Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

25 de set. de 2014

O ponto de vista do juiz

           Tenho escrito bastante desde 1999 com os objetivos de difundir o Direito, induzir reflexões sobre as carreiras jurídicas e os cotidianos policial e forense e principalmente aprimorar meus pontos de vista.
            Não tenho qualquer pretensão de que os meus textos se tornem “tijolos de um muro de lamentações”, mas a notícia abaixo é uma prova de que a magistratura está longe de ser um lugar confortável para se trabalhar e entendi que deveria tratar do tema.
            Em julho de 2013 causou perplexidade a notícia de que Cecília de Moura Barbosa Lima, que ocupava o cargo de analista judiciário no TRE-MG, assumiu o concurso para juíza de direito no Tribunal mineiro e desistiu da magistratura, tendo retornado para a atividade anterior menos de dois meses depois. Recentemente o Desembargador aposentado Vladimir Passos de Freitas relacionou vários juízes que prestaram outros concursos e publicou interessante texto no sítio Consultor Jurídico (“Fatores diversos levam juízes e promotores a sair da carreira”).
            Juízes, ao contrário do que muitos pensam, não raramente enfrentam, como certa vez ouvi na Escola da Magistratura, mais restrições do que os padres. O volume de trabalho é invencível. O Conselho Nacional de Justiça concluiu recentemente, depois de um amplo estudo, que o Judiciário, com a estrutura que possui, não consegue produzir mais do que vem produzindo. O número de ajuizamentos sempre supera o de desfechos. De nada adiantaria um magistrado trabalhar 18 horas por dia, pois seu serviço não estaria em dia. Ao contrário, adoeceria. Aliás, muitos adoecem...
            E não há como decidir sem condições físicas e muito menos mentais. Chega um certo momento do dia em que o desgaste mental pode “emperrar” tudo. Eu costumo dizer, comparativamente, para os meus alunos: fiquem jogando xadrez o dia todo e verifiquem como estarão no final da tarde!
            O trabalho do juiz é solitário, sem válvulas de escape. Enquanto delegado de polícia eu às vezes optava por levar as correspondências ao correio, fazia patrulhamento e saía das “quatro paredes”, via gente, contemplava o céu azul... Na magistratura é difícil surgirem momentos de descontração. E quando a gente se esforça para parar (até para se preservar de lesões por esforços repetitivos) e tomar aquele cafezinho, sempre tem alguém que não viu o que foi feito e que diz: “funcionário público é isso aí... só fica tomando café...”.
            Se o juiz é simpático, tem gente que confunde as coisas. Se é sério, isso muitas vezes é confundido com soberba, muito embora uma coisa nada tenha a ver com a outra.
            Se um advogado vira amigo do juiz, às vezes ele sofre discriminação dos próprios colegas e se o juiz julgar o pedido dele favorável, alguém poderá dizer que foi por conta da amizade. É por isso que às vezes as pessoas preferem não se aproximar do juiz...
            Em alguns casos, se o juiz julga improcedente o pedido, o profissional “leva para o lado pessoal”... Não entende que o juiz tem e deve mesmo ter um outro olhar... Que tem um “ângulo de visão” diferenciado... Que tem as suas próprias teses. A partir daquele momento, haverá risco de eventual admiração do profissional pelo julgador se transformar em ácidas críticas feitas no calor da emoção (principalmente agora que as redes sociais e o Whats App estão à disposição), sem que o crítico antes se acautele e analise tudo com bom senso, tentando se colocar no lugar do magistrado.
