Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

28 de fev. de 2015

A influência dos fatores psicológicos inconscientes na tomada de decisão


O psicanalista David E. Zimerman publicou interessante estudo intitulado “A influência dos fatores psicológicos inconscientes na decisão jurisdicional” na Revista Themis, editada pela Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (vol. 4, 2006).
O texto favorece a compreensão de como cada um de nós toma decisões e daquilo que pode interferir na convicção do julgador. É útil não só para magistrados.
Zimerman explica que a capacidade de julgar depende diretamente de como é o juízo crítico de cada pessoa em relação ao seu mundo interno. Quem possui preconceitos (pré-conceitos) rígidos não alcança a necessária isenção.
Às vezes, quem julga tem pensamentos, sentimentos e intenções que não consegue assumir por lhe serem desagradáveis, intoleráveis ou inconscientes. A percepção sobre o outro pode ser distorcida em razão da atribuição de tudo isso à pessoa julgada.
A capacidade de empatia, ou seja, de o julgador se colocar no lugar do outro, de se sentir junto com ele, é de extrema importância.
Aquele que, mesmo por confusão, discrimina equivocadamente, pode vir a abusar de incriminar ou de recriminar a pessoa julgada. Ao analisar uma briga de casal, por ex., o julgador pode se manter neutro (que não é o mesmo que ser indiferente) ou pode se deixar levar por situações familiares presenciadas ou vivenciadas e tomar partido, ainda que inconscientemente. A identificação (empatia) com a vítima ou o agressor, se não for excessiva, pode ser saudável para a melhor decisão. O excesso, ao contrário, comprometerá a justiça da conclusão.
O estudioso relaciona dez traços marcantes que caracterizam tipos de personalidades. Ao analisá-los detidamente, o julgador poderá perceber a si mesmo e compreender melhor as partes, facilitando, dessa forma, o seu trabalho. As características são inerentes a todos os seres humanos e se combinam numa mesma pessoa, em variados graus. Nem sempre são prejudiciais quando não há excessos. Semelhanças ou divergências intensas entre traços de personalidade do julgador e da pessoa julgada, segundo Zimerman, podem levar à benevolência ou à repulsa. Vejamos o que pode, de forma inconsciente, causar a preponderância de determinada personalidade:
a) depressiva: o julgador que se sente corresponsável pelas tragédias tem dificuldade para condenar o outro;
b) paranóide: o julgador desconfiado, que mantém posição defensiva, pode reagir de forma aparentemente agressiva ou não condenar por receio de vingança;
c) maníaca: o otimismo exagerado pode fazer com que o julgador enfrente as questões com superficialidade e de forma jocosa para fugir de quadro depressivo;
d) esquizóide: a personalidade arredia, esquisita, pode gerar da indiferença à arrogância;
e) fóbica: a pessoa evita situações que a angustiam e podem lhe provocar fobia e por isso pode se desgastar muito ao ter de tomar uma delicada decisão;
f) obsessivo-compulsiva: a prevalência dessas características pode levar o julgador a ser radical e implacável, sem flexibilidade consigo e com os outros. O receio de errar pode gerar constante estado de dúvida e, em consequência, desgaste excessivo ao decidir;
g) histérica: a instabilidade de humor tem a ver com a falta de habilidade para enfrentar frustrações, e nesse caso o julgador pode ser imprevisível, ter reações típicas de crianças.
O julgador pode se deparar, ainda, com o psicopata, que cativa o outro até que tenha condições de prejudicá-lo; o falso, que inconscientemente se ilude ao passar a impressão de sucesso e felicidade, muito embora seja uma pessoa vazia; e com o narcisista, que tem dificuldade para lidar com críticas e se acha ou o melhor, ou o pior.
A ideologia do julgador interfere na sua convicção (valores pessoais sobre moral, ética, política, religião, cultura etc.).
Não podemos nos esquecer de que ele sofre pressões externas extraprofissionais (familiares etc.); profissionais (demanda excessiva de trabalho, condições inadequadas) e internas (diferentes tipos de ansiedades e sentimentos, como o amor, ódio, medo, vergonha, inveja, ciúme, culpas etc.).
A intolerância que o julgador possa ter em relação a algum aspecto seu que ele considera menos nobre, mas que ameaça emergir em sua consciência e conduta, pode levá-lo a sérios conflitos de valores, e daí para a crise emocional.
As perdas decorrentes das mudanças de local de trabalho e seus desdobramentos podem alimentar crises pessoais, o que não deve ser desconsiderado.
Pode ser que o julgador enfrente perda muito importante, decorrente da melancólica conclusão de que ele não atingiu as metas a que tinha se proposto e com as quais sempre sonhou.
Compreendendo tudo isso, quem tem poder de decisão poderá ficar mais atento; e os demais terão condições de compreender melhor quem julga.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
(publicado no Diário de Penápolis de 5/2/2015 e na edição de fevereiro da Revista Comunica)

