Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

29 de nov. de 2016

Ressolagem como causa de prejuízo ao motociclista

É relativamente comum depararmos com ressolagens (recapagens) em rodovias e são corriqueiros os danos por elas provocados. Normalmente, os fragmentos de borracha são extensos e pesados e provocam prejuízos significativos quando são “atropelados” por automóveis ou motocicletas. O risco de queda do motociclista é indiscutível, ainda que o seu veículo seja de grande porte.
A tentativa de solução administrativa é sempre interessante porque não tem custo (a parte não precisa contratar advogado, por ex.). Quando o pedido administrativo do prejudicado não é atendido pela concessionária que cuida da rodovia, a questão acaba desaguando no Judiciário. Nos Juizados, a própria parte pode peticionar se o prejuízo não superou vinte salários mínimos e não precisar pagar custas.
De maneira geral, a concessionária alega que cumpriu a sua obrigação de inspecionar a pista e apresenta informações sobre os trajetos percorridos pelas suas viaturas. Sustenta, portanto, que não se omitiu. Em alguns casos, questiona também a invocada ocorrência e afirma que a parte adversária não comprovou que tudo aconteceu na rodovia sob a sua administração.
Não se discute que a concessionária não tem condições de evitar todo e qualquer acidente; que não consegue manter permanentemente a pista limpa... De qualquer forma, prepondera o entendimento de que, se a parte demonstra que o dano decorreu do atingimento de objeto depositado na estrada, a concessionária, que tem responsabilidade objetiva (artigo 37, § 6º, da Constituição Federal), deve promover o ressarcimento. Ao mesmo tempo em que a empresa não consegue ter empregados em todos os trechos, vinte e quatro horas por dia, o usuário não pode ficar sem resposta. Trata-se de risco inerente à atividade e que deve ser suportado pelo prestador do serviço.
Cabe ao motociclista angariar provas de que o acidente aconteceu e de que o prejuízo decorreu do choque com o objeto. Os danos deverão ser condizentes com a narrativa São bem-vindas fotografias, filmagens e relatórios descritivos. É sempre conveniente que os componentes danificados sejam preservados para eventuais exames periciais ou mesmo para a análise do próprio magistrado. E, sempre que possível, o evento deve ser registrado no posto de atendimento da concessionária ou mesmo pela polícia. Havendo testemunhas, deverão ser indicadas, mas nada impede que o juiz dispense as suas oitivas.
Ressalto, ainda, a importância da anexação de comprovantes de pedágios ao processo, já que servem à comprovação de que determinado trecho foi percorrido. Muitas vezes os motociclistas dispensam os papéis, tanto que as operadoras de pedágios costumam perguntar se eles desejam os comprovantes dos pagamentos. Se algo acontecer, os tais comprovantes serão úteis.
A análise de pretensão do gênero é sempre delicada. Se o juízo for muito exigente, poderá inviabilizar que determinado motociclista busque ressarcimento, já que se estiver viajando sozinho sequer terá testemunha para arrolar. Se for muito flexível na análise da prova, o juízo correrá o risco de chancelar pedido fraudulento de determinado motociclista que se servir da facilidade de acesso à justiça para obter proveito ilícito. A apreciação das provas é uma tarefa complicada.
Por fim, acidentes com recapagens geram aborrecimentos e prejuízos materiais, mas nem sempre acarretam danos morais indenizáveis. É evidente que isso deverá ser analisado de acordo com as circunstâncias de cada caso.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito
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(publicado na edição de 24/11/2016 do Diário de Penápolis)

