíram famílias. Às vezes a rotina é tão “cronometrada” que elaborar um trabalho ou preparar um seminário pode significar um verdadeiro tormento para o aluno. O objetivo acaba não sendo atingido, pois realizar atividades apenas para “cumprir tabela”, sem motivação, não gera aprendizado. “Comprar” trabalho pronto, muito menos... Alguns acabam sendo encomendados (pagos) porque o aluno não é capaz, não tem disposição e/ou não tem tempo. E certos alunos, quando o trabalho deve ser feito em grupo, não cooperam suficientemente nem com a elaboração, nem com a apresentação. Nem sempre a classe absorve o conhecimento porque quem expõe nem sempre é encarado com confiabilidade ou com a devida atenção. Por fim, se o professor não tem tempo ou disposição para dar o devido “feedback”, ou seja, corrigir detalhadamente cada trabalho, é melhor que não adote a cobrança.
Não conheço método de avaliação cem por cento eficaz. As questões de múltipla escolha facilitam a correção por parte do professor, mas, na minha opinião, por favorecerem os “chutes”, são as avaliam com menor precisão. As questões dissertativas são mais apropriadas, pois durante a correção o professor terá certeza se o aluno conhecia a resposta. Auxiliam no desenvolvimento da escrita. Aliás, é necessário investir bastante no treinamento da redação. O bom profissional tem de saber escrever e interpretar. Tem de ter bom poder de síntese, objetividade, motivo pelo qual prefiro estabelecer espaço limitado para as respostas. Infelizmente muita gente ingressa no mercado de trabalho com bastante deficiência nesse quesito. E se “escrever” for ferramenta principal, como é o caso dos profissionais do Direito, as perspectivas serão ruins...
O professor deve ter cautela ao adotar livros porque muitos alunos não terão condições de adquiri-los e acabarão se desdobrando para fazê-lo unicamente pela indicação do mestre. Além disso, pode ser que o livro já esteja desatualizado quando o aluno for ingressar no mercado de trabalho. É preciso evitar grandes aquisições na fase da graduação a fim de que o investimento aconteça no início do exercício da profissão. Por isso sempre incentivei um caderno bem anotado, que certamente servirá como preciosa fonte de consulta, mesmo depois da formatura, especialmente nas vésperas de concursos, quando o candidato precisará de material resumido e confiável.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano

(publicado no Diário de Penápolis de 22/10/2014 e no Correio de Lins de 24/10/20014)

20 de out. de 2014

“Lei da Palmada”

