Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

24 de mar. de 2016

Aconselhamento, suspeição e "jeitinho brasileiro"

É relativamente comum as pessoas indagarem juízes sobre questões jurídicas diversas. Isso acontece, às vezes, porque a pessoa aflita confia no conhecimento e na experiência que o magistrado acumula, por dedicar boa parte do seu dia para estudar e decidir as mais variadas situações. O juiz normalmente entende isso e, de maneira geral, se sente lisonjeado, muito embora, na maioria das vezes, não possa intervir. Não é demais ressaltar que algumas abordagens geram constrangimentos, pela maneira ou pelo local onde acontecem (no local de descanso ou lazer etc.).
Certa vez uma pessoa, sem ser anunciada, ingressou no meu gabinete enquanto eu apreciava questão extremamente complexa que já me tomava algumas horas... O nível de concentração era alto. Eu racionava bastante à procura da solução que me parecesse mais justa e que me permitisse ficar em paz com a minha consciência. Isso costuma consumir muita energia do julgador. Essa pessoa passou a descrever uma situação particular bastante complicada. O relato, aparentemente, seria extenso. De imediato, eu disse a ela que não poderia ouvi-la... Ela tinha certo conhecimento sobre o funcionamento da Justiça, mas, porque estava envolvida no problema, esqueceu-se de que o juiz deve evitar promover aconselhamento.
A nossa legislação, com vistas à preservação da imparcialidade do profissional e da respeitabilidade da prestação jurisdicional, prevê algumas causas de impedimento e de suspeição do magistrado. Dispõe o Código de Processo Civil de 1973: “Art. 135. Reputa-se fundada a suspeição de parcialidade do juiz, quando: IV – (...) aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa...”. A preocupação do legislador com a isenção do magistrado foi reescrita no Código de Processo Civil de 2015: “Art. 145. Há suspeição do juiz: II – (...) que aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa... A nova redação é mais enfática.
Expliquei àquela pessoa que mesmo que o processo não estivesse tramitando na minha Vara, eu poderia, em virtude de algum impedimento do juiz do caso (férias etc.), vir a atuar nele. Disse que se isso porventura acontecesse, eu teria de me dar por suspeito e remeter o processo para outro juiz, o que implicaria em mais serviço para o colega; e afirmei que isso deveria ser evitado. Ressaltei que, mesmo que não existissem obstáculos legais, e ainda que eu desejasse contribuir, não seria possível interromper o meu trabalho ou o meu descanso para orientar todos, tarefa inerente à Defensoria, à advocacia e à Promotoria, a depender do caso. Falei isso tudo de maneira tranquila e cautelosa. Mesmo assim, a pessoa alterou a fisionomia e disparou: “Quem te viu e quem te vê, hein, Adriano?”. Deixou o local como se eu tivesse cometido um crime contra ela ao tentar apenas preservar a minha isenção e ao preferir retomar a análise do caso cuja decisão era esperada pelas partes e advogados. Nada respondi. Fiquei chateado durante o restante do expediente, mas esse não foi o primeiro e não será o último evento retratador da incompreensão que muitas vezes acompanha o cotidiano dos magistrados.
Nesse caso, a pessoa não tinha interesse direto comigo, pois eu não era o juiz da causa. Mas já houve situações em que fui procurado diretamente pela parte de processo que tramitava sob a minha presidência... Em alguns casos, a pessoa não tinha noção de que não deveria me procurar; noutros, fingiu não saber disso... É evidente que quando o juiz percebe essa tentativa de interferência indevida na sua convicção, fica indignado. Eu fico bastante...
O que se pode concluir é que as pessoas desejam que o Poder Judiciário seja isento, independente, mas que, uma ou outra, ainda que conhecedora da linha de conduta do juiz e do dever de se manifestar somente pelos meios legalmente estabelecidos (petições, depoimentos etc.), mesmo alertada pelo advogado a se abster, acaba lançando mão do que popularmente se denomina “jeitinho brasileiro”, na tentativa de conseguir o que está postulando ou mesmo apenas de “furar fila” (de que o seu caso seja apreciado “na frente” do caso do outro)... No endereço http://www.sitedecuriosidades.com/curiosidade/a-historia-do-jeitinho-brasileiro.html há um definição interessante desse “jeitinho”: “categoria intermediária entre a honestidade e a marginalidade”. Lamentável, mas é a realidade...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito
Facebook Adriano Ponce Jurídico
www.direitoilustrado.blogspot.com.br
(publicado no Diário de Penápolis de 25/2/2016)