Ação de interdição


Não faz muito que interroguei o “Seo” João. Portador de retardo mental grave desde o nascimento, ele vem sendo cuidado por uma tia. Foi aí que surgiu a inspiração para escrever. O contato foi marcante... inesquecível... João conseguiu se expressar relativamente bem e sorriu bastante... Para a minha satisfação, é corinthiano! Quando lhe perguntei se gostava de viver com a tia, ele comentou: “Quero ter uma companheira... Todo mundo pode né? Então também posso!”. Foi comovente ver aquele senhor de mais de 60 anos acomodado em cadeira de rodas, mesmo consciente de todas as suas limitações, ainda acreditando que poderia viver um grande amor!!! Ao comentar isso em casa, meus olhos lacrimejaram... As oitivas de interditandos, muitas vezes realizadas nas próprias residências por conta de dificuldades de locomoção (quando então normalmente deparo com aparato hospitalar e constato a dedicação de familiares ao bem-estar dos enfermos), são comoventes e de certa forma me motivam a relevar preocupações corriqueiras e a valorizar a minha saúde...
O Código Civil estabelece que “a menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil”. Por exemplo, pode contrair empréstimos, alienar patrimônio e contratar de uma forma geral.
Mas pode ser que, atingida a maioridade, por uma circunstância qualquer, a pessoa não tenha discernimento suficiente para a prática dos tais atos ou de parte deles. Pode ser também que adquira e venha a perder essa capacidade, por ex., quando a doença surge na fase adulta.
Isso pode acontecer com portadores de esquizofrenia e Mal de Alzheimer, dependentes de álcool ou drogas que desenvolvem anomalias psíquicas, vítimas de acidente vascular cerebral, portadores de sequelas de traumas (acidentes de trânsito, agressões etc.), entre outros. Cabe interdição também do surdo-mudo que não consiga exprimir a sua vontade (muito embora tenha discernimento) e do pródigo (aquele que não tem controle sobre o patrimônio, ou seja, faz negócios ruinosos).
Nesses casos, pode surgir a necessidade de manejo da ação de interdição, que, em linhas gerais, tem por objetivo o reconhecimento judicial da incapacidade (e do seu grau) e da necessidade de o incapaz passar a ser acompanhado por um curador para todos ou alguns tipos de atos.
Os artigos 1.177 e seguintes do Código de Processo Civil tratam da tramitação. A interdição pode ser requerida por parentes próximos, pelo cônjuge e pelo Ministério Público. O Judiciário avaliará se o interditando é incapaz para reger a sua pessoa e administrar os seus bens. O juiz deverá interrogá-lo para saber da sua vida e do seu patrimônio, isso se ele conseguir se manifestar. Tento sempre apurar se o relacionamento entre interditando e pretenso curador é bom e se ele está sendo devidamente assistido. A lei prevê exame médico, mas se a incapacidade for visível, entende-se que pode ser fundamentadamente dispensado pelo juiz. A sentença é inscrita no registro civil e editais são publicados com o fito de se presumir que o que foi decidido se tornou de conhecimento público. Normalmente concedo ao curador apenas poderes para administrar eventuais bens do curatelado, mas vedo alienação ou oneração do patrimônio. Quando houver necessidade disso, todavia, o juízo pode ser instado a autorizar.
Ao analisar interdição de menor de 18 anos eu já decidi pela impossibilidade jurídica do pedido. Não é necessário declarar a incapacidade de quem a própria lei já classificou como incapaz, ainda por cima de forma absoluta, como no caso dos menores de 16 anos (art. 3º do Código Civil). A curatela (representação do interditado pelo curador), ao mesmo tempo em que protege o incapaz, não deixa de ser uma restrição ao exercício dos atos da vida civil e deve ser compreendida nos seus exatos termos. Não há previsão, no ordenamento, de curatela de adolescente. Afinal, ainda que seja mental e fisicamente perfeito, não pode mesmo praticar sozinho os tais atos. A curatela dos interditos se destina a proteger pessoas cuja incapacidade não resulta da idade.
Em muitos casos a pessoa incapaz para prover o próprio sustento poderá ter direito ao benefício assistencial ao deficiente e por isso é sempre interessante que familiares promovam a sua interdição para pleitearem favores legais e se precaverem de problemas que possam derivar de atos praticados sem acompanhamento.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
Twitter @adrianoponce10