           A iminência da aprovação da chamada “Lei da Palmada” causou muito estardalhaço. Aliás, é muito comum que isso aconteça quando alguma lei polêmica está para ser votada, especialmente porque leigos em Direito costumam disseminar comentários pouco técnicos e muitas vezes equivocados acerca do alcance e da aplicabilidade.
           De qualquer forma, creio que a norma, que já está em vigor e também já foi apelidada (particularmente, acho que lei não deveria receber apelido) também de “Lei Menino Bernardo” (garoto sul-rio-grandense vítima de homicídio imputado ao pai e à madrasta), não terá quase nenhum efeito prático.
            A Lei Federal 13.010, de 26/6/2014, sujeitou os infratores às seguintes medidas, a depender da gravidade do caso: (a) encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família; (b) encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; (c) encaminhamento a cursos ou programas de orientação; (d) obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado; (e) advertência. Atribuiu ao Conselho Tutelar, a quem os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente deverão ser obrigatoriamente comunicados, a atribuição de aplicar tais medidas. Mas o legislador não levou em conta que muitos Conselhos não estão aparelhados e que muitos conselheiros não estão preparados para tanto... Com o devido respeito ao “parceiro” Conselho Tutelar, definir esse tipo de encaminhamento deve continuar sendo tarefa de outras instituições, quando devidamente instadas. Mas o tempo dirá como isso funcionará na prática... A norma, por ex., não dotou os Conselhos de meios coativos e na hipótese de resistência à sua decisão, o impasse acabará “desaguando” mesmo no Judiciário.
            O texto legislativo incluiu dispositivos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA):
            a) dispôs que “a criança [0 a 11 anos] e o adolescente [12 a 17 anos] têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los”;
            b) definiu “castigo físico”: “ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente” que resulte em sofrimento físico ou lesão;
            c) explicou “tratamento cruel ou degradante”: “conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança ou ao adolescente” que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize.
            O ECA já determinava, desde 1990, que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. A nova lei, portanto, “choveu no molhado”... O Estatuto também já deixava claro que para a sua interpretação deveriam ser levados em conta “os fins sociais” e as “exigências do bem comum”. A atuação mais enérgica dos responsáveis, portanto, nunca foi vedada e, na minha opinião, continuará não sendo...
            Não estou a afirmar que o uso da correção física é melhor caminho. Acho até elogiável a previsão da nova lei que instituiu campanhas educativas permanentes acerca da melhor forma de educar. Acontece que para a criação e educação dos filhos, missão bastante dinâmica e cada vez mais desafiante, a repressão mais firme, inclusive com alguma “palmada”, pode se tornar necessária para que certos comportamentos sejam corrigidos, isso se o exemplo e o diálogo não tiverem surtido resultados (quem é pai sabe que às vezes não surtem). Uma intervenção mais rígida poderá, inclusive, evitar mal maior. Lembram-se do caso do garoto que teve o braço dilacerado por um tigre num zoológico? Se o seu pai estivesse mais atento e se a repressão verbal tivesse sido feita e não tivesse adiantado, seria o típico caso de correção física (desde que, é claro, moderada, compatível com o risco que se pretendia repelir).
            Por fim, é preciso deixar claro que a “Lei da Palmada” não previu crime algum. As infrações penais relativas aos maus-tratos e à violência contra menores de 18 anos não sofreram alterações. A questão da “palmada” continuará a ser regida pelo art. 136 do Código Penal, que tipificou o crime de maus-tratos: “Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina”. A lei penal prosseguirá reprimindo apenas o “abuso”. E já tenho visto o Ministério Público requerer arquivamento de “palmadas” levando em conta o entendimento que sempre predominou: o de que pequenas correções físicas interessam muito mais ao desenvolvimento de um filho do que a omissão do seu genitor...
            Não podemos nos esquecer de que o ECA elenca medidas de proteção tanto para casos de omissão quanto de abuso dos responsáveis legais. Essas medidas devem se pautar, conforme está expressamente escrito, em princípios como o da intervenção mínima (a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas autoridades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do adolescente) e o da proporcionalidade (a medida deve ser a necessária e adequada à situação de perigo em que a criança ou o adolescente se encontram).
            Toda regra deve ser interpretada com base em princípios gerais e no que tange à “Lei da Palmada” não deverá ser diferente. Se for utilizada com bom senso, moderação, e com a clara finalidade de evitar que a criança fique exposta a risco maior, acredito, continuará a ser normalmente tolerada. Devemos evitar que a nova lei venha a servir como instrumento de intimidação, inclusive do filho contra o próprio pai que luta pela observância às regras de boa convivência e pelo respeito ao próximo.
            Será que uma simples “palmada” reflete o “sofrimento físico” que a lei procurou coibir? Creio que não... A lei, nesse particular, é imprecisa e gera insegurança jurídica. É de questionável efetividade, além de desnecessária. Praticamente “natimorta...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
 (publicado na Revista Comunica de out/2014; no Diário de Penápolis de 1º/10/2014 e no sítio http://jus.com.br/artigos/32799/lei-da-palmada)