Residência do magistrado na Comarca - implicações

Estabelece o artigo 93 da Constituição Federal: “o juiz titular residirá na respectiva comarca, salvo autorização do tribunal”. Os pedidos e os deferimentos são comuns, pelos mais diversos fundamentos.
Há quem sustente que o magistrado que reside no mesmo lugar em que trabalha, teoricamente, está mais preparado para compreender e julgar os problemas que lhe são expostos; que o juiz, por estar inserido na comunidade, se preocupará mais com o bem-estar dela. Tudo isso é muito relativo e há vários inconvenientes nessa imposição.
O juiz que mora onde trabalha acaba conhecendo mais as partes, o que pode facilitar a formação da convicção. Ocorre que ele tem de estar atento para não se “contaminar” com comentários sobre os casos que julga e para não fazer prejulgamentos com base no que já sabe sobre as pessoas envolvidas. Cada caso é um caso!
Esse magistrado acaba correndo mais riscos, pois se encontra com pessoas que julga com mais frequência. Nas cidades menores, nem sempre haverá um imóvel seguro para abrigar a sua família.
Parece que tem gente que acha que porque conhece o juiz, não vai perder a demanda. Os aborrecimentos para o “juiz residente” são mais constantes, pois muitas pessoas não sabem “separar as coisas” e ele, às vezes, é hostilizado. Isso pode interferir na sua motivação e, em consequencia, na sua produtividade.
Já passei pelo dissabor de julgar uma pessoa que cometeu indiscutível ato ilícito e perceber, no dia seguinte, que um familiar dela com quem mantinha certo contato, em virtude da sentença desfavorável, tinha me “bloqueado” numa rede social. Fui julgado e condenado sumariamente...
Aliás, um considerável percentual de pessoas não sabe conviver com o “não”... Muita gente coloca uma “verdade” na cabeça e se esquece de que o magistrado, isento, decide com base num conjunto de provas, não havendo, no nosso sistema, uma prova que seja mais importante do que outra. E é claro que nem tudo que a parte alega ela consegue comprovar.
O magistrado “residente” tem dificuldade para se posicionar em eventos sociais. Tem de tomar cuidado para preservar a sua imparcialidade e para não se aproximar de pessoas de reputação duvidosa (o que pode caracterizar falta funcional grave). Tem de estar vigilante, pois os outros sempre estarão. O problema é que essa “vigilância interna” (a que faz da própria conduta) lhe “consome”; por vezes tira a sua tranquilidade; impede o completo aproveitamento do momento de lazer.
Abordagens inadequadas são corriqueiras. Certa vez, um advogado conhecido me parou no meio de uma festa de casamento para dizer que fazia sessenta dias que aguardava uma deliberação minha, querendo dizer que eu estava demorando (muito embora o Conselho Nacional de Justiça, atento ao volume de serviço, tolere cem dias). Deu vontade de ir embora... Não faça isso com o seu advogado, médico, dentista, contador, gerente de conta...
Penso que o maior problema que o magistrado adquire, ao residir na Comarca, é conseguir fazer as pessoas compreenderem que não tem condições de acelerar tramitações de amigos ou conhecidos e que não pode opinar sobre fatos que estão ou poderão estar “sub judice”, tudo por conta das previsões legais que tratam de causas de impedimento e suspeição.
Depois que me removi de Penápolis(SP) para Lins(SP), minha cidade natal, passei a enfrentar algumas dificuldades. Decorrido mais de um ano, uma conhecida esteve no meu gabinete, no seu dizer, para me dar “boas-vindas” (já não era mais tempo) e logo emendou diálogo sobre o caso em que o marido (foi levado junto) era parte. Como costumo fazer, interrompi a visitante para dizer que o magistrado não pode falar com a parte sobre o caso, de forma a preservar a sua imparcialidade e até porque não seria viável... não haveria condições de recepcionar todas as pessoas interessadas nesse tipo de contato...  não seria adequado e leal ouvir uma parte “em particular”. Ela saiu meio desapontada, muito embora a explicação tivesse sido clara e bem fundamentada. E eu fiquei mais desapontado ainda, seja pelo gesto dela (que já deveria saber o que eu disse), seja pela preocupação de ser incompreendido (e de ganhar mais uma inimiga). Assim como ela, várias outras pessoas (inclusive servidores do Fórum) já interromperam o meu trabalho com a mesma finalidade de querer expor ou pedir algo e foram, da mesma forma, orientadas sobre a impossibilidade de eu ouvi-las, explicada, sempre, com educação e objetividade. Esse tipo de abordagem era, de certa forma, previsível, mas começou a me aborrecer tanto que tive de colocar uma placa na porta do meu gabinete para advertir que não atenderia à parte e nem ao familiar dela.
Sobre a agilidade na tramitação, é importante ressaltar que a legislação prevê muitas prioridades: processo de idoso, de réu preso, mandado de segurança etc. Fora isso, é preciso se dedicar aos processos na ordem em que são remetidos ao gabinete. Assim sendo, é vedado ao juiz “pinçar” casos, sob pena de responder administrativa e criminalmente. É no mínimo inconveniente qualquer pedido de aceleração da análise, a não ser que formulado por advogado e devidamente fundamentado. Por exemplo, quando a parte tem direito reconhecido, é justo liberar logo o dinheiro de que ela precisa para custear o tratamento de doença grave recém-descoberta. De resto, não há condição alguma de o juiz que convive na comunidade receber visitas de todas as pessoas que conhece, muito menos para “quebrar galhos”, prática que não condiz com a boa administração da Justiça.
O importante é que, ainda que tudo isso possa soar agressivo para algumas pessoas, a maioria entende e aceita. E a esperança é a de que quem ainda não compreenda possa, depois de ler as reflexões, evitar situações constrangedoras para si e para o magistrado. Por fim, é sempre conveniente que se dê publicidade às dificuldades inerentes à função de julgar o próximo.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito
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(publicado na edição de 1º/12/2016 do Diário de Penápolis)

Homem-Aranha

Nada melhor do que uma boa sessão de cinema para relaxar e concomitantemente refletir um pouquinho sobre a vida...

Até pode parecer brincadeira, mas enquanto assistia ao filme “Spyderman 2”, selecionei várias semelhanças entre as dificuldades enfrentadas pelo enigmático herói dos quadrinhos e os policiais que procuram retribuir à sociedade a confiança neles depositada.

Assim que assume seu posto, praticamente todo policial, a exemplo do que fazia o mascarado na primeira edição do filme, se desdobra e ostenta invejável produtividade. A princípio, contenta-se com alguns poucos elogios que lhes rendem a suficiente energia para prosseguir na sua árdua caminhada.

Basta que ouça o barulho de alguma sirene ou que presencie qualquer cena delituosa para que, ainda que em gozo de merecida folga, apresente-se para apoiar os colegas ou mesmo para intervir em favor dos mais necessitados ou para corrigir injustiças.

Com o tempo, no entanto, sua motivação deixa de ser a mesma...

Ao mesmo tempo em que é abordado por dezenas de anônimos nas ruas e recebe deles calorosos cumprimentos pela sua atuação, o policial passa a conviver com indigestas e injustas críticas que, apesar de provenientes de fontes absolutamente contaminadas, acabam se dissipando e gerando dissabores.

Infelizmente aqueles comentários elogiosos provenientes dos citados “anônimos” nem sempre alcançam a esperada divulgação, porque provêm do sofrido povo que efetivamente necessita do trabalho do profissional, mas cuja voz fraca por vezes acaba sendo abafada, não ecoa como deveria. Ainda que venham à tona, acabam sendo esquecidos diante dos boatos depreciativos. O Spyderman, por exemplo, pois depois de ter combatido o ladrão de um banco, foi equiparado ao comparsa do criminoso na primeira página do principal jornal da cidade pelo inescrupuloso diretor da publicação.