(publicado no Diário de Penápolis de 26/2/2015 e no Correio de Lins de 27/2/2015)

21 de fev. de 2015

Violência no esporte


Os noticiários esportivos, vez ou outra, retratam situações de violência ocorridas durante competições esportivas, mas nem sempre as torcidas são as protagonistas das confusões.
Alguns desentendimentos costumam envolver atletas e árbitros, atletas e seus adversários, e até mesmo, com menor freqüência, atletas de uma mesma equipe. Quem não se recorda do empurrão que Romário deu no rosto de um colega de equipe...
Mas como fica a questão da responsabilização penal dos envolvidos? E as lesões decorrentes de jogadas desleais? E as fraturas acidentais?
O contato físico é inerente a algumas modalidades de esportes como o futebol, o hockey, o basquete e o judô. Em outras modalidades ele é obrigatório, como ocorre no boxe; noutras, inexistente (tênis, vôlei etc.).
O perdedor de uma luta de boxe, por exemplo, ao receber a notícia de que foi derrotado, pode procurar a Delegacia para reclamar dos socos que recebeu durante o embate? É evidente que não... Quando opta pela prática do esporte, cada boxeador já tem conhecimento prévio da possibilidade de sofrer lesões durante as competições, e implicitamente se sujeita a receber algumas (ou muitas) pancadas. É um esporte que particularmente não me agrada, um tanto quanto difícil de se assistir...
Toda agressão ocorrida durante a prática de um esporte deve ser analisada à luz do seu regulamento. Se ela ocorreu involuntariamente, nos limites estabelecidos pelas regras do jogo, não há que se falar em crime ou contravenção.
Se, contudo, o atleta apontado como agressor tiver extrapolado involuntariamente os limites, ou tiver agido como dolo, com intenção de ferir, deverá responder criminalmente. Como exemplo podemos mencionar o violento soco recebido por um jogador de futebol gaúcho que sofreu traumas neurológicos cujas seqüelas se prolongam até os dias atuais. Também praticará lesão corporal o boxeador que investir sobre seu adversário durante os intervalos entre os rounds. Agredir o juiz não está nas regras, e sempre configurará infração penal...
As práticas esportivas são regulamentadas pelo Poder Público, e as regras devem ser observadas. Cada ato que vá além do permitido é passível de responsabilização culposa (por negligência, imprudência ou imperícia) ou dolosa (intencionalmente).
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais já decidiu que o excesso durante a defesa pode não ser censurável, ou seja, pode ser tolerado pelo Direito, quando deriva de justificável medo, surpresa ou perturbação de ânimo.
De qualquer forma, danos à integridade física ou à vida ocorridos durante a estrita observância dos regulamentos constituem exercício regular de direito. Como bem salienta Julio Fabbrini Mirabete (Código Penal Interpretado, Ed. Atlas), se o Estado autoriza, regulamenta e até incentiva a prática de esportes, não pode punir aqueles que, exercitando um direito, acabam causando dano.
E os xingamentos? Os crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação) exigem que o ofensor esteja movido por específica intenção de atingir a dignidade do ofendido. Nossos Tribunais já decidiram que se a ofensa tiver sido fruto de incontinência verbal, provocada por explosão emocional ocorrida em acirrada discussão, não se configura crime contra a honra. O juiz poderá deixar de aplicar a pena quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria; ou no caso de retorsão imediata que consista em outra injúria. Pode haver, portanto, isenção da pena àquele que, por irritação ou ira justificada, ofende o provocador ou injuriador. Já imaginaram se todos os palavrões e xingamentos tivessem que ser registrados? Ao lado do Morumbi precisaríamos disponibilizar dezenas de Delegados e Escrivães de Polícia para o interminável trabalho (principalmente quando o “Timão” estivesse jogando, diante da “dor-de-cotovelo” que desperta nas demais torcidas – brincadeirinha!).
É evidente que cada caso deverá ser minuciosamente analisado para que os envolvidos não se aproveitem da citada interpretação da lei para ofender, lesionar ou provocar seus desafetos. Cada caso é um caso... O jogador não pode, por exemplo, mostrar cartão amarelo para o árbitro.
O que importa, no entanto, é que os atletas e principalmente as torcidas estejam conscientes de que o objetivo dos encontros, mais do que vencer, é interagir, se divertir, confraternizar, promover a saúde, afinal, o esporte não tem contra-indicações. Agindo desta forma, proporcionarão “descanso” às “segundas mamães” dos árbitros, bandeirinhas, treinadores, jogadores, comentaristas, jornalistas, policiais etc.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Delegado de Polícia, Diretor da Cadeia Pública e da 37ª Ciretran de Getulina(SP)
(texto publicado na edição de 19/07/2003 do jornal “Espaço Notícias”)