17 de out. de 2014

Pena de morte para o homicida: breve cotejo dos sistemas brasileiro e iraniano


            Consta que uma mulher que teria matado o seu estuprador deverá ser enforcada para pagar pelo seu crime no Irã, onde ainda vigora a conhecida “lei de talião”, que consiste no “olho por olho, dente por dente”, ou seja, punição de delitos de sangue com a morte. Segundo foi noticiado, a família da vítima não perdoou a mulher, o que teria sido suficiente para evitar a decisão pela pena capital. Entidades protetoras dos direitos humanos estão tentando intervir porque entendem que a jovem não teve todas as oportunidades para se defender. Ela admitiu que esfaqueou o agressor no pescoço, mas justificou que isso aconteceu quando sofria uma investida sexual. Consta que um copo com sedativos adquirido pelo homem teria sido encontrado no apartamento onde tudo aconteceu. A jovem teria sido contratada para decorar o local e teria sido surpreendida.
            Segundo um familiar do falecido, a mulher utilizou uma faca que tinha sido adquirida dois dias antes e que trazia na bolsa. “Que outra intenção poderia ter?", questionou o filho do homem morto, conforme notícia publicada no Estado de São Paulo.
            É claro que faltam muitos detalhes, mas a partir do que foi noticiado decidi fazer breve análise do tratamento que a lei brasileira dá ao contexto.
            A mulher que corre iminente risco de ser estuprada está amparada a matar o agressor para evitar o coito indesejado. Nesse caso, em tese, justifica-se que se sacrifique a vida do estuprador para a proteção da dignidade sexual da vítima. O crime de estupro gera consequências muitas vezes irreversíveis. Às vezes a vítima “morre por dentro”. É caso típico de legítima defesa se não houver outro meio de reação que possa ser minimamente eficaz para a contenção da agressão injusta.
            Se a investida sexual já aconteceu ou se a mulher presume que possa vir a acontecer, mas não existe risco imediato, ela não ficará impune se matar o agressor. Responderá por homicídio. Isso porque “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”, ou seja, não se justifica o revide contra o criminoso que já agiu ou que a vítima se antecipe por conta de risco ainda remoto. Nestas duas situações incumbe ao Estado agir.
            O delito poderá ser classificado como hediondo se for qualificado, ou seja, praticado: (a) com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; (b) à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido. Mas pode ser que a mulher consiga demonstrar que agiu por motivo de relevante valor moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima. Neste caso estaremos diante do chamado “homicídio privilegiado” que autorizará redução de pena de um sexto a um terço. Conforme se tem decidido, o “homicídio privilegiado”, mesmo que cometido de qualquer das maneiras elencadas nos itens “a” e “b”, não será considerado hediondo. Tratar-se-á do chamado “homicídio qualificado-privilegiado”. A consequência é que não haverá tanto rigor no cumprimento da pena. E pode ser que o homicídio seja classificado apenas como “privilegiado” se a executora tiver agido por motivo de relevante valor moral (para defender a sua honra), ou sob o domínio de violenta emoção (não basta a mera influência da emoção, mas que ela realmente venha a causar transtorno), logo em seguida à injusta provocação da vítima; e a maneira de execução não envolver qualquer das formas já descritas. Nesse caso a sanção poderá ser bastante branda.
            De qualquer forma, no Irã, segundo consta, um membro da família da vítima de homicídio costuma ser convidado para empurrar a cadeira sob os pés da pessoa condenada quando ela estiver com a corda no pescoço. No Brasil o sistema oficial não “delega” para a família qualquer ato de vingança; só existe pena de morte para casos de guerra declarada e ela é efetivada por fuzilamento. O Código Penal Militar prevê a morte em tempo de guerra para atitudes de favorecimento ao inimigo: traição; favor ao inimigo; tentativa contra a soberania do Brasil; coação a comandante; informação ou auxílio ao inimigo; aliciação de militar; ato prejudicial à eficiência da tropa; cobardia qualificada; fuga em presença do inimigo; espionagem; “cabeças” [a lei utiliza tal termo] de motim, revolta ou conspiração; incitamento em presença do inimigo; rendição ou capitulação; descumprimento de ordem que gere perigo a força, posição ou outros elementos de ação militar; separação reprovável; abandono de comboio com resultado grave; dano especial em benefício do inimigo ou possa comprometer a preparação, a eficiência ou as operações militares; dano em bens de interesse militar; envenenamento, corrupção ou epidemia que comprometa a segurança, dentre outros... E no Brasil a vítima não pode evitar que o agressor não seja responsabilizado, a não ser nos casos de lesão leve e lesão culposa que não configurem violência doméstica, se a pessoa ofendida não oferecer representação...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
(publicado no Diário de Penápolis de 16/10/2014)


