Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

21 de out. de 2012

E daí que ouço Racionais?

E daí que ouço Racionais?
            Em matéria de música, escuto de tudo um pouco. Ora gosto da melodia, ora me interesso pela letra, ora me divirto com as duas. A depender da ocasião, elejo um ritmo. A batida forte às vezes me distrai, faz a diferença. Afinal, meu ofício requer silêncio o dia todo.
            Tem quem seja mais exigente, selecione alguns gêneros musicais e ignore outros, porém, os respeite. E tem gente que é radical: não gosta de certas músicas e não admite que ninguém goste. Tem prazer em criticar, parecendo se incomodar com a alegria alheia, talvez, pela frustração de não se satisfazer com suas próprias escolhas (quiçá, de não se divertir com nada...).
            O fato é que o desrespeito às preferências alheias é corriqueiro, mas precisamos superá-lo, sermos nós mesmos, independentemente de padrões que a sociedade tente nos impor. A assertiva não tem a ver apenas com gosto musical.
           Foi pensando nisso que decidi escrever para dizer que escuto Racionais MC’s. Nossa, mas Juiz não tem de ouvir apenas MPB, jazz ou clássica? É preciso desmistificar mais esse equívoco. Tempos atrás escrevi sobre tatuagens e a repercussão, em geral, foi muito positiva...
            Mas tem alguma coisa demais eu assumir que também ouço rap? O tema merecia um artigo? Sim, pois para a nossa sociedade cheia de “regrinhas de conduta” e estereótipos, só pode “curtir” esse “som” o morador da periferia ou o bandido. Afinal, um Juiz, por ser uma pessoa “estudada”, teria de ter gosto mais “refinado”, não é mesmo? Claro que não! Foi por isso que se justificava o meu relato, cujo objetivo é, mais uma vez, induzir reflexão sobre a conduta dos Magistrados.
            Fui Delegado de Polícia por mais de 9 anos e não tolerava o rap. Afinal, algumas letras enfatizam que a polícia comete abusos, bem como fazem apologia ao crime e ao consumo de drogas. A minha intolerância tinha a ver com a profissão (muito embora nem todos os policiais sejam contrários ao gênero) e também com a idade. Mas fui refletindo e amadurecendo...
            Tornei-me Juiz e, objetivando reciclar idéias, resolvi ouvir as “rimas” com mais atenção. Não se discute que há trechos melancólicos e derrotistas que, em tese, teriam de ser ignorados. Às vezes é cômodo dizer que “o sistema” não permite que pobre progrida, especialmente quando lhe falta força de vontade. Mas foi justamente por conta de afirmações dessa natureza que me interessei em ouvir os Racionais e outros rimadores. Há também mensagens para que jovens se afastem do crime e das drogas, porque essa vida não compensa. Na verdade elas preponderam. O mais importante é que a realidade vem à tona sem cerimônia.
            Na condição de filho amado de família estruturada (que não tinha dinheiro, mas me deu exemplo e incentivo), era natural que eu achasse um exagero a forma de protesto retratada no rap. Mas, ao passar a ouvir com atenção as letras, percebi que seria importante para mim, na condição de julgador, colocar na balança certas impressões que eu tinha sobre as reclamações do povo da periferia.
            As letras são muito inteligentes (muito mais do que muitos dos ritmos, digamos, mais tolerados). Até Shakespeare já foi citado. Os trocadilhos surpreendem. Trazem muitas verdades. O sistema realmente não ajuda muito as pessoas das favelas a progredirem. Não que isso seja justificativa para infringirem a lei; não é isso que estou defendendo! Penso apenas que a falta de apoio da família, a falta de bons conselhos e de uma boa conversa dentro de casa, mais do que a insuficiência de recursos financeiros, realmente é um complicador para que filhos trilhem o bom caminho. Tanto isso é verdade que filhos de famílias abastadas muitas vezes decepcionam. E os Racionais abordam o tema com maestria.
            Outras verdades (no meu entender) são “cantadas” abertamente: (i) há mesmo servidores públicos corruptos que espalham pânico (embora pequena minoria); (ii) o Estado realmente precisar dar mais atenção aos pobres com antecedentes criminais; (iii) a mídia cada vez mais “obriga” as pessoas a serem bem-sucedidas e a possuírem determinados bens materiais, o que certamente estimula prática criminosas pelos que não detêm recursos e não são bem orientados sobre os valores mais importantes; (iv) negros, infelizmente, ainda sofrem preconceito e discriminação (em uma das canções o interlocutor se diz “pós-graduado em tomar geral”); (v) alguns jovens ricos, em virtude do descuido da família e/ou da má-índole, desperdiçam futuros promissores, elegem bandidos como heróis e se enveredam na vida do crime para satisfazerem suas frustrações; (vi) está cada vez mais difícil confiar nas pessoas; (vii) o meio onde se vive não é tudo, mas tem grande influência na formação da personalidade; (viii) a felicidade é um estado de espírito que nem sempre depende da classe social que se integra e dos recursos que se possui; (ix) a vida deve ser aproveitada dia-a-dia e com intensidade.
            Escutar essas histórias, parece que não, interferiu positivamente no exercício do meu mister. Passei a interpretar fatos e a analisar pessoas também sob essa ótica. Não é que eu tenha me sensibilizado ou que tenha ficado mais ou menos tolerante ao crime, que continua merecendo, da minha parte, na justa medida, a resposta que a lei prevê. Simplesmente passei a refletir mais e com constância sobre os problemas que as pessoas enfrentam e sobre o que interfere na sua forma de agir, o que, para mim, já foi uma vitória. E refletir levando em conta não só as idéias predominantes, mas também idéias novas, é fundamental não só para o exercício da profissão, mas para se viver melhor. Afinal, toda tese tem sua antítese. A nossa verdade pode ser ou não melhor do que a verdade do outro. Talvez o terceiro é quem esteja certo...
            Dito isso, pergunto: e daí que ouço Racionais?
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito da 2ª Vara de Penápolis(SP)
www.twitter.com/adrianoponce10
(publicado no Correio de Lins de 24/10/2012)