Respeito aos mortos


Há alguns dias uma professora da rede pública de ensino manifestou, nas páginas de um jornal de circulação estadual, o desejo de, após o falecimento, externar a satisfação de ter exercido tão nobre profissão em vida através da instalação de uma placa na lápide de sua sepultura. Não podemos deixar de ressaltar, consideradas as dificuldades materiais e principalmente o crescente desinteresse dos jovens pelos estudos, que o exercício do magistério é mais do que uma profissão: é um verdadeiro ideal que se persegue com muito amor. Refletindo sobre o assunto, imaginei que as famílias dos policiais, por sua vez, jamais poderiam atender pedido semelhante ao da professora: a placa indicativa de que em determinado local estivesse sepultado um policial provavelmente implicaria em danos das mais variadas espécies. Jamais descansaríamos em paz...
A nossa legislação dedica especial atenção à proteção do respeito aos mortos.
A Lei Federal 5.250/1.967 – Lei de Imprensa, por exemplo, prevê que são puníveis a calúnia, a difamação ou a injúria contra a memória dos mortos.
Mas a proteção legal não pára por aí. O Código Penal destinou um capítulo especificamente para elencar quatro crimes contra o respeito aos mortos.
O artigo 209 trata do “impedimento ou perturbação de cerimônia funerária”. O cantor Zeca Pagodinho retrata, numa de suas músicas, situação que se adeqüa perfeitamente à previsão legal. Vejamos:
“entrou no velório, pulando a janela, xingou o defunto, apagou a vela, cantou a viúva, mulher de favela, deu um beijo nela, o bicho pegou, a Polícia chegou...”.
Qualquer atitude que vise impedir ou perturbar enterro ou cerimônia funerária pode implicar na imposição de pena de detenção que pode variar de 1 mês a 1 ano, ou mesmo de pena de multa, além das penas aplicáveis à violência que eventualmente venha a ser utilizada. Para alguns juristas, além da vontade livre e consciente, deve estar presente a específica finalidade de desrespeitar o morto; para outros, não importa a finalidade do agente. A proteção legal se estende ao velório, à cremação e à translação de uma sepultura para outra.
O ato de violar ou profanar sepultura ou urna funerária é punido com mais severidade: reclusão de 1 a 3 anos, e multa (artigo 212). Violar consiste em devassar, abrir sepultura ou urna funerária, não importa a finalidade (curiosidade, vontade de rever o ente querido etc.). Profanar significa desrespeitar, ultrajar ou, no lecionar de Aurélio, tratar com irreverência. Qualquer ação que recaia sobre a cova, o túmulo, os ornamentos, inscrições e objetos ligados permanentemente ao local onde encontra o cadáver pode ensejar a responsabilidade penal do(a) autor(a). A subtração de objetos que enfeitam a sepultura pode configurar furto. Os atos de derrubar cruz ou enfeite religioso e até mesmo bebida alcoólica sobre símbolo funerário já foram punidos com base neste artigo.
Se o(a) agente também vier a destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele cometerá, ainda, o crime previsto no art. 211. A pena varia de 1 a 3 anos de reclusão e multa. A ocultação de cadáver muitas vezes sucede a prática de homicídio. Se a subtração tiver por objetivo angariar cadáver para fins científicos, o fato poderá configurar furto. O exemplo mais comum do delito em estudo é o rompimento de urna para a remoção de próteses de ouro. Não é necessário que o(a) autor(a) seja movido por vingança ou cobiça: basta o desrespeito ao morto.
Por fim, o Código trata do vilipêndio a cadáver ou suas cinzas (artigo 212). O vilipêndio envolve desprezo, humilhação. Até mesmo atos que ridicularizem os esqueletos expostos em eventos científicos podem ser punidos (muitos recebem enfeites ou pontas de cigarros dos visitantes). A necrofilia (prática de ato sexual com cadáver) também configura o crime.
A proteção da lei tem razão de ser: ninguém merece passar por tudo isso justamente na hora do merecido descanso... Já bastam as humilhações que sofremos durante a nossa existência material...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Delegado de Polícia, Diretor da Cadeia Pública e da 37ª Ciretran de Getulina(SP)