9 de out. de 2014

O disparo no rosto do ambulante: legítima defesa

         
           Os meios de comunicação noticiaram e convém comentar com isenção, lucidez e objetividade...
            Três policiais militares participavam de operação de combate à pirataria no centro de São Paulo. Para quem só gosta de criticar sem fundamento, a PM deveria se preocupar com outras coisas etc. Para mim, onde existe prática delituosa, não importa a gravidade, o Estado deve exercer o seu papel. E a definição de gravidade não passa apenas pela análise da pena prevista, mas tem a ver com os reflexos de determinada conduta para a coletividade. Se o legislador, nosso representante, optou por criminalizar, a lei deve ser cumprida. E o policial não deve correr o risco de responder por prevaricação. Simples assim...
            Dois policiais, por razões que desconheço, se atracaram no chão com um camelô que resistia ser algemado. O terceiro ficou de pé, junto dos demais, fazendo a segurança deles. Tudo estava sendo filmado por meio de vários telefones celulares. O camelô não estava sendo agredido, mas apenas imobilizado. Ninguém estava autorizado a agir em legítima defesa dele. Quem entendesse a ação indevida deveria, no máximo, aguardar a imobilização e seguir junto para a delegacia para expor as suas razões, o que teria sido saudável.
            Naquele momento, vários outros vendedores ambulantes cercaram os policiais. Aquele que ficou de pé pedia para que se distanciassem. Utilizava spray de pimenta, meio não-letal, mas não era respeitado. Um indivíduo de camisa xadrez chegava cada vez mais perto, exibindo a sua “valentia” para os demais. No chão, dois policiais com as armas na cintura, expostas ao risco de arrebatamento. E o terceiro policial bravamente os protegia.
            O contexto era de intenso risco, pois os três homens da lei estavam cercados e, se vacilassem, seriam desarmados, espancados e quiçá mortos por aqueles indivíduos que desrespeitavam as autoridades. Estava em jogo também a respeitabilidade do serviço público como um todo.
            A afronta prosseguiu por considerável tempo... as pessoas começaram a se aproximar por todos os lados... Uma mulher chegou perto dos pés do policial “protetor” e pegou algo. No instante em que o “protetor” olhou para o lado oposto, aquele sujeito de camisa xadrez extrapolou: avançou contra a mão do policial no intuito de tomar-lhe o spray ou de simplesmente acioná-lo contra os olhos dos policiais. Se tivesse tido êxito, as consequências seriam as já expostas. Inviabilizou o uso do gás como resposta por parte do agente.
            O policial “protetor” dos demais não teve dúvida: atirou no rosto do ambulante, que ainda cambaleou, mas morreu no local. E foi exatamente o que ele mereceu! Afrontou a força de segurança. Desrespeitou a ordem de manter distância. Avançou e colocou a vida dos policiais em risco. E pagou com a sua vida, que, diga-se de passagem, não valorizava.
            Todos os requisitos da legítima defesa estiveram presentes. Segundo o Código Penal, no seu art. 25, “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. A agressão do ambulante era injusta. A reação foi a única possível, condizente com o risco provocado pelo agressor, com o instrumento à disposição e com o tempo para o revide. Quem já atuou em tumulto sabe disso.
            Houve algum burburinho nas redes sociais, mas quem comentou sem “conhecimento de causa”, se precipitou. Há quem critique sem a necessária imparcialidade só porque, ainda que sem razão, um dia foi contrariado pela PM e tem dificuldade para respeitar autoridades e regras ou generaliza e trata a instituição como sua inimiga, esquecendo-se do que ela faz diuturnamente em seu favor. Por fim, há que prefira apenas fazer sensacionalismo para vender seu produto de mídia, conseguir seus votos ou defender outros interesses ilegítimos.
            O homem de xadrez quis acender o pavio para que os demais “explodissem”. O policial explodiu seus miolos. Nossa! Mas é preciso “falar” desse jeito? Sim, pois tem gente que não entende outro discurso e porque tenho embasamento jurídico (muito embora respeite opiniões contrárias).
            Quanto ao policial “protetor”, acabou sendo preso em flagrante e depois liberado. Na minha opinião o delegado nem deveria tê-lo prendido, mas apenas registrado tudo e justificado o seu posicionamento.
            E que tudo isso sirva de lição!
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico

(Publicado nas edições de 9/10/2014 do Diário de Penápolis e do Correio de Lins)

25 de set. de 2014

O ponto de vista do juiz

           Tenho escrito bastante desde 1999 com os objetivos de difundir o Direito, induzir reflexões sobre as carreiras jurídicas e os cotidianos policial e forense e principalmente aprimorar meus pontos de vista.
            Não tenho qualquer pretensão de que os meus textos se tornem “tijolos de um muro de lamentações”, mas a notícia abaixo é uma prova de que a magistratura está longe de ser um lugar confortável para se trabalhar e entendi que deveria tratar do tema.
            Em julho de 2013 causou perplexidade a notícia de que Cecília de Moura Barbosa Lima, que ocupava o cargo de analista judiciário no TRE-MG, assumiu o concurso para juíza de direito no Tribunal mineiro e desistiu da magistratura, tendo retornado para a atividade anterior menos de dois meses depois. Recentemente o Desembargador aposentado Vladimir Passos de Freitas relacionou vários juízes que prestaram outros concursos e publicou interessante texto no sítio Consultor Jurídico (“Fatores diversos levam juízes e promotores a sair da carreira”).
            Juízes, ao contrário do que muitos pensam, não raramente enfrentam, como certa vez ouvi na Escola da Magistratura, mais restrições do que os padres. O volume de trabalho é invencível. O Conselho Nacional de Justiça concluiu recentemente, depois de um amplo estudo, que o Judiciário, com a estrutura que possui, não consegue produzir mais do que vem produzindo. O número de ajuizamentos sempre supera o de desfechos. De nada adiantaria um magistrado trabalhar 18 horas por dia, pois seu serviço não estaria em dia. Ao contrário, adoeceria. Aliás, muitos adoecem...
            E não há como decidir sem condições físicas e muito menos mentais. Chega um certo momento do dia em que o desgaste mental pode “emperrar” tudo. Eu costumo dizer, comparativamente, para os meus alunos: fiquem jogando xadrez o dia todo e verifiquem como estarão no final da tarde!
            O trabalho do juiz é solitário, sem válvulas de escape. Enquanto delegado de polícia eu às vezes optava por levar as correspondências ao correio, fazia patrulhamento e saía das “quatro paredes”, via gente, contemplava o céu azul... Na magistratura é difícil surgirem momentos de descontração. E quando a gente se esforça para parar (até para se preservar de lesões por esforços repetitivos) e tomar aquele cafezinho, sempre tem alguém que não viu o que foi feito e que diz: “funcionário público é isso aí... só fica tomando café...”.
            Se o juiz é simpático, tem gente que confunde as coisas. Se é sério, isso muitas vezes é confundido com soberba, muito embora uma coisa nada tenha a ver com a outra.
            Se um advogado vira amigo do juiz, às vezes ele sofre discriminação dos próprios colegas e se o juiz julgar o pedido dele favorável, alguém poderá dizer que foi por conta da amizade. É por isso que às vezes as pessoas preferem não se aproximar do juiz...