No campo pessoal, o policial atuante, se não tiver cautela ou não contar com pais, esposa, filhos ou namoradas compreensivos, fatalmente sofrerá prejuízo, pois o chamado RETP - regime especial de trabalho policial (leia-se “estar à disposição vinte e quatro horas por dia”), por alguns hilariamente denominado “regime de escravidão de trabalho policial”, o priva de fazer muitas coisas e de freqüentar lugares que não são vedados às “pessoas normais”. Nas metrópoles, por exemplo, não seria raro um policial deixar de se aproximar de alguém que gostasse ou evitar ser visto em sua companhia para evitar que esta pessoa pudesse correr alguma espécie de risco, da forma como agiu o nosso aracnídeo herói.

Tais circunstâncias, somadas à fadiga física e mental e à insatisfação com a remuneração e condições de trabalho que normalmente acompanha os policiais mais atuantes, acabam fazendo com que parte deles naturalmente diminua seu ritmo. Muitos acabam esmorecendo e até arriscando-se a serem responsabilizados penal e administrativamente por omissões que começam a protagonizar. Tal como o Spyderman, passam a fazer “vistas grossas” para situações que normalmente exigiriam ou mesmo recomendariam a sua atuação, principalmente quando não são fisicamente reconhecidos pelas pessoas que vivenciam ou presenciam junto com ele alguma situação de conflito.

O Spyderman também enfrentou, dentre outros problemas, a falta de recursos (em dado momento só comeu porque uma vizinha lhe serviu alimento), mas nem por isso fez uso de seus poderes e sequer cogitou corromper-se para solucioná-la.

É neste exato momento, nesta exata fase, que se despontam os verdadeiros heróis de cada instituição policial. Para uma boa legião de idealistas que ainda vestem fardas ou exibem distintivos, a fase ruim é temporária, pois não conseguem manter por muito tempo a indiferença aos problemas do próximo.

A vocação para combater o mal acaba falando mais alto e “atropelando” a intempérie, e diante das atrocidades que até então, por opção própria e desmotivação, assistia inerte, o verdadeiro policial resgata forças não se sabe de onde e arrosta o perigo mesmo quando seu contracheque e os previsíveis dissabores decorrentes da sua atuação (vez que, ao agir, contraria interesses) lhe recomendem fazer o contrário.

E por que será que isto acontece? Porque as adversidades constituem a fonte da qual o verdadeiro policial extrai a sua razão de existir. A ação é a melhor resposta que ele encontra para o desânimo que até então tomava conta de si. Esse fenômeno não é privilégio somente do policial: é na efetiva produção; no enfrentamento das barreiras que normalmente aparecem diante dos mais empenhados; no ato não tomar conhecimento de falácias e na opção por ignorar o não-reconhecimento que todos nós encontramos as soluções para nossas aflições profissionais e pessoais.

No filme, a infelicidade do jornalista Peter Parker somente se extinguiu quando ele se conscientizou e se convenceu de que tinha uma missão a cumprir e de que ela, inversamente do que pensava, não era a causa, mas a solução dos seus problemas. Somente executando-a com carinho, com empenho, despretensiosamente e com o espírito elevado é que o atrapalhado fotógrafo voltou a sorrir e a fazer sorrir.

Sua evolução como pessoa naquele exato instante, apesar de fictícia, tem tudo a ver com as aparentes crises que surgem para nós, personagens da história da humanidade, justamente para testarem o nosso potencial de reação e a confirmarem a nossa capacidade e a nossa competência naquilo que nos propomos a fazer. Devemos despertar para esta verdade e adotarmos uma postura mental condizente com a nossa força! Certa vez o palestrante Milton Yuki afirmou, com propriedade, que “as pessoas pessimistas são anjos que surgem para testar o seu grau de convicção”...

Ensina-nos Masaharu Taniguchi que “quando a mente está ‘embaçada’ pelas preocupações ou pensamentos sombrios, não surgem boas idéias” (Sabedoria da Vida Cotidiana, vol. 1).

A partir do momento em que o Spyderman, através de simples alteração no seu jeito de enfocar as coisas e de lidar com aquela situação que julgava problemática, despertou todo o seu potencial; conseguiu até mesmo assumir o amor que sentia por uma antiga paquera; e descobriu que estava equivocado quando achava que não seria aceito como era, ou seja, que as particularidades do seu mister não interfeririam e nem deveriam interferir na sua felicidade conjugal.

Como diria o saudoso Rui Barbosa, “maior que a tristeza de não haver vencido é a vergonha de não ter lutado".

Superemos nossas “pseudodificuldades”, elevemos nosso pensamento e encarnemos os verdadeiros heróis que existem dentro de cada um nós: sejamos verdadeiros “homens-aranhas”!

Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira

Mestre em Direito e Professor Universitário na Unimep – Campus Lins(SP)

Delegado de Polícia em gozo de licença

(publicado na edição de 31/7/2004 do Getulina Jornal)