(texto publicado na edição de 05/07/2003 do jornal “Espaço Notícias” de Getulina/SP)
Observação de 21/2/2015: o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que a Lei de Imprensa (Lei nº 5250/67) é incompatível com a atual ordem constitucional. Confira: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=107402



Busca pessoal


O fato de um indivíduo ter tentado se esquivar de busca pessoal anunciada por policiais militares aos frequentadores de um bar há alguns dias inspirou-me a tratar do assunto.
O art. 240, § 2º, do vigente Código de Processo Penal, autoriza a busca pessoal, popularmente conhecida como “revista”, quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou munições; objetos achados ou obtidos por meios criminosos; instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos; instrumentos utilizados para a prática de crime ou destinados a fim delituoso; objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu; cartas cujo conteúdo possa ser útil à elucidação do fato ou qualquer outro elemento de convicção.
A busca pessoal, reza o art. 244 do mesmo Código, independerá de mandado no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito.
Muitos questionam a alegada “subjetividade” de que, no seu entender, se servem determinados policiais para a realização da busca pessoal.
É evidente que “encostar no paredão” não é das experiências mais agradáveis e as críticas decorrentes de busca improdutiva sob o ponto de vista da apreensão de objetos relacionados a crimes são inevitáveis. Particularmente considero que a “produtividade” da busca pessoal não está circunscrita somente ao êxito de se encontrar indício de infração penal. Os efeitos da diligência vão além: pelo simples fato de saber que pode ser revistado a qualquer momento se despertar fundada suspeita, o cidadão já evita levar consigo arma ou qualquer outro objeto proibido. A busca pessoal, portanto, tem muito mais finalidade preventiva do que propriamente repressiva. E se o procedimento para busca fosse mais “burocrático”? Certamente a bandidagem se aproveitaria, como já se aproveita para guardar droga e objetos roubados dentro de casa, diante dos “empecilhos” legais que existem para que a busca domiciliar possa ocorrer...
Não se pode negar que é um poder delegado pelo Estado à Polícia que deve ser cautelosamente exercido para não provocar constrangimentos necessários.
Ocorre que, nos dias atuais, não se pode mais individualizar suspeitos com a facilidade de antigamente. Pessoas de bem, de boa aparência, irretocavelmente trajadas e mesmo de excelente nível social cada vez mais sucumbem às drogas na condição de usuárias ou até mesmo de traficantes (posto geralmente assumido para sustentar o vício). Não raramente são abordadas portando ilegalmente arma de fogo, conduta muitas vezes incentivada pelo aumento da criminalidade. Diante de tal constatação, as buscas pessoais, notadamente nos bares e locais malfreqüentados, principalmente no período noturno, têm se intensificado. Defronte às escolas há necessidade de que se ocorram até mesmo durante o dia, para afastar indivíduos desocupados que promovem o tráfico de drogas e até mesmo a extorsão de alunos.
A situação atual, portanto, exige muita cautela por parte da Polícia, e paciência redobrada por parte dos cidadãos de bem que eventualmente se vêem obrigados à busca pessoal. O exercício do direito de ir e vir e a proteção à tranqüilidade e, por que não, à própria dignidade das pessoas devem sucumbir, dependendo da situação, ao interesse da coletividade em preservar a ordem pública.
A legislação deixa tão clara essa intenção que permite, inclusive, que homens revistem mulheres em situações excepcionais em que não haja possibilidade de se evitar tal contato sem que haja retardamento ou prejuízo da diligência (art. 249 do CPP). Tal possibilidade existe desde 1942, época em que “suspeito era suspeito, cidadão era cidadão”. Hoje ambos se misturam como cocaína e bicarbonato no meio da multidão...
Com coerência e bom senso é possível que se evitem confrontos desnecessários entre policiais e a coletividade.
A recusa imotivada à busca pessoal, frise-se, poderá até configurar o delito de desobediência, previsto no art. 330 do Código Penal.
Havendo tratamento respeitoso por parte do policial, recomenda-se que as pessoas se submetam à busca que, na maioria dos casos, é feita em menos de um minuto. Eventuais reclamações poderão ser feitas posteriormente junto aos superiores do policial ou outros órgãos competentes. O que é preciso salientar é que nem sempre o cidadão comum compreenderá o motivo, ou seja, nem sempre terá conhecimento dos fatos que estão acontecendo ao seu redor; de que está em local duvidoso; de que alguém com características semelhantes as suas foi apontado como autor de crime etc. Podemos assegurar que na maioria das vezes a Polícia objetiva cumprir seu dever, sendo raríssimos os casos em que o policial se desvia dele para incomodar imotivadamente algum desafeto (caso em que poderá ser responsabilizado, evidentemente).
Tenham certeza de uma coisa: sem as buscas pessoais ou mesmo sem a possibilidade delas ocorrerem de forma imediata, a coletividade certamente sofreria as conseqüências da crescente audácia dos inimigos da sociedade... Compreendamos que se trata de um “mal necessário”!
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Delegado de Polícia, Diretor da Cadeia Pública e da 37ª Ciretran de Getulina(SP)
(publicado no Getulina Jornal de 9/11/2003)





Direito de “transar”?