            Requerer não gera responsabilidade, mas decidir gera... Por isso, decidir, obviamente, é muito mais difícil. O juiz, por ex., se não fiscalizar os recolhimentos de custas, tem de pagar “do bolso”. E nem sempre tudo o que acontece lá fora acaba sendo fielmente demonstrado no processo. Em suma: quem requer tem um convencimento formado com o processo e com aquilo que ouviu, sentiu e enfrentou antes do ajuizamento. E o juiz, por mais que tenha de ser sensível, precisa fundamentar o que decide e não pode, por ex., explicar que ficou com dó da parte. Só pode se pautar no que ficou comprovado dentro do processo. Conforme se costuma dizer, “o que não está nos autos, não está no mundo!”.
            Depois de uma audiência triste sobre família sendo desfeita ou estupro de criança, por ex., ainda que o juiz aja com profissionalismo, nem sempre é fácil se recompor e continuar decidindo tranquilamente os demais casos. O juiz não é de ferro!
            A incompreensão de muita gente causa tristeza, pois é mais fácil culpar o magistrado pela “lentidão” da resposta jurisdicional do que entender a sua situação. E quem não é juiz muitas vezes não entende que determinados casos não podem ser julgados rapidamente, ou seja, que a melhor decisão é aquela que surge depois do amadurecimento da convicção.
            Paralelamente, o juiz atualmente tem de dar inúmeras satisfações sobre os seus números aos setores controladores da “produção”, como a Corregedoria e o Conselho Nacional de Justiça. Para mim, esse é um dos grandes problemas. Não que não ache que o juiz não tenha de ser monitorado... O problema é que na maioria das vezes os controladores estão preocupados com a quantidade e não com a qualidade das decisões. E para se decidir com atenção e bom nível de detalhamento o juiz acaba demorando mais e os processos acabam se acumulando. Da minha parte, continuo acreditando que é melhor um caso “bem cuidado” do que vários analisados e decididos de qualquer jeito, como se cada decisão não interferisse sobremaneira nas vidas de várias pessoas. Fazer justiça não combina com “linha de produção”!
            O juiz tem de ficar atento, ainda, para guardar coerência a respeito do que decide, já que de certa forma gera precedentes e não pode fugir muito da sua linha de entendimento, pelo menos não sem antes justificar a mudança de postura. Por isso, determinar que uma creche receba um garoto mesmo sem ter vaga, só porque a mãe que deixar o filho mais perto de casa, poderá implicar na aceitação de outros pedidos e na inviabilização do serviço, com prejuízo para todos. Nem sempre é tão simples assegurar direitos que o legislador criou sem se preocupar com a maneira de dar efetividade a eles.
            Enfim, o juiz não consegue agradar a todos... E nem conseguiria. Deseja, apenas, ser entendido não como vilão, mas como apenas mais uma vítima de um sistema que não criou e que precisa ser todo repensado.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico

(publicado no Diário de Penápolis de 25/9/2014)

Encontrou Jesus?

(visite facebook Adriano Ponce Jurídico)
            A nossa legislação sempre dedicou atenção à religião, mas nem todos acreditam no poder ressocializador dela.
            No preâmbulo da Constituição Federal, muito embora o nosso Estado seja laico, ou seja, o Brasil não adote religião oficial (que era a católica na Constituição do Império de 1824), consta que ela foi promulgada “sob a proteção de Deus”, disposição que ainda gera polêmica, mas que está sacramentada na Lei Maior e foi utilizada em Cartas anteriores.
            A Constituição trata como “inviolável” a liberdade de consciência e de crença. Condena discriminação em razão da religião. Garante o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Enfatiza que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei. Proíbe União, Estados, Distrito Federal e Municípios de estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. Prevê que ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. Garante o efeito civil do casamento religioso. Veda a instituição de impostos sobre templos de qualquer culto. Elenca, no seu art. 5º, dentre as chamadas “cláusulas pétreas” (as regras sobre direitos e garantias individuais que não podem ser abolidas por emendas constitucionais), que é assegurada a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.
            No que tange aos estabelecimentos prisionais, a Lei Federal 7.210/1984, conhecida “Lei de Execução Penal”, ressalta que a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. E trata especificamente da assistência religiosa...
            Muitas vezes o indivíduo se apresenta para ser interrogado e faz questão de deixar claro que está arrependido e que “se converteu” na cadeia. E nessas horas muita gente “torce o nariz” por entender, de forma generalizada e apressada, que tudo não passa de um “teatro” para sensibilizar o juiz (muito embora a “conversão” não isente ninguém da responsabilidade penal). Acontece também de a testemunha, quando o juiz a questiona com um pouco mais de veemência para confirmar se de fato fala a verdade, responder: “eu sou crente e por isso não minto”. Nessas horas há quem encare essas falas, de forma expressa ou velada, com desconfiança, ironia ou até com uma certa dose de humor, o que retrata evidente desrespeito. Isso porque existe mesmo a possibilidade de a pessoa invocar determinada crença para tentar maquiar aquilo que realmente é e realmente pensa ou deseja. Ocorre que nem todo mundo é dissimulado. Não devemos receber a assertiva de que a pessoa “encontrou Jesus” (só para dar um exemplo, pois não estou aqui para discutir o que ou quem deve ou não deve ser reverenciado) sem acreditar nessa possibilidade e na mudança que a religiosidade é capaz de introduzir na vida de uma pessoa e de quem está à sua volta. E tem mais: tem gente que não está acostumada a ouvir o outro a falar da fé porque muita gente tem vergonha de assumir a sua e de invocá-la com frequência e difundi-la... Por isso, a pessoa pode tanto ter escolhido o bom caminho quanto se convencido de que deve falar disso sempre que puder (o que acaba aborrecendo alguns)...
            A falibilidade é inerente ao ser humano. Se o indivíduo bem educado e que dispõe de todas as condições para ser uma pessoa de bem acaba falhando, o que dizer daquele que muitas vezes não recebeu nem educação, nem atenção? O que esperar de quem cresceu vendo os pais transgredirem? E como alguém que veio a delinquir por conta disso pode, convivendo com muita gente de índole criminosa, “dar a volta por cima”? Às vezes, só se “convertendo” mesmo, ou seja, se reaproximando da crença que conheceu na infância ou passando a acreditar em outra que defenda bons valores...
            Por isso, sempre que alguém diz que “encontrou Jesus”, procuro receber a afirmação com bastante alegria e prefiro acreditar que isso realmente aconteceu. Há que reavive a sua fé e acabe tendo “recaídas”, o que faz parte da falibilidade a que já me referi. O que não se pode negar, todavia, é que a assistência religiosa aos presos e às pessoas que enfrentam complexos problemas que a vida impõe pode acabar sendo a “última saída” e, quando o atormentado investe nele e acredita, pode acabar sendo a solução.
            Espero que os religiosos continuem insistindo nas visitas aos presídios, ainda que enfrentem alguma resistência de servidor ou mesmo de certo grupo de presos. Tomara que as autoridades reflitam sobre a importância de favorecer cada vez mais esses contatos! O preso pode até trabalhar na difusão religiosa dentro do presídio e dessa forma conseguir remição da pena, pois a Lei de Execução Penal não distingue o tipo de atividade que justifica esse benefício.
            E quanto a nós, que nem sempre somos muito melhores do que aqueles presos (há quem já tenha falhado muito mais), que consigamos, doravante, não ridicularizar quem se propõe a anunciar a mudança de vida e a retomada da fé, mas aplaudir essa escolha, que apesar de ser boa, nem sempre é feita com a facilidade que deveria, mas, não há dúvida, merece todo o incentivo!
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
(publicado na Revista Comunica de set/2014 e no Diário de Penápolis de 11/9/2014)


