O
interessante texto “História oral: os riscos da inocência”, de Michael M. Hall,
traz importante alerta para delegados de polícia, promotores de justiça,
juízes, policiais e todos aqueles que cotidianamente trabalham com depoimentos
e informações trazidas pela população, como conselheiros tutelares, assistentes
sociais, jornalistas, médicos etc.
Na
verdade, ele não foi redigido especificamente para os citados profissionais que
operam O Direito Penal, mas para pesquisadores e historiadores que se valem de
informações para recomporem fatos.
Segundo
o autor, “os relatos produzidos pela história oral devem estar sujeitos ao
mesmo trabalho crítico de outras fontes que os historiadores costumam
consultar”. Ele observa que há muito a ser pesquisado sobre o funcionamento da
memória humana e sobre o quanto nossas lembranças estão suscetíveis aos
envolvimentos emocionais. Ressalta que a memória de fatos está sempre sujeita
às “alterações grosseiras pelas experiências posteriores na vida do
entrevistado, e por uma variedade de outras modificações conscientes ou
inconscientes”. Afirma, ainda, que não se podem desprezar distorções
intencionais decorrentes, por exemplo, da exagerada importância dada a
determinados acontecimentos; da ocultação de ações e da tentativa de vingança
de velhos ressentimentos.
Muitos
dos exageros ou distorções, no entanto, podem advir de puro equívoco sobre o
contexto a que o entrevistado se reporta, ou mesmo da tentativa de transferir
opiniões atuais para o passado.
Quando
apresenta uma história pronta, o entrevistado pode nem se dar conta, por
exemplo, do quanto a simplificação, que às vezes ocorre até mesmo de forma
involuntária, pode ser prejudicial à revelação da verdade.
O
problema se intensifica à medida que se constata, segundo o autor, que o
entrevistado responde de maneira diferente segundo a identidade do
entrevistador (sexo, idade, classe social etc.) ou mesmo influenciado pela
maneira como a pergunta é formulada.
Para
Hall, “não é necessária má-fé consciente para sair de uma entrevista tendo
ouvido exatamente o que esperamos”, diante da possibilidade de inclusão de
perguntas que conhecidamente o entrevistado gostaria de responder e da omissão
daquelas que porventura o constrangeriam.
Em
resumo, deve-se sempre levar em conta a confiabilidade relativa da memória
humana.
A
legislação processual penal é cautelosa ao estabelecer regras para as oitivas
de testemunhas. Ora preocupa-se com o esquecimento ou distorção de informações
importantes; ora procura evitar que depoimentos “encomendados” possam
interferir na busca da verdade.
O
Código de Processo Penal, no art. 204, autoriza que testemunhas se baseiem em
algumas anotações durante depoimentos. As notas escritas, no entanto, devem se
resumir às informações das quais o inquirido não se lembre com facilidade, como
nomes de lugares e/ou pessoas, datas, valores e informações análogas. No
tocante aos demais fatos, para evitar a manipulação prejudicial à realização da
justiça, devem ser resumidos oralmente pelo inquirido, exceção feita aos
depoimentos do Presidente e do Vice-Presidente da República e dos Presidentes
do Senado, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal, que podem se
pronunciar por escrito.
A
forma oral permite ao inquiridor que avalie o grau de sinceridade e de
espontaneidade do entrevistado.
A
vedação legal à leitura de depoimento previamente escrito não impede, na
plenitude, manipulações, mas funciona como fator de desestímulo à sua
ocorrência, pois aumenta sensivelmente o risco daquele que pretende faltar com
a verdade de cair em contradição.
De
qualquer forma, Júlio Fabbrini Mirabete (Processo Penal, 2003) resume com
precisão os cuidados a serem observados na obtenção ou interpretação de um
depoimento: “É dos mais discutidos o valor do testemunho humano, sabido que
nossos sentidos frequentemente nos iludem. Para Chaparède, há uma tendência
inata de a testemunha diminuir o fator tempo e as dimensões das coisas, a
desprezar o insólito (incomum) e o contingente (aleatório, ocasional,
incerto), concluindo, afinal, que na vida judiciária há evidentes fontes de
erros na prestação do testemunho, mesmo nos casos de boa-fé sem qualquer fator
estranho de pressão. Não há no testemunho, observa ele, a precisão e a
objetividade de um instrumento físico ou mecânico, ocorrendo frequentemente
erros comuns de percepção de cores, de tempo e de distância e até mesmo de
sons. Isso sem falar na mendacidade (falsidade) que frequentemente vicia
o depoimento, estimulada por interesses pessoais ou sugestão ou ainda por
sentimentos vários como amor, amizade, ódio, inveja etc.”.
Como
se vê, o ato de inquirir requer muita habilidade e malícia por parte do
inquiridor, que deve considerar todo o contexto e principalmente investigar se
o inquirido está movido por alguns dos tais sentimentos pessoais; se tem
interesse em determinado desfecho; se sua vida pregressa transmite confiança
aos seus relatos etc. Exige, ainda, que se averigúe se o inquirido realmente
acompanhou o ocorrido (ou se não há risco de uma mentira dita mil vezes ter se
tornado uma verdade, ou seja, de a versão ser fruto do “disse-que-me-disse”) e,
em caso positivo, se no momento em que vivenciou os fatos que estão sendo
objeto da inquirição, a pessoa eventualmente estava alcoolizada, sonolenta,
drogada, desequilibrada ou de qualquer outra forma influenciada a distorcer a
compreensão do que ocorria ao seu redor; e até mesmo se maliciosamente está se
aproveitando de qualquer dos estados para omitir ou alterar a verdade...
Esta
lição vale até mesmo para os pais que ainda se preocupam em ouvir seus filhos e
para aqueles que os ouvem demais...
Adriano
Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz
de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook
Adriano Ponce Jurídico
www.direitoilustrado.blogspot.com.br
(publicado
na edição de 15/10/2015 do Diário de Penápolis e abordado em entrevista
concedida à Rádio Regional Esperança aos 19/10/2015 – versão atualizada do
texto publicado no Getulina Jornal de 27/6/2004)