É evidente que o termo um tanto quanto coloquial demais foi utilizado no título tão-somente para chamar a atenção (e até porque foi assim que se pronunciou uma pessoa que nos procurou recentemente), mas será que o marido detém o direito de manter relacionamento sexual com a esposa no momento em que bem entender?
Não é bem dessa maneira...
Não foi assim que pensava um indivíduo que chegou a agredir sua companheira na cidade de Guarantã(SP).
O casal havia se desentendido na noite anterior e por volta das 06 horas da manhã, quando acordou para ir ao trabalho, o rapaz exigiu que sua parceira mantivesse consigo relação sexual. Diante da negativa, ele a segurou pelos cabelos e a atingiu com tapas que provocaram um corte na parte interna dos lábios.
Inconformada, a vítima procurou pelo auxílio da polícia judiciária.
A princípio, a situação foi classificada como lesão corporal leve, mas a riqueza de desfechos que a “exigência” poderia ter propiciado nos motivou a fazer breves comentários.
O Código Civil trata do assunto nos arts. 1.556 e 1.557. O primeiro diz que o casamento pode ser anulado por erro essencial quanto à pessoa do outro. O segundo inclui entre os erros essenciais a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável, que inclui a impotência para o ato sexual, quer do homem, quer da mulher. Para a lei, a frustração da expectativa de satisfação sexual torna intolerável a vida em comum. A falta de atividade sexual decorrente de defeito físico, portanto, pode fundamentar pedido de anulação do casamento. O mesmo Código estabelece que pode fundamentar a separação judicial qualquer ato que importe grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum (art. 1572). Ao avaliar cada caso, o Poder Judiciário decidirá pela existência ou não de negativas reiteradas e injustificadas para o ato sexual em número suficiente para fundamentar a ruína do casamento. Segundo Carlos Roberto Gonçalves, “se um dos cônjuges, depois de certo tempo, passar a negar-se à prática do ato sexual, dá causa, também, à separação judicial, por infração ao dever de coabitação” (Direito de Família, Ed. Saraiva, 2002). As recusas isoladas, eventuais e/ou justificadas, é evidente, não serão bastantes à separação, e é por isso que cada caso deverá ser minuciosamente estudado.
No âmbito criminal, no entanto, a situação merece outro tratamento, tudo porque a mulher não pode ser compelida fisicamente ao ato. Já houve decisões judiciais no sentido de que a investida do homem não poderia ser classificada como crime, mas nossos tribunais têm decidido que a relação forçada configura estupro. No caso em análise, o indivíduo não forçou a cópula e, portanto, nem sequer iniciou qualquer ato executório do hediondo delito, motivo pelo qual o fato mereceu classificação inicial infinitamente mais branda.
Caso tivesse matado a companheira por causa da negativa dela sem qualquer espécie de investida para o relacionamento forçado, o fato seria classificado como homicídio qualificado e também sofreria o rigor da Lei dos Crimes Hediondos, diante da torpeza com que teria movido sua ação delituosa, ou seja, diante da repugnância do motivo à luz dos nossos costumes.
O mesmo desfecho, desta vez consumativo de atentado violento ao pudor (art. 214 do Código Penal), se daria no caso de o indivíduo ter forçado a companheira à prática de qualquer outro ato libidinoso diverso da conjunção carnal, como o sexo anal e o sexo oral.
Não existe propriamente, portanto, um “direito ao relacionamento sexual”, mas uma mera expectativa de que ele ocorra, que, nos termos da lei civil, uma vez não correspondida, enseja a adoção de medidas judiciais para o desfazimento legal da relação afetiva, mas nunca o uso da força ou de grave ameaça.
Havendo notícia de qualquer espécie de constrangimento, este deverá ser apurado, a fim de que se assegure à mulher a plenitude do gozo da sua liberdade sexual. Em alguns casos, principalmente quando não houver efetivo emprego de violência física, em razão da apuração, pela sua própria natureza, ter o condão de impor relativo constrangimento à vítima, a decisão sobre a instauração do procedimento ficará a cargo dela.
As mesmas considerações dizem respeito às eventuais coações que porventura afetarem o homem, com exceção da incidência do delito de estupro, que somente existe quando a vítima for mulher.
Em qualquer caso, quando o motivo torpe já não estiver previsto no dispositivo penal (como é o caso do homicídio qualificado), normalmente incidirá, ainda, uma causa de aumento sobre a pena originariamente prevista no delito que vier a ser investigado.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Delegado de Polícia de Guarantã(SP)
(publicado no Getulina Jornal de 16/1/2005)