24 de nov. de 2016

Extravio da comanda de consumo

Muitos estabelecimentos comerciais, especialmente bares, lanchonetes, padarias e casas noturnas, adotam comandas ou fichas de consumo para controlar os gastos de seus clientes. As padarias, antigamente, disponibilizavam cadernetas que ficavam com os consumidores e nem todas mantinham controles paralelos...
Outro dia passei pela lanchonete de um conhecido posto de abastecimento na Rodovia Castelo Branco e deparei com a seguinte frase na ficha de controle: “Em caso de perda da ficha de consumo, a multa será estipulada pela empresa”. Essa cláusula, imposta de forma unilateral ao consumidor, evidentemente, é abusiva. É praticamente um “cheque em branco assinado”...
Ao mesmo tempo em que a empresa corre o risco de o cliente consumir muito e, de propósito, forjar a perda da ficha; pode ser que o consumo tenha sido reduzido ou mesmo não tenha acontecido e realmente tenha havido extravio ou mesmo furto da comanda, caso em que a imposição de multa elevada seria uma franca injustiça.
O controle por ficha que fica na posse do cliente acaba incentivando o consumo e reduzindo o fluxo de clientes no caixa, o que beneficia o fornecedor. Ao mesmo tempo, a posse da ficha transfere para o cliente uma responsabilidade que, em verdade, é do estabelecimento, a quem compete controlar o consumo fazendo uso de métodos eficientes. Se o controle for feito, ao mesmo tempo, por sistema informatizado, ficará mais fácil definir o montante a ser pago, especialmente se contemplar o nome do consumidor.
Assim sendo, se surgir divergência, ela deverá ser resolvida caso a caso, de acordo com as informações disponíveis. Se o estabelecimento também registra as compras no seu sistema, bastará apurar qual foi a ficha fornecida ao cliente. Isso poderá ser feito por meio da consulta às fichas já entregues e ainda não quitadas e da comparação dos itens registrados no sistema e daqueles que o consumidor admitir que tiver consumido ou que garçonetes ou o sistema de câmeras puderem indicar como consumidos.
O cliente que perde a ficha tem de se sujeitar à verificação, mas, é evidente, ela deve acontecer em tempo razoável e de forma discreta, sem exposição desnecessária.
Às vezes, impasses sobre o efetivo consumo deságuam no Judiciário...
Diante do extravio do cartão de consumo e da discordância, por parte do cliente, do valor apresentado pelo estabelecimento, já se decidiu que a posição do primeiro devia prevalecer, uma vez que a relação é regida pelo Código de Defesa do Consumidor e incidia a chamada “inversão do ônus da prova” (a empresa tinha de ter apresentado as comandas assinadas). Foi determinada devolução do dobro do valor cobrado indevidamente (artigo 42 do CDC) (TJSP, Recurso Inominado 0036498-44.2013.8.26.0001).
Uma casa noturna foi condenada ao pagamento de indenização por danos morais por conta do constrangimento imposto a uma frequentadora. Decidiu-se que houve “utilização de meio abusivo e vexatório de cobrança”, já que, surgido impasse sobre o efetivo consumo, ela foi retida “por intervalo temporal razoável até a liberação, já pela manhã, somente depois do acionamento da Polícia Militar”. A espera foi de cinco horas e consta que a usuária tinha pagado a comanda; que a “via de liberação” tinha sido extraviada durante tumulto no local; mas que seguranças não aceitaram o comprovante do uso do cartão de crédito. O julgado destacou o “caráter descabido da prática de pressão psicológica voltada ao recebimento de créditos” (TJSP, Apelação 0125702-98.2010.8.26.0100).
No mesmo sentido, reconheceu-se a ocorrência de prejuízo moral porque o estabelecimento não provou que determinados gastos foram registrados depois que o cliente perdeu o cartão. Levou-se em conta o fato de a empresa ter impedido a saída do consumidor do local até que o pagamento acontecesse, “ato que não significa cárcere privado no caso, mas violação a direito ... com evidente constrangimento” (Apelação 9249250-89.2005.8.26.0000).
O Colégio Recursal da Capital já reverteu condenação porque entendeu que o consumidor foi o único culpado pela perda da ficha de consumo e acabou pagando o valor cobrado sem contestá-lo, tendo permanecido no local para debate o assunto por sua espontânea vontade, quando poderia, por exemplo, ter ele mesmo acionado a polícia se tivesse entendido que sofria constrangimento ilegal (Recurso Inominado 29.416, Relator Jorge Tosta, j. 18/02/2009).
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
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(publicado na edição de 24/11/2016 do Diário de Penápolis)


Responsabilidade civil por furto em guarda-volumes

Muitos estabelecimentos comerciais e bancos solicitam aos clientes que acomodem seus pertences em guarda-volumes antes do ingresso. Essa prática, em linhas gerais, não é irregular, uma vez que a empresa pode adotar procedimentos de segurança. Eventuais abusos, obviamente, devem ser punidos.
Acontece que, ao mesmo tempo em que disponibilizam compartimentos e exigem que eles sejam usados, alguns empresários do comércio (especialmente do ramo de supermercados) e do entretenimento (boates e parques de diversão) tentam se esquivar da responsabilidade por subtrações de objetos que lhe são confiados. Placas de advertência costumam ser utilizadas com essa finalidade (“Não nos responsabilizamos por furtos e danos”), mas, por si só, não isentam o guardião do dever de indenizar.
O Tribunal de Justiça de São Paulo tem diversos precedentes acerca da responsabilização de quem se propõe a guardar pertences de outrem.
Nos autos dos Embargos Infringentes 0005684-17.2009.8.26.0348, a responsabilidade de uma empresa foi afastada porque a cliente deixou seu objeto sob um balcão de livre acesso a todos, tendo sido considerada, por isso, como única responsável pelo evento danoso (subtração sofrida). O julgador deixou claro, todavia, que o estabelecimento teria sido responsabilizado se o objeto tivesse sido retirado de guarda-volumes, caso em que a responsabilidade teria se definido objetivamente.
No mesmo sentido, a pretensão indenizatória contra academia de ginástica por furto de objeto foi refutada nos autos da Apelação 0000393-87.2013.8.26.0415. Isso porque não havia local definido para o depósito de pertences dos frequentadores e a guarda de objeto de valor não fazia parte dos serviços prestados.
Subtrações de objetos acomodados em carrinhos de compras não costumam gerar direito ao ressarcimento, uma vez que normalmente decorrem da desídia da vítima (vide Apelação 0034937-06.2013.8.26.0576).
De resto, normalmente quando o objeto fica em guarda-volumes devidamente trancado; ou aberto, mas monitorado por empregado, o estabelecimento responde pela subtração ou por dano sofrido, desde que, é evidente, o depósito do bem seja efetivamente comprovado. Em alguns casos também foi reconhecido dano moral indenizável. No sentido da responsabilização: Apelações 0003439-20.2011.8.26.0168; 0339762-38.2009.8.26.0000 e 9000070-22.2010.8.26.0224. Confira-se, ainda, Apelação 1021810-23.2014.8.26.0002, que bem destacou: “Daí porque, se o sistema de guarda volumes existe (com o intuito de preservação de seu patrimônio aliado à comodidade ou captação do consumidor) e se destina exclusivamente aos clientes, deve a empresa se preocupar com a fiscalização do setor, zelando pelos bens e objetos ali depositados, em estrita observância ao dever de vigilância; o problema é seu. Nesse sentido, inclusive, a Súmula 130 do Superior Tribunal de Justiça, a cujo respeito nem se faz mister tecer considerações suplementares, não havendo porque deixar de aplicar, ao caso concreto, o mesmo regramento”.
Numa situação específica, o consumidor não foi ressarcido porque ficou provado que não trancou corretamente o guarda-volumes e não havia sinal de arrombamento (Apelação 0010813-25.2012.8.26.0533).
A prova do efetivo depósito do objeto no compartimento poderá ser feita por testemunhas ou mesmo pela utilização de imagens gravadas pelo sistema de monitoramento do estabelecimento, que, inclusive, poderão facilitar a identificação do furtador.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito
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(publicado na edição de 10/11/2016 do Diário de Penápolis)



