E
daí que ouço Racionais?
Em matéria de música, escuto de tudo
um pouco. Ora gosto da melodia, ora me interesso pela letra, ora me divirto com
as duas. A depender da ocasião, elejo um ritmo. A batida forte às vezes me
distrai, faz a diferença. Afinal, meu ofício requer silêncio o dia todo.
Tem quem seja mais exigente,
selecione alguns gêneros musicais e ignore outros, porém, os respeite. E tem
gente que é radical: não gosta de certas músicas e não admite que ninguém
goste. Tem prazer em criticar, parecendo se incomodar com a alegria alheia, talvez,
pela frustração de não se satisfazer com suas próprias escolhas (quiçá, de não
se divertir com nada...).
O fato é que o desrespeito às
preferências alheias é corriqueiro, mas precisamos superá-lo, sermos nós
mesmos, independentemente de padrões que a sociedade tente nos impor. A
assertiva não tem a ver apenas com gosto musical.
Foi pensando nisso que decidi
escrever para dizer que escuto Racionais MC’s. Nossa, mas Juiz não tem de ouvir
apenas MPB, jazz ou clássica? É preciso desmistificar mais esse equívoco. Tempos
atrás escrevi sobre tatuagens e a repercussão, em geral, foi muito positiva...
Mas tem alguma coisa demais eu
assumir que também ouço rap? O tema merecia um artigo? Sim, pois para a nossa
sociedade cheia de “regrinhas de conduta” e estereótipos, só pode “curtir” esse
“som” o morador da periferia ou o bandido. Afinal, um Juiz, por ser uma pessoa “estudada”,
teria de ter gosto mais “refinado”, não é mesmo? Claro que não! Foi por isso
que se justificava o meu relato, cujo objetivo é, mais uma vez, induzir
reflexão sobre a conduta dos Magistrados.
Fui Delegado de Polícia por mais de
9 anos e não tolerava o rap. Afinal, algumas letras enfatizam que a polícia
comete abusos, bem como fazem apologia ao crime e ao consumo de drogas. A minha
intolerância tinha a ver com a profissão (muito embora nem todos os policiais
sejam contrários ao gênero) e também com a idade. Mas fui refletindo e
amadurecendo...
Tornei-me Juiz e, objetivando
reciclar idéias, resolvi ouvir as “rimas” com mais atenção. Não se discute que
há trechos melancólicos e derrotistas que, em tese, teriam de ser ignorados. Às
vezes é cômodo dizer que “o sistema” não permite que pobre progrida,
especialmente quando lhe falta força de vontade. Mas foi justamente por conta
de afirmações dessa natureza que me interessei em ouvir os Racionais e outros
rimadores. Há também mensagens para que jovens se afastem do crime e das drogas,
porque essa vida não compensa. Na verdade elas preponderam. O mais importante é
que a realidade vem à tona sem cerimônia.
Na condição de filho amado de
família estruturada (que não tinha dinheiro, mas me deu exemplo e incentivo),
era natural que eu achasse um exagero a forma de protesto retratada no rap. Mas,
ao passar a ouvir com atenção as letras, percebi que seria importante para mim,
na condição de julgador, colocar na balança certas impressões que eu tinha
sobre as reclamações do povo da periferia.
As letras são muito inteligentes
(muito mais do que muitos dos ritmos, digamos, mais tolerados). Até Shakespeare
já foi citado. Os trocadilhos surpreendem. Trazem muitas verdades. O sistema
realmente não ajuda muito as pessoas das favelas a progredirem. Não que isso
seja justificativa para infringirem a lei; não é isso que estou defendendo!
Penso apenas que a falta de apoio da família, a falta de bons conselhos e de
uma boa conversa dentro de casa, mais do que a insuficiência de recursos
financeiros, realmente é um complicador para que filhos trilhem o bom caminho. Tanto
isso é verdade que filhos de famílias abastadas muitas vezes decepcionam. E os
Racionais abordam o tema com maestria.
Outras verdades (no meu entender)
são “cantadas” abertamente: (i) há mesmo servidores públicos corruptos que
espalham pânico (embora pequena minoria); (ii) o Estado realmente precisar dar
mais atenção aos pobres com antecedentes criminais; (iii) a mídia cada vez mais
“obriga” as pessoas a serem bem-sucedidas e a possuírem determinados bens
materiais, o que certamente estimula prática criminosas pelos que não detêm
recursos e não são bem orientados sobre os valores mais importantes; (iv)
negros, infelizmente, ainda sofrem preconceito e discriminação (em uma das canções
o interlocutor se diz “pós-graduado em tomar geral”); (v) alguns jovens ricos, em
virtude do descuido da família e/ou da má-índole, desperdiçam futuros
promissores, elegem bandidos como heróis e se enveredam na vida do crime para
satisfazerem suas frustrações; (vi) está cada vez mais difícil confiar nas
pessoas; (vii) o meio onde se vive não é tudo, mas tem grande influência na
formação da personalidade; (viii) a felicidade é um estado de espírito que nem
sempre depende da classe social que se integra e dos recursos que se possui; (ix)
a vida deve ser aproveitada dia-a-dia e com intensidade.
Escutar essas histórias, parece que
não, interferiu positivamente no exercício do meu mister. Passei a interpretar
fatos e a analisar pessoas também sob essa ótica. Não é que eu tenha me
sensibilizado ou que tenha ficado mais ou menos tolerante ao crime, que
continua merecendo, da minha parte, na justa medida, a resposta que a lei
prevê. Simplesmente passei a refletir mais e com constância sobre os problemas
que as pessoas enfrentam e sobre o que interfere na sua forma de agir, o que,
para mim, já foi uma vitória. E refletir levando em conta não só as idéias
predominantes, mas também idéias novas, é fundamental não só para o exercício da
profissão, mas para se viver melhor. Afinal, toda tese tem sua antítese. A
nossa verdade pode ser ou não melhor do que a verdade do outro. Talvez o
terceiro é quem esteja certo...
Dito isso, pergunto: e daí que ouço
Racionais?
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito da 2ª Vara de Penápolis(SP)