17 de mar. de 2016

Advocacia robotizada

O “site” Consultor Jurídico noticiou recentemente que grandes escritórios de advocacia têm se servido de softwares para ampliarem as suas atuações. Segundo a matéria, determinado escritório atua em mais de 360 mil processos com 420 advogados, ou seja, cada profissional cuida de 857 ações ao mesmo tempo, “graças a um único fator: tecnologia”. O texto destaca: “Enquanto o processo judicial eletrônico ainda é motivo de relutância no Judiciário e na comunidade jurídica, a banca tem ‘robôs’ tocando partes dos processos no lugar de humanos”. Consta que “de acordo com o tipo de matéria que o processo discute, existe o robô que foi apelidado de ‘clicador’... substituindo o ‘copia e cola’ das petições”, que “monta uma defesa, preenchendo espaços com os dados daquele processo específico, com os argumentos de defesa que o escritório usa”. Por fim, “cabe ao advogado simplesmente clicar nos trechos que serão aproveitadas na peça”. Segundo a reportagem, não é exagero dizer que, as esteiras de produção, velhas conhecidas da indústria, chegaram à advocacia”. Ela destacou que há quem denomine "advocacia antiga" o método em que “o advogado é responsável por um processo do começo ao fim”. O Consultor também comentou opiniões de outros escritórios sobre os riscos que a excessiva informatização representa.
Decidi comentar o assunto com base no que tenho observado no cotidiano forense, sem ater, em específico, ao trabalho do escritório divulgado.
Essa “linha de produção” que tem sido adotada na advocacia, no meu ponto de vista, é extremamente prejudicial à promoção da justiça. Alguns escritórios que prestam serviços para empresas de grande porte que são comumente demandadas (principalmente nos Juizados), como bancos e operadoras de telefonia, muitas vezes, não apresentam boas petições. É comum depararmos com defesas desnecessariamente extensas, o que desmotiva e torna a leitura bastante desagradável e pouco produtiva. Muitas vezes essas defesas não tratam especificamente dos problemas em discussão, mas trazem argumentos genéricos e até impertinentes (sobre temas que sequer estão sendo discutidos), como se tivessem mesmo sido elaboradas por robôs e o “serviço” deles não tivesse recebido mínima conferência.
A consequência, para o cliente, pode ser a derrota. No Direito, a afirmação que não é rebatida pode vir a ser admitida como verdadeira pelo julgador. Muitas vezes, o juiz julga favoravelmente o pedido do consumidor não propriamente porque ele bem demonstra a sua razão, mas porque a empresa demandada não traz informações básicas sobre a relação contratual; não se defende a contento ou acaba ficando até indefesa.  E isso acontece ora porque a empresa não fornece ao advogado informações que ele precisa para bem desempenhar o seu papel; ora porque o escritório, muito embora famoso, se propõe a atuar em muitas ações sem dispor de estrutura necessária, abusando de estagiários e/ou confiando demais em softwares.
Essa prática de peticionar mal às vezes se repete em causas de um mesmo cliente. Em razão disso, tenho a impressão de que algumas empresas não monitoram minimamente o trabalho desenvolvido nas suas ações, ou seja, não fazem auditoria alguma. Pagam, confiam, não contam com boas defesas, sofrem prejuízos e não procuram mudar essa realidade.
Em alguns casos, parece até que determinada empresa prefere pagar mais barato por cada defesa e assumir o risco de não contar com boa assessoria, do que investir um pouco mais. Parece que o custo-benefício de pagar mais barato acaba compensando. É como se o empresário assim raciocinasse: pago menos por cada defesa, sofro algumas condenações, mas, no balanço geral, isso compensa mais do que pagar melhor e ser menos condenado. Esse raciocínio, tenho a impressão, parece ser adotado quando a empresa é daquelas que lesa sistematicamente consumidores e chega à conclusão de que vale mais a pena continuar trabalhando assim e pagando algumas indenizações do que investir no melhor atendimento.
Nesse “fogo cruzado” está o magistrado (normalmente responsável por milhares de ações), que tem de ler coisas irrelevantes e teses impertinentes; investe muito mais do seu escasso tempo; não conta com boas provas; tem de “se virar” para decidir; e, às vezes, tem de decidir em favor de um, mas sabe que, na verdade, o outro tem razão, muito embora não tenha contribuído com boas provas para poder ser declarado vencedor.
A “terceirização” de serviços que são contratados com base na confiança que o cliente tem no profissional também tem afetado outras áreas do conhecimento, o que requer ampla reflexão e urgente debate. O Judiciário também tem de ter cuidado para não começar a substituir cabeças pensantes por montadores de quebra-cabeças jurídicos, costuradores de retalhos... É preciso repensar a proliferação de práticas que, infelizmente, podem contaminar novos profissionais, fazendo-os acreditar que tudo isso é muito normal e que estar em juízo tem de ser assim mesmo; e os afastando do cumprimento do juramento de fazer o melhor pelo seu assistido.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito
Facebook Adriano Ponce Jurídico

(publicado no Diário de Penápolis de 10/3/2016)