Observação de 21/2/2015: O Código Civil foi alterado. O delito de atentado violento ao pudor foi "incorporado" ao art. 213. Atualmente todo ato libidinoso forçado configura estupro, mesmo que não haja penetração vaginal.

15 de fev. de 2015

Gratuidade da prestação jurisdicional

A prestação jurisdicional é um serviço público como qualquer outro. Carece de remuneração porque é serviço de interesse específico de quem precisa demandar ou buscar a intermediação do Judiciário quando ela acaba sendo obrigatória. Está à disposição de todos, mas o seu custo deve ser repassado, em parte, apenas aos efetivos usuários.
Sem recursos, o poder público não tem como ampliar e modernizar a sua atuação. Não consegue acompanhar a crescente procura. Arrecada tributos, mas tem cada vez mais a fazer... E se há desvios, devemos lutar contra eles...
Tenho percebido visível alteração nos entendimentos dos tribunais sobre o benefício que costumamos denominar de "gratuidade processual".
A Lei Federal 1.060/1950 contemplou o benefício e previu que deveria ser concedido a quem se declarasse sem condições de arcar com as despesas do processo. Por muito tempo preponderou o entendimento de que o juiz não deveria exigir comprovação da alegada pobreza, mas conceder a gratuidade e aguardar eventual impugnação da parte adversária, ou seja, se tornar refém de um incidente processual que às vezes não surgia até pelo descuido.
O inconveniente é que às vezes dois ricos demandavam sem pagar despesas processuais, pois o autor da ação se declarava pobre e o adversário não impugnava a gratuidade, mas, ao contrário, mesmo abastado, também reclamava o mesmo favor legal. Com esse "acordo de cavalheiros", os dois reduziam seus riscos e se acertavam "por fora" quando a causa tinha desfecho e os honorários sucumbenciais eram impostos.
Nesses casos, o erário tinha de se virar para recuperar o prejuízo, o que tardava ou mesmo não acontecia.
Ainda há quem conceda gratuidade diante de mera solicitação, mas o entendimento contrário felizmente tem ganhado muita força.
O inciso LXXIV do artigo 5.o da Constituição Federal prevê que a assistência jurídica gratuita é direito dos que "comprovarem" a necessidade. A Lei 1.060 deve ser interpretada em consonância com a norma constitucional. A gratuidade tem por objetivo garantir o acesso à Justiça àquele que de fato não pode custear a taxa judiciária e outros valores. Negar o benefício a quem não faz prova da hipossuficiência não significa obstaculizar a o acesso ao Judiciário, mas dar efetividade à vontade do constituinte, preservar a arrecadação, evitar que todos paguem por serviço prestado à alguns e reduzir ajuizamentos levianos.
Quanto maiores forem os riscos, teoricamente, mais as pessoas analisarão alternativas ao processo, o que será bom para quem não tiver escolha e precisar litigar, já que receberá mais atenção e a capacidade operacional do serviço será ampliada.
É isso que pensa o juiz que, assim como eu, adota o entendimento mais rigoroso. A sua visão não se restringe apenas ao caso que está sendo examinando. Nem passa pela sua cabeça apenas causar embaraço. Muito menos intenta reduzir o número de processos por meio de um mero capricho processual...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
facebook Adriano Ponce Juridico
(publicado no Diário de Penápolis de 18/12/2014 e no Correio de Lins de 17/12/2014)


