Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

24 de nov. de 2016

Extravio da comanda de consumo

Muitos estabelecimentos comerciais, especialmente bares, lanchonetes, padarias e casas noturnas, adotam comandas ou fichas de consumo para controlar os gastos de seus clientes. As padarias, antigamente, disponibilizavam cadernetas que ficavam com os consumidores e nem todas mantinham controles paralelos...
Outro dia passei pela lanchonete de um conhecido posto de abastecimento na Rodovia Castelo Branco e deparei com a seguinte frase na ficha de controle: “Em caso de perda da ficha de consumo, a multa será estipulada pela empresa”. Essa cláusula, imposta de forma unilateral ao consumidor, evidentemente, é abusiva. É praticamente um “cheque em branco assinado”...
Ao mesmo tempo em que a empresa corre o risco de o cliente consumir muito e, de propósito, forjar a perda da ficha; pode ser que o consumo tenha sido reduzido ou mesmo não tenha acontecido e realmente tenha havido extravio ou mesmo furto da comanda, caso em que a imposição de multa elevada seria uma franca injustiça.
O controle por ficha que fica na posse do cliente acaba incentivando o consumo e reduzindo o fluxo de clientes no caixa, o que beneficia o fornecedor. Ao mesmo tempo, a posse da ficha transfere para o cliente uma responsabilidade que, em verdade, é do estabelecimento, a quem compete controlar o consumo fazendo uso de métodos eficientes. Se o controle for feito, ao mesmo tempo, por sistema informatizado, ficará mais fácil definir o montante a ser pago, especialmente se contemplar o nome do consumidor.
Assim sendo, se surgir divergência, ela deverá ser resolvida caso a caso, de acordo com as informações disponíveis. Se o estabelecimento também registra as compras no seu sistema, bastará apurar qual foi a ficha fornecida ao cliente. Isso poderá ser feito por meio da consulta às fichas já entregues e ainda não quitadas e da comparação dos itens registrados no sistema e daqueles que o consumidor admitir que tiver consumido ou que garçonetes ou o sistema de câmeras puderem indicar como consumidos.
O cliente que perde a ficha tem de se sujeitar à verificação, mas, é evidente, ela deve acontecer em tempo razoável e de forma discreta, sem exposição desnecessária.
Às vezes, impasses sobre o efetivo consumo deságuam no Judiciário...
Diante do extravio do cartão de consumo e da discordância, por parte do cliente, do valor apresentado pelo estabelecimento, já se decidiu que a posição do primeiro devia prevalecer, uma vez que a relação é regida pelo Código de Defesa do Consumidor e incidia a chamada “inversão do ônus da prova” (a empresa tinha de ter apresentado as comandas assinadas). Foi determinada devolução do dobro do valor cobrado indevidamente (artigo 42 do CDC) (TJSP, Recurso Inominado 0036498-44.2013.8.26.0001).
Uma casa noturna foi condenada ao pagamento de indenização por danos morais por conta do constrangimento imposto a uma frequentadora. Decidiu-se que houve “utilização de meio abusivo e vexatório de cobrança”, já que, surgido impasse sobre o efetivo consumo, ela foi retida “por intervalo temporal razoável até a liberação, já pela manhã, somente depois do acionamento da Polícia Militar”. A espera foi de cinco horas e consta que a usuária tinha pagado a comanda; que a “via de liberação” tinha sido extraviada durante tumulto no local; mas que seguranças não aceitaram o comprovante do uso do cartão de crédito. O julgado destacou o “caráter descabido da prática de pressão psicológica voltada ao recebimento de créditos” (TJSP, Apelação 0125702-98.2010.8.26.0100).
No mesmo sentido, reconheceu-se a ocorrência de prejuízo moral porque o estabelecimento não provou que determinados gastos foram registrados depois que o cliente perdeu o cartão. Levou-se em conta o fato de a empresa ter impedido a saída do consumidor do local até que o pagamento acontecesse, “ato que não significa cárcere privado no caso, mas violação a direito ... com evidente constrangimento” (Apelação 9249250-89.2005.8.26.0000).
O Colégio Recursal da Capital já reverteu condenação porque entendeu que o consumidor foi o único culpado pela perda da ficha de consumo e acabou pagando o valor cobrado sem contestá-lo, tendo permanecido no local para debate o assunto por sua espontânea vontade, quando poderia, por exemplo, ter ele mesmo acionado a polícia se tivesse entendido que sofria constrangimento ilegal (Recurso Inominado 29.416, Relator Jorge Tosta, j. 18/02/2009).
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito
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(publicado na edição de 24/11/2016 do Diário de Penápolis)