Apologia e incitação ao crime – cautela nas “curtidas”

O artigo 287 do Código Penal define o delito de apologia de crime ou criminoso: “Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa”. Apurações do gênero não são tão comuns. Trata-se infração classificada como de menor potencial ofensivo.
Comete o delito que faz alarde com o objetivo de induzir alguém a repetir determinada prática criminosa já ocorrida, ou seja, quem elogia, enaltece. Mera descrição de fato não caracteriza apologia.
O Superior Tribunal de Justiça já enfatizou que a denúncia para apuração de apologia deve descrever a infração penal, com todas as suas circunstâncias, ou seja, indicar a conduta que elogia ou incentiva "fato criminoso" ou "autor do crime". A infração se caracteriza quando a conduta é pública, “dirigida ou presenciada por numero indeterminado de pessoas, ou, em circunstância, em que a elas possa chegar a mensagem”. Segundo o STJ, “Só assim, será relatado o resultado (perigo a paz pública), juridicamente entendido como a probabilidade (perigo concreto) de o crime ser repetido por outrem, ou seja, estimular terceiros a delinquencia” (RHC 4.660/RJ, julgado em 05/09/1995).
Muitos debates interessantes sobre a ocorrência ou não de apologia já foram travados, pois há quem defenda que a tipificação desse crime importa em censura prévia; fere a liberdade de expressão, muito embora, em linhas gerais, observados os detalhes do caso concreto, ela deva mesmo ser restringida quando houver risco para a coletividade.
Em 2010, um artista causou polêmica ao expor, na Bienal de São Paulo, retratos dele mesmo executando pessoas famosas, como Fernando Henrique Cardoso, Lula e até o Papa, o que provocou reação da OAB. Em 2004 um clipe de Gilberto Gil foi objeto de representação porque alegadamente estimulava o uso de maconha.
Vários debates já envolveram músicas de “rap” e “funk”. O Supremo certa vez negou o pedido de “habeas corpus’ ajuizado pela defesa de um cantor que interpretava música cuja letra estimulava a prática de roubos de veículos, bem como sugeria modelos mais interessantes e recomendava disparo se a vítima tentasse fugir. Isso acontece em “funks” denominados “proibidões”, cuja letras são “fortes”, divulgadas pela Internet porque emissoras não se arriscam a veiculá-los. Nos autos do HC 89.244, o Min. Marco Aurélio entendeu que era precoce interromper a investigação, ou seja, não descartou a ocorrência de crime por meio de canções. Em 2015 um julgado fluminense da lavra de Marcos Augusto Ramos Peixoto rejeitou denúncia contra um “proibidão” e privilegiou a liberdade de expressão (Proc. 0002438-06.2014.8.19.0001). Referenciou filmes (“Cidade de Deus”, por ex.) e jogos de videogame (como o GTA) que, teoricamente, também estimulam crimes, mas que fizeram e fazem sucesso. Citou a análise que o Supremo fez à “marcha da maconha”. Classificou os “funks” como “forma de arte”.
Por falar nisso, naquela ocasião o STF entendeu que participar de aglomeração voltada à defesa da descriminalização regrada da posse da maconha não configurava crime, mas mera manifestação racional do pensamento e do direito de democraticamente divergir (ADPF 187, Relator Min. Celso de Mello, julgado em 15/06/2011).
Na jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo tem sido confirmadas as penalidades impostas aos detentos que promovem apologias em estabelecimentos prisional, normalmente, por meio de canções, desenhos e divulgações de cartas que louvam organizações criminosas (Exemplos de processos: 0062243-58.2015.8.26.0000; 7009099-85.2015.8.26.0344; 7008926-78.2014.8.26.0576; 0133593-77.2013.8.26.0000; 0094217-84.2013.8.26.0000).
Tatuagens que retratam apologia devem afastar candidatos de concursos públicos, segundo decidiu recentemente o Supremo (RE 898.450).
A apologia de crime futuro pode configurar incitação ao crime, delito previsto no art. 286. Outro dia deparei com publicação no Facebook da imagem de um homem atirando na cabeça de outro e com mensagem do tipo “quem faz tal coisa merece isso”. Notei “curtidas” de servidores públicos. “Curtir” postagens desse tipo, como fizeram algumas pessoas, pode ser perigoso. Afinal, teoricamente, quando você curte, ajuda a incentivar o que está escrito. Além disso, que incita responde também pelo crime que incitou, caso venha a ser praticado. Acautele-se!
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
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(publicado na edição de 27/10/2016 do Diário de Penápolis)