Resposta penal

A ofensa ao direito do outro pode ter consequências meramente civis, como a imposição de indenização. Faltas mais graves são de interesse da sociedade e exigem sanções penais.
O Estado concentra o chamado “direito de punir”, mas às vezes autoriza que o particular reaja, por ex., em legítima defesa.
O Direito Penal, ao descrever condutas delituosas e prever penas, visa a desestimular infrações e dar respostas. O fato de ser escrito e de conhecimento público de certa forma também protege o cidadão, uma vez que, ao cometer um delito, o indivíduo não pode receber punição diferente daquela que já estava prevista (não se pode “inventar” uma pena nova).
Muita gente critica a resposta que é dada para certa infração, mas o juiz não pode se distanciar da lei que os próprios representantes do povo editaram. Vários fatores autorizam que a efetiva prisão seja protelada.
Ao criar uma lei, o Estado deve sempre se pautar no chamado princípio da proporcionalidade: a pena deve ser proporcional ao delito e não um revide, não uma vingança.
Nos primórdios, a pena de morte era muito difundida. Muitas vezes a vítima ou seus familiares simplesmente escolhiam o que fazer com o ofensor. Descobriu-se, todavia, que o pior juiz é o próprio ofendido... Ele nem sempre tem a devida isenção...
Na época do chamado “talião” vigorava o conhecido “olho por olho, dente por dente”: o delinquente recebia de volta exatamente o que tinha feito... Há quem pense que ainda hoje deveria ser assim. Mas se esse sistema foi banido, isso ocorreu justamente porque não funcionou.
Até mesmo quando a igreja resolveu intervir na responsabilização penal, exagerou ao reagir com crueldade (forca, fogueira etc.).
O Estado teve de chamar para si essa tarefa de prever infrações e dar respostas.
No sistema atual, só a lei pode prever infrações e fixar penas. Essa lei deve ser de fácil entendimento, ou seja, toda pessoa tem o direito de saber qual conduta pode gerar resposta penal. Teoricamente, as penas devem servir não só para intimidar, mas também para recuperar o delinquente.
A resposta deve acontecer num prazo adequado. Caso contrário, as finalidades de prevenção e repressão não são atingidas. Não adianta punir o ladrão décadas depois da subtração. O prazo a ser observado depende da gravidade da infração. Depois disso haverá prescrição do direito de punir.
A nossa Constituição Federal proíbe penas cruéis como o trabalho forçado, açoites, mutilação, queimaduras e todo tipo de tortura.
Novas leis mais severas não podem incidir sobre fatos já consumados, mas novas leis mais benéficas retroagem em favor do criminoso.
O Código Penal de 1890 (após a Proclamação da República) aboliu a pena de morte para infrações comuns e ela só existe em caso de guerra declarada.
O Código Penal é de 1940 e vem sendo modificado ao longo dos tempos.
Todos se presumem inocentes até que já não haja mais possiblidade de recurso da condenação (que ela transite em julgado).
Para alguns, o Direito Penal deve proteger apenas interesses essenciais. Para outros, a sua incidência deve ser ampliada. Essa divergência pode ter a ver com os valores que cada um defende; com o fato de a pessoa já ter sido vítima de determinado crime ou mesmo de ter tido um parente preso. Diante da comoção gerada pela divulgação de um fato, normalmente aumenta o desejo por leis severas, mas não há segurança em dizer que o agravamento de sanções provocaria a redução da criminalidade. Fosse assim, ninguém se atreveria a exportar droga para a Indonésia...
É difícil cogitar um sistema ideal. Nunca haverá unanimidade. A nossa legislação já prevê maior rigor para crimes hediondos e moderação para delitos de menor potencial ofensivo.
A falta de moderação da resposta penal, para alguns, é sintoma de inconstitucionalidade. Também por isso sempre é preciso dosar a pena em conformidade com a personalidade, os antecedentes, a conduta social e outras características do infrator.
Elaborar a lei penal é um desafio. Decidir a pena cabível também não é uma tarefa fácil. Mas penso eu que mais difícil ainda é executar a pena de forma que o infrator se ressocialize. Os nossos modelos de estabelecimentos prisionais sempre recebem críticas, mas criticar é fácil... O difícil é refletir e propor soluções com isenção, conhecimento e sensatez. Quem defende rigor extremo, supressão de direitos e maus-tratos aos condenados deve sempre se lembrar de que não é impossível que um ente querido seu, de forma inesperada, venha a infringir a lei e se torne alvo de tudo aquilo que desejou para o outro.
Acredito que deveríamos aproveitar melhor a mão-de-obra do sentenciado. Se os municípios se estruturassem para receber condenados, muita coisa poderia ser feita por eles. Cito como exemplo a implantação de uma horta comunitária para produzir alimento para a merenda escolar. Demanda pouco investimento. Qualquer sentenciado, se supervisionado, teria condições de ser útil... E a prestação de serviço, a meu ver, para crimes menos graves, é uma excelente forma de ressocialização, desde que devidamente fiscalizada.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
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(publicado no Correio de Lins e no Diário de Penápolis de 12/2/2015)