21 de set. de 2014

A rotina do juiz

(confira Facebook Adriano Ponce Juridico)
A busca da solução de problemas por intermédio do Judiciário tem se intensificado a cada dia. Tem gente “delegando” tudo... Às vezes detecto comodismo exagerado.
O resultado é um acúmulo invencível de trabalho para os juízes (que em Penápolis presidem cerca de 14 mil ações cada!), os quais, diante das variadas prioridades estabelecidas em lei, às vezes têm dificuldade para identificar as “mais prioritárias”. A aflição do juiz já começa nesse momento: separar o que é mais importante dentre as várias urgências cotidianas.
Quando o magistrado se dirige ao Fórum, sempre tem na cabeça uma proposta de trabalho para aquele dia. Normalmente dá prioridade para os processos que primeiramente chegaram às suas mãos. Ocorre que sempre acaba sendo surpreendido com questões que têm de ser resolvidas de imediato: pedidos de prisão (do investigado perigoso; do agressor da mulher; do devedor de pensão alimentícia); pedidos de liberdade (de quem pagou a pensão, por ex.); requerimentos de busca domiciliar (para o combate ao tráfico ou recuperação de objetos subtraídos que poderão tomar rumo ignorado); pedidos liminares (internação ou cirurgia urgente, medicamento imprescindível, retomada da posse); entraves relativos às audiências do dia (problemas para apresentações de presos etc.); eliminações de registros na Serasa (porque a parte precisa fazer determinado negócio e está “negativada”); atendimentos de profissionais e servidores; orientações ao cartório; pacificações de conflitos internos; questões administrativas (prestar informações ao Tribunal e à Corregedoria, agendar férias, manipular bancos dados como o BacenJud, Renajud, ARisp etc.).
Não raramente essas questões todas consomem a manhã inteira e alguma coisa ainda fica para trás. Durante a tarde o magistrado se envolve em audiências e para que a produção de prova seja bem feita ele precisa tentar folhear o processo antes e se empenhar nas oitivas (afinal, é o destinatário da prova, tem de formar seu convencimento e tem um compromisso consigo mesmo de tentar buscar a verdade e bem decidir).
Ao final da tarde, ele volta a se dedicar às deliberações mais complexas e às sentenças... Mas o tempo será escasso para dar conta disso tudo. Já proferi sentenças criminais com vários réus e sobre vários delitos, interceptações telefônicas, vários bens apreendidos e mais de uma dezena de volumes (cada um tem 200 folhas) que consumiram uma semana... A consequência é que as tarefas se acumulam em proporção geométrica e preocupante...
Aquele dia em que não há audiências acaba sendo quase que integralmente dedicado às análises mais complexas, ou seja, não há grande produtividade em números. Um único caso pode demandar o dia todo...
Ainda que o juiz conte com assessores que o auxiliem bastante na tarefa de fazer triagem dos casos e de rascunhar decisões em conformidade com os seus entendimentos, a conferência do trabalho realizado por vezes é morosa, pois o processo é uma coisa muito meticulosa. O juiz precisa se atentar para a regularidade do procedimento adotado e para a utilidade de cada documento juntado. Não tem a pretensão de “azucrinar” a parte ou o advogado ao cobrar esclarecimentos, como pensam alguns, mas de se manter fiel à sua linha de raciocínio, de se preservar dos riscos (que ele assume muito mais do que qualquer outro ocupante de carreira jurídica) e de fazer cumprir a lei conforme entenda adequado.
Em Penápolis, porque não contamos com Vara Federal, absorvemos ações previdenciárias e execuções fiscais federais. Numa Vara cumulativa (com competência cível e criminal), ao contrário do que ocorre em Varas especializadas, o juiz tem ainda uma dificuldade extra: o tempo todo fica alternando a análise de questões de natureza extremamente diversa. Atua em praticamente todos os ramos do Direito. Por isso, precisa tentar se atualizar acerca de tudo que está sendo decidido pelos Tribunais e de todas as inovações legislativas. Tem de dedicar alguns minutos do dia para se inteirar; pelo menos para ler um boletim jurídico e as leis promulgadas. Imagine se um médico tivesse de atender, todos os dias, sem a possibilidade de encaminhar os pacientes para especialista algum, com rapidez e precisão, casos de oftalmologia, cardiologia, dermatologia, pneumologia, aparelho digestivo, ortopedista, urologia e outras complexas especialidades? É o que o juiz de Vara cumulativa faz: clínica geral! E não pode se limitar a uma breve consulta... Não pode medicar e encaminhar... Tem de ir até o fim... O “paciente” quer a “cura”...
As questões cíveis, por exemplo, englobam direitos das pessoas, obrigações, Direito de Família, contratos, empresarial, dentre outros e envolvem uma infinidade de temas: como funciona a despesca na piscicultura; o motivo de a semente de milho não ter germinado satisfatoriamente; a razão de o motor de caminhão retificado ter apresentado defeito; se os danos no imóvel foram causados pelo inquilino ou pelo desgaste natural; se a criança vai ficar bem com o pai ou com a mãe; se o poder público está sendo omisso ou se não é razoável exigir que determinado serviço funcione de outra maneira etc. Muitas vezes o juiz nomeia perito, mas ele não está vinculado aos laudos, que não são os únicos elementos de convicção. O juiz tem de acabar aprendendo um pouco de cada coisa, pois muitas vezes as testemunhas contrariam frontalmente as conclusões periciais. Tudo isso leva muito tempo... E a maior parte dos casos não chega “redondinha” para julgamento...
O pior de tudo é que geralmente quem critica tem noção dessas dificuldades, mas acaba confortavelmente elegendo o juiz como culpado quando as expectativas não são correspondidas por outras razões. Em resumo: o juiz é muito mais julgado do que julga! Quando julga tem de fundamentar com clareza e transparência. E quase sempre é julgado às escondidas, sem direito de se defender, por conta de alguma “frustração” mal resolvida...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano/Lins(SP)