Vaquejadas, rodeios e outros maus-tratos

O Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade da lei cearense 15.299/2013, que regulamentava a vaquejada como prática desportiva e cultural (ADI 4.983). Confirmou tendência para rechaçar tratamento inadequado aos animais, mesmo em eventos culturais e esportivos. Já foi assim com a “briga de galos” (ADI 1.856 e ADI 2.514) e com a “farra do boi” (RE 153.531).
Consta do processo que durante a vaquejada “uma dupla de vaqueiros, montados em cavalos distintos, busca derrubar o touro, puxando-o pelo rabo dentro de área demarcada”. Segundo o Ministério Público, os bovinos são enclausurados, açoitados e instigados, o que faz com que corram e possam ser perseguidos, quando então são agarrados pelo rabo, que é torcido até que o animal caia. Laudos apontaram “lesões traumáticas nos animais em fuga, inclusive a possibilidade de a cauda ser arrancada, com consequente comprometimento dos nervos e da medula espinhal”; e, nos cavalos utilizados na atividade, “percentual relevante de ocorrência de tendinite, tenossinovite, exostose, miopatias focal e por esforço, fraturas e osteoartrite társica”. O Governo do Ceará ressaltou a importância histórica e turística da vaquejada, reconhecida como “prova de rodeio” pela Lei federal 10.220/2001 (que equiparou peões aos atletas profissionais). Mas os argumentos não convenceram a maioria dos Ministros do STF...
Segundo o relator, Min. Marco Aurélio: “Os precedentes apontam a óptica adotada pelo Tribunal considerado o conflito entre normas de direitos fundamentais – mesmo presente manifestação cultural, verificada situação a implicar inequívoca crueldade contra animais, há de se interpretar, no âmbito da ponderação de direitos, normas e fatos de forma mais favorável à proteção ao meio ambiente, demostrando-se preocupação maior com a manutenção, em prol dos cidadãos de hoje e de amanhã, das condições ecologicamente equilibradas para uma vida mais saudável e segura”. Sua Excelência observou que a vaquejada envolve “crueldade intrínseca” e que o dever de proteção ao meio ambiente (artigo 225 da Constituição Federal) deve se sobrepor aos valores culturais da atividade desportiva. Classificou a prática como “intolerável”, diante da “verdadeira tortura prévia – inclusive por meio de estocadas de choques elétricos – à qual é submetido o animal, para que saia do estado de mansidão e dispare em fuga a fim de viabilizar a perseguição”.
No Estado de São Paulo, a Lei 11.977/2005 instituiu o Código de Proteção aos Animais, que proibiu expressamente a vaquejada e também a utilização de animais em circos. Já escrevi sobre o Código, que trouxe regramento abrangente sobre acomodações em granjas, lojas de animais e veterinárias; abusos de carroceiros; proibição do abate com sangria; vedação da eutanásia com método cruel; normas sobre transportes, experimentos com animais e vários outros temas. O texto legal veda a apresentação ou utilização de animais em provas de rodeio e espetáculos similares que envolvam o uso de instrumentos que visem a induzi-los à realização de atividade ou comportamento que não se produziria naturalmente. Quem defende a natureza tem de conhecê-lo.
A vaquejada e a prova do laço já foram proibidas em Barretos pelo Tribunal de Justiça paulista (Apelação 2146983-12.2015.8.26.0000).
Dezenas de ações já discutiram os rodeios e muitas vezes eles foram autorizados, desde que não houvesse uso de artifícios causadores de flagelação. Em alguns casos foram proibidos.
No meu entender, depois do pronunciamento do Supremo, pode ser que o Judiciário passe a se inclinar pela proibição total dos rodeios, o que faço votos que aconteça. A legislação e os precedentes jurisprudenciais estão evoluindo nesse sentido. Em linhas gerais, por mais que os adeptos tentem negar, rodeios envolvem crueldades semelhantes àquelas que foram destacadas no julgamento sobre as vaquejadas. Nenhum cavalo ou boi salta daquele jeito sem ser ofendido. Não importa que coma a melhor ração. Fica confinado e já sabe que quando o locutor gritar, será agredido. Não é relevante que seja por pouco tempo. Em muitos municípios, já foram editadas legislações proibitivas. Como proibições não são medidas populares, muitas autoridades, infelizmente, ainda se acovardam. No âmbito da Câmara dos Deputados, por exemplo, a proibição de rodeios foi retirada do relatório da CPI dos Maus-Tratos a Animais e um dos membros alegou: “Se proibirmos isso, vamos tirar a alma do interior [do Brasil]”.
Alguns alegam que haveria prejuízo social, pois rodeios geram empregos etc. Mas isso não deve ser levado em conta quando é preciso proteger um bem jurídico relevante. Os envolvidos migrariam para outras atividades, tal como fizeram os cortadores de cana que ficaram desempregados com as restrições às queimadas. As pessoas se acostumariam, assim como se acostumaram com outras restrições que inicialmente causaram impactos, mas que, felizmente, foram impostas para a construção de uma sociedade mais justa e para o bem-estar de todos.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito
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(publicado na edição de 20/10/2016 do Diário de Penápolis)