            Em alguns casos, se o juiz julga improcedente o pedido, o profissional “leva para o lado pessoal”... Não entende que o juiz tem e deve mesmo ter um outro olhar... Que tem um “ângulo de visão” diferenciado... Que tem as suas próprias teses. A partir daquele momento, haverá risco de eventual admiração do profissional pelo julgador se transformar em ácidas críticas feitas no calor da emoção (principalmente agora que as redes sociais e o Whats App estão à disposição), sem que o crítico antes se acautele e analise tudo com bom senso, tentando se colocar no lugar do magistrado.
            Requerer não gera responsabilidade, mas decidir gera... Por isso, decidir, obviamente, é muito mais difícil. O juiz, por ex., se não fiscalizar os recolhimentos de custas, tem de pagar “do bolso”. E nem sempre tudo o que acontece lá fora acaba sendo fielmente demonstrado no processo. Em suma: quem requer tem um convencimento formado com o processo e com aquilo que ouviu, sentiu e enfrentou antes do ajuizamento. E o juiz, por mais que tenha de ser sensível, precisa fundamentar o que decide e não pode, por ex., explicar que ficou com dó da parte. Só pode se pautar no que ficou comprovado dentro do processo. Conforme se costuma dizer, “o que não está nos autos, não está no mundo!”.
            Depois de uma audiência triste sobre família sendo desfeita ou estupro de criança, por ex., ainda que o juiz aja com profissionalismo, nem sempre é fácil se recompor e continuar decidindo tranquilamente os demais casos. O juiz não é de ferro!
            A incompreensão de muita gente causa tristeza, pois é mais fácil culpar o magistrado pela “lentidão” da resposta jurisdicional do que entender a sua situação. E quem não é juiz muitas vezes não entende que determinados casos não podem ser julgados rapidamente, ou seja, que a melhor decisão é aquela que surge depois do amadurecimento da convicção.
            Paralelamente, o juiz atualmente tem de dar inúmeras satisfações sobre os seus números aos setores controladores da “produção”, como a Corregedoria e o Conselho Nacional de Justiça. Para mim, esse é um dos grandes problemas. Não que não ache que o juiz não tenha de ser monitorado... O problema é que na maioria das vezes os controladores estão preocupados com a quantidade e não com a qualidade das decisões. E para se decidir com atenção e bom nível de detalhamento o juiz acaba demorando mais e os processos acabam se acumulando. Da minha parte, continuo acreditando que é melhor um caso “bem cuidado” do que vários analisados e decididos de qualquer jeito, como se cada decisão não interferisse sobremaneira nas vidas de várias pessoas. Fazer justiça não combina com “linha de produção”!
            O juiz tem de ficar atento, ainda, para guardar coerência a respeito do que decide, já que de certa forma gera precedentes e não pode fugir muito da sua linha de entendimento, pelo menos não sem antes justificar a mudança de postura. Por isso, determinar que uma creche receba um garoto mesmo sem ter vaga, só porque a mãe que deixar o filho mais perto de casa, poderá implicar na aceitação de outros pedidos e na inviabilização do serviço, com prejuízo para todos. Nem sempre é tão simples assegurar direitos que o legislador criou sem se preocupar com a maneira de dar efetividade a eles.
            Enfim, o juiz não consegue agradar a todos... E nem conseguiria. Deseja, apenas, ser entendido não como vilão, mas como apenas mais uma vítima de um sistema que não criou e que precisa ser todo repensado.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico

(publicado no Diário de Penápolis de 25/9/2014)

Encontrou Jesus?

(visite facebook Adriano Ponce Jurídico)
            A nossa legislação sempre dedicou atenção à religião, mas nem todos acreditam no poder ressocializador dela.
            No preâmbulo da Constituição Federal, muito embora o nosso Estado seja laico, ou seja, o Brasil não adote religião oficial (que era a católica na Constituição do Império de 1824), consta que ela foi promulgada “sob a proteção de Deus”, disposição que ainda gera polêmica, mas que está sacramentada na Lei Maior e foi utilizada em Cartas anteriores.
            A Constituição trata como “inviolável” a liberdade de consciência e de crença. Condena discriminação em razão da religião. Garante o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Enfatiza que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei. Proíbe União, Estados, Distrito Federal e Municípios de estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. Prevê que ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. Garante o efeito civil do casamento religioso. Veda a instituição de impostos sobre templos de qualquer culto. Elenca, no seu art. 5º, dentre as chamadas “cláusulas pétreas” (as regras sobre direitos e garantias individuais que não podem ser abolidas por emendas constitucionais), que é assegurada a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.
            No que tange aos estabelecimentos prisionais, a Lei Federal 7.210/1984, conhecida “Lei de Execução Penal”, ressalta que a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. E trata especificamente da assistência religiosa...
            Muitas vezes o indivíduo se apresenta para ser interrogado e faz questão de deixar claro que está arrependido e que “se converteu” na cadeia. E nessas horas muita gente “torce o nariz” por entender, de forma generalizada e apressada, que tudo não passa de um “teatro” para sensibilizar o juiz (muito embora a “conversão” não isente ninguém da responsabilidade penal). Acontece também de a testemunha, quando o juiz a questiona com um pouco mais de veemência para confirmar se de fato fala a verdade, responder: “eu sou crente e por isso não minto”. Nessas horas há quem encare essas falas, de forma expressa ou velada, com desconfiança, ironia ou até com uma certa dose de humor, o que retrata evidente desrespeito. Isso porque existe mesmo a possibilidade de a pessoa invocar determinada crença para tentar maquiar aquilo que realmente é e realmente pensa ou deseja. Ocorre que nem todo mundo é dissimulado. Não devemos receber a assertiva de que a pessoa “encontrou Jesus” (só para dar um exemplo, pois não estou aqui para discutir o que ou quem deve ou não deve ser reverenciado) sem acreditar nessa possibilidade e na mudança que a religiosidade é capaz de introduzir na vida de uma pessoa e de quem está à sua volta. E tem mais: tem gente que não está acostumada a ouvir o outro a falar da fé porque muita gente tem vergonha de assumir a sua e de invocá-la com frequência e difundi-la... Por isso, a pessoa pode tanto ter escolhido o bom caminho quanto se convencido de que deve falar disso sempre que puder (o que acaba aborrecendo alguns)...
            A falibilidade é inerente ao ser humano. Se o indivíduo bem educado e que dispõe de todas as condições para ser uma pessoa de bem acaba falhando, o que dizer daquele que muitas vezes não recebeu nem educação, nem atenção? O que esperar de quem cresceu vendo os pais transgredirem? E como alguém que veio a delinquir por conta disso pode, convivendo com muita gente de índole criminosa, “dar a volta por cima”? Às vezes, só se “convertendo” mesmo, ou seja, se reaproximando da crença que conheceu na infância ou passando a acreditar em outra que defenda bons valores...
            Por isso, sempre que alguém diz que “encontrou Jesus”, procuro receber a afirmação com bastante alegria e prefiro acreditar que isso realmente aconteceu. Há que reavive a sua fé e acabe tendo “recaídas”, o que faz parte da falibilidade a que já me referi. O que não se pode negar, todavia, é que a assistência religiosa aos presos e às pessoas que enfrentam complexos problemas que a vida impõe pode acabar sendo a “última saída” e, quando o atormentado investe nele e acredita, pode acabar sendo a solução.
            Espero que os religiosos continuem insistindo nas visitas aos presídios, ainda que enfrentem alguma resistência de servidor ou mesmo de certo grupo de presos. Tomara que as autoridades reflitam sobre a importância de favorecer cada vez mais esses contatos! O preso pode até trabalhar na difusão religiosa dentro do presídio e dessa forma conseguir remição da pena, pois a Lei de Execução Penal não distingue o tipo de atividade que justifica esse benefício.
            E quanto a nós, que nem sempre somos muito melhores do que aqueles presos (há quem já tenha falhado muito mais), que consigamos, doravante, não ridicularizar quem se propõe a anunciar a mudança de vida e a retomada da fé, mas aplaudir essa escolha, que apesar de ser boa, nem sempre é feita com a facilidade que deveria, mas, não há dúvida, merece todo o incentivo!
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
(publicado na Revista Comunica de set/2014 e no Diário de Penápolis de 11/9/2014)