4 de set. de 2014

Entre a cruz e a espada

Vigora no nosso Direito o princípio da livre convicção motivada, que, em síntese, significa que a maciça maioria das situações postas em Juízo pode ser comprovada por quaisquer meios lícitos de prova, isso sem que haja hierarquia entre elas. Cabe ao julgador, diante do conjunto probatório, apenas fundamentar quais foram os elementos preponderantes à formação do seu convencimento.
Nas ações de aposentadoria rural, a prova testemunhal assume especial importância. Grosso modo, para quem atuou a vida inteira na roça, trabalhando na informalidade, sem registro em carteira, a lei exige apenas início de prova escrita (documentos antigos que apontem a atuação rurícola) e admite que o período todo seja ratificado por testemunhas, tudo porque no passado o vínculo com a terra, principalmente no que tange às mulheres, dificilmente era documentado.
Sem querer polemizar, tenho ponderado que infelizmente o cotidiano forense tem me obrigado a ser mais rigoroso na análise da prova oral. Isso porque é comum depararmos com alguns advogados orientando testemunhas de forma velada ou até explícita nos corredores ou na frente do Fórum. Às vezes o magistrado passa ao lado e o “diretor do teatro” não se abala...
Na Comarca de Cafelândia, por exemplo, comparei os relatos de uma testemunha (que depunha semanalmente, diga-se de passagem) com o seu depoimento pessoal no processo em ela mesma tinha conseguido a aposentadoria e constatei que não havia coerência entre as falas no que tange às propriedades rurais em que ela teria atuado. Era, em verdade, uma testemunha profissional.
Em Penápolis(SP), uma testemunha, ao ingressar no prédio, com o fito de saber em que sala seria ouvida, acabou apresentando na portaria uma carta por meio da qual uma advogada a tinha recomendado a passar antes no seu escritório para que fosse orientada sobre o que deveria dizer para que o desfecho fosse de procedência. O “ensaio”, portanto, seria feito em outro local.
É evidente que a maioria dos advogados atua de acordo com a lei e com os preceitos éticos, mas como o juízo acaba tendo dificuldade para comprovar algumas irregularidades e não pode discriminar o trabalho de quem quer que seja, tenho defendido que precisa adotar posicionamento uniforme que, se por um lado, reconheço, pode deixar alguém que faça jus ao benefício sem ele; por outro, evita o deferimento da aposentadoria “no atacado”, com grande impacto para o erário.
O Poder Judiciário não é entidade beneficente e o ônus da prova incumbe a quem alega. Cabe à parte diligenciar em repartições públicas, sindicatos, cartórios, escritórios e outros. Mas, via de regra, a parte tem se contentado com documentos que referenciam apenas o cônjuge como rurícola e tentado estender essa condição a si mesma. A prática mais comum é apresentar certidão de casamento que menciona o marido como lavrador para sustentar que a mulher, apontada como dona-de-casa no mesmo documento, também se dedicou à agricultura.
Penso que o Judiciário deve conduzir ações previdenciárias com responsabilidade, se empenhar na colheita da prova oral, explorar detalhes e contradições, pois não se cuida de apenas deferir mais um benefício, mas de adotar posicionamento que de certa forma vinculará o julgador em casos análogos, já que toda mudança de posicionamento deverá ser justificada, sob pena até de averiguação de inépcia profissional.
Defendo que não basta, para a aposentadoria, que duas testemunhas digam que a parte “plantou arroz, feijão e milho para o José de tal, para o Manoel de tal e para o Antonio de tal”, muitas vezes sem qualquer referência ao nome da propriedade rural; e que a parte foi rurícola “a vida inteira”. Não me sinto confortável com a procedência nessas circunstâncias.
Fico “entre a cruz e a espada” quando a prova escrita é fraca, pois isso pode acontecer ou porque a parte de fato era lavradora e não conseguiu recolher mais documentos ou porque não foi bem orientada a esse respeito. E nesse caso a dedicação à roça pela vida toda poderá não ser recompensada com o benefício. Mas como a credibilidade na prova oral ficou abalada em razão das situações expostas (muito embora eu nunca tenha cogitado generalizar), acabo tendo de seguir uma linha coerente de interpretação que, no mais das vezes, exige bom amparo documental à pretensão e atenção aos detalhes, como sotaque, sinais físicos comuns em rurícolas, naturalidade ao falar da vida na roça etc.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito em Penápolis(SP)
Professor no Unisalesiano Lins(SP)
(publicado no Diário de Penápolis de 4.9.2014)