Bem de família e fiança locatícia

A penhora é uma medida constritiva por meio da qual o Poder Judiciário vincula determinados bens à dívida que alguém, uma vez notificado, deixou de saldar. Efetivada a penhora, tais bens passarão a servir como garantia do pagamento.
A Lei Federal 8.009/1990 restringe a penhora do chamado “bem de família”, em linhas gerais, da seguinte maneira:
a) “O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam”;
b) “A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados”;
c) “Excluem-se da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos”.
A casa do devedor é impenhorável, mas há exceções. Quem contrai obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação não pode invocar impenhorabilidade. Bem por isso, o fiador deve fiscalizar constantemente a pontualidade do afiançado, a fim de não ter uma surpresa desagradável quando a dívida se acumular...
Nos autos do Recurso Especial 1.363.368, em 2013, a parte recorrente invocou ofensa ao princípio da solidariedade e à dignidade do garantidor (fiador) e de sua família ao alegar que é desproporcional impor a perda do imóvel residencial. Criticou a sobreposição de um direito disponível – crédito – sobre um direito fundamental – moradia – que foi previsto no artigo 6º pela Emenda Constitucional 26/2000. O Superior Tribunal de Justiça, todavia, acabou reafirmando entendimento que ser observado pelos tribunais inferiores e juízos de direito: "É legítima a penhora de apontado bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, ante o que dispõe o artigo 3º, inciso VII, da Lei n. 8.009/1990". Destacou que o Supremo Tribunal tem confirmado a constitucionalidade da norma que permite a penhora do bem de família por dívida de fiança locatícia (Recurso Extraordinário 407.688, julgado em 2006; Recurso Extraordinário 612.360, julgado em 2010, com repercussão geral).
No julgamento do RE 612.360 pelo STF, o Min. Joaquim Barbosa ponderou, didaticamente, ao tratar do direito à moradia que acaba sendo atingido pela penhora contra o fiador: “A decisão de prestar fiança, como já disse, é expressão da liberdade, do direito à livre contratação. Ao fazer uso dessa franquia constitucional, o cidadão, por livre e espontânea vontade, põe em risco a incolumidade de um direito fundamental social que lhe é assegurado na Constituição”.
Um dos argumentos invocados em favor dessa permissão de penhora é o fato de que ela fomenta o mercado imobiliário, pois, se deixasse de ser aplicada, proprietários de imóveis poderiam se desestimular, o que prejudicaria muita gente que não tem casa própria, seja pela redução da oferta, seja pelo consequente encarecimento dos alugueres.
Em resumo, quando você se dispõe a ser fiador para ajudar alguém a ter um “teto” (a alugar uma casa), pode ficar sem o seu... Isso porque se o afiançado não pagar a dívida, o credor poderá acioná-lo. E se você não tiver condições de pagar a conta, a sua própria casa poderá ser penhorada para garantir a satisfação da dívida.
Talvez por isso, conforme popularmente se diz, muita gente prefere negar a fiança e correr o risco de perder o amigo (se ele não compreender a negativa); do que afiançar e correr o risco de perder o amigo inadimplente (por conta do mal-estar que poderá surgir), o dinheiro (ou a casa) e a paz...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
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(publicado na edição de 6/10/2016 do Diário de Penápolis)


Cobranças bancárias (tarifas) – discussões jurídicas

O Poder Judiciário tem sido constantemente instado a deliberar sobre a legalidade ou não de determinadas cobranças bancárias, ainda que expressamente previstas em contratos. Muitas vezes o consumidor não tem escolha; acaba tendo de assinar o contrato mesmo sem concordar com determinadas regras, sob pena de não conseguir o financiamento. Depara com o chamado “contrato de adesão” (uma espécie de formulário) e o gerente alega que não pode alterar o conteúdo. Nesse caso, o Judiciário pode afastar a incidência de cláusulas abusivas para restabelecer o equilíbrio contratual.
O Supremo já decidiu que discussões sobre “cobrança de tarifas e taxas administrativas acessórias, vinculadas a contratos bancários”, não possuem repercussão geral (ARE 895511 AgR), tendo reforçado a competência do STJ para pacificar a interpretação da lei infraconstitucional.
O Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o Recurso Especial 1.251.331/RS, aos 28/8/2013, firmou alguns posicionamentos. Vejamos o que foi decidido:
a) a partir da vigência da Resolução 3.518/2007, do Conselho Monetário Nacional, aos 30/4/2008, a cobrança por serviços bancários passou a depender de regulamentação do Banco Central do Brasil (Bacen);
b) “a tarifa de abertura de crédito (TAC) e a tarifa de emissão de carnê (TEC) não foram previstas na Tabela anexa à Circular Bacen 3.371/2007 e atos normativos que a sucederam, de forma que não mais é válida sua pactuação em contratos posteriores a 30.4.2008”;
c) a TAC e a TEC podem ser cobradas em contratos celebrados até 30/4/2008 (início da vigência da Resolução CMN 3.518/2007), se não houver abuso, o que terá de ser analisado caso a caso (a Súmula 565 do STJ, de fevereiro de 2016, deixou claro que o entendimento se aplica a qualquer cobrança, independentemente da denominação, desde que fundada no mesmo fato gerador);
d) é possível a cobrança da tarifa de cadastro, que remunera o serviço de "realização de pesquisa em serviços de proteção ao crédito, base de dados e informações cadastrais, e tratamento de dados e informações necessários ao inicio de relacionamento decorrente da abertura de conta de depósito à vista ou de poupança ou contratação de operação de crédito ou de arrendamento mercantil" (tabela anexa à vigente Resolução CMN 3.919/2010, com a redação dada pela Resolução 4.021/2011), devendo incidir apenas “no início do relacionamento entre o consumidor e a instituição financeira” (em 2016, a Súmula 566 do STJ previu a regularidade da cobrança “nos contratos bancários posteriores ao início da vigência da Resolução-CMN n. 3.518/2007, em 30/4/2008”);
e) “É lícito aos contratantes convencionar o pagamento do imposto sobre operações financeiras e de crédito (IOF) por meio financiamento acessório ao mútuo principal [embutir o tributo no valor financiado], sujeitando-o aos mesmos encargos contratuais”.
O julgamento foi feito em “recurso repetitivo”. Esse sistema é adotado “sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito” (artigo 1.036 do Código de Processo Civil). Os demais tribunais devem aplicar as teses firmadas.
Outras cobranças ainda não foram analisadas com a mesma abrangência pelo STJ.
O seguro de proteção financeira (ou seguro prestamista), segundo se tem decidido, pode ser cobrado se tiver sido livremente contratado (não houver prova da imposição), porque constitui benefício ao consumidor, se sobrevier sinistro (por exemplo, a ajuste pode comportar quitação do contrato no caso de óbito). Mas há precedentes no sentido de que a sua inserção no custo do financiamento, mesmo que tenha havido aceitação, caracteriza “venda casada” (o artigo 39 do Código do Consumidor proíbe “condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço”). Se o consumidor não teve escolha, evidentemente, a cobrança é abusiva (STJ, AREsp 554.230).
Via de regra, montante destinado à “promotora de vendas” não pode ser repassado ao consumidor, pois retrata custo inerente à atividade financeira.
No que diz respeito aos “serviços de terceiros”, “serviços de correspondente não bancário” e “outros serviços não discriminados”, tem predominado o entendimento de que as cobranças são ilegais se não houver detalhamento dos motivos, pois a falta de clareza ofende princípios básicos de Direito do Consumidor. Se o contrato tiver indicado os motivos das cobranças, o julgador analisará, em cada caso, a regularidade.
Quanto ao “registro de gravame” e o “registro de contrato”, há quem pense que devem ser custeados pelo banco (pois traduzem custos contratuais), que tem interesse direto nas providências; e há quem entenda que podem ser repassados ao consumidor, pois intrínsecos ao contrato (quem adquire bem financiado responde por emolumentos cartorários e gravame eletrônico).
No tocante à “tarifa de avaliação do bem”, uns dizem que quando o banco financia veículo usado, tem interesse em avaliar e deve arcar com a despesa; mas há quem sustente que pode ser cobrada do interessado no financiamento, desde que não haja abusividade (que o valor da avaliação não signifique percentual elevado do bem avaliado), pois o Banco Central consente.
Aos 2/9/2016, nos autos do Recurso Especial 1.578.526, atento à multiplicidade de recursos sobre os temas, o STJ determinou a “suspensão, em todo o território nacional, dos processos pendentes que versem sobre” serviços prestados por terceiros; registro do contrato; e avaliação do bem dado em garantia. Trata-se de mais um recurso repetitivo que, quando solucionado, interferirá nas decisões de tribunais e juízos de direito.
É importante ressaltar que as instituições financeiras adotam nomenclaturas variadas para cobranças embasadas em situações idênticas àquelas acima referidas.
O texto não pretende esgotar o assunto e muito menos fazer prejulgamento, mas apenas esclarecer a interpretação que vem sendo dada a cada cobrança [finalizado aos 28/9/2016].
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
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(publicado na edição de 29/9/2016 do Diário de Penápolis e na edição de outubro de 2016 da Revista Comunica)



Bicicleta motorizada requer condutor habilitado

Ao analisar recurso dirigido ao Colégio Recursal de Lins(SP), propus a confirmação de sentença que não acolheu pretensões de rescisão contratual, devolução de valor pago e indenização por danos morais. Segundo o consumidor que tinha recorrido, ao efetivar a aquisição de bicicleta elétrica, não foi informado pelo empregado da loja de que necessariamente precisaria de habilitação para utilizá-la. O adquirente não tinha habilitação e, por isso, sustentou que a sua expectativa foi frustrada por falha no dever de informação previsto no Código de Defesa do Consumidor. A tese, todavia, não foi acolhida, já que a necessidade de carteira de habilitação decorre de lei e se estende ao uso de bicicletas motorizadas. Ninguém pode descumprir norma sob o pretexto de que não a conhece (art. 3º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro - Decreto-Lei 4.657/1942). Ademais, o recorrente não demonstrou que tinha sido vítima de propaganda enganosa, especialmente, porque a nota fiscal apontava o produto adquirido como “moto”.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) disponibiliza muitos precedentes sobre a obrigatoriedade de “Autorização para Conduzir Ciclomotor – ACC”. As pessoas que tem impetrado mandados de segurança não tem obtido êxito. As pretensões esbarram no art. 141 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), assim redigido: “O processo de habilitação, as normas relativas à aprendizagem para conduzir veículos automotores e elétricos e à autorização para conduzir ciclomotores serão regulamentados pelo Contran”.
Os julgados tem invocado a Resolução Contran 168/2004, que “estabelece normas e procedimentos para a formação de condutores de veículos automotores e elétricos, a realização dos exames, a expedição de documentos de habilitação, os cursos de formação, especializados, de reciclagem e dá outras providências” (Apelação 1011885-15.2015.8.26.0019).
A bicicleta foi equiparada a ciclomotor no Anexo I do CTB (Apelação 0002210-60.2012.8.26.0533) e a questão também foi objeto da Resolução Contran 315/2009. Destacou-se, nos autos da Apelação 1006640-49.2015.8.26.0269, que aquela lei considera bicicleta o “veículo de propulsão humana, dotado de duas rodas, não sendo, para efeito deste Código, similar à motocicleta, motoneta e ciclomotor”. Enfatizou-se que o CTB também classificou como ciclomotor o “veículo de duas ou três rodas, provido de um motor de combustão interna, cuja cilindrada não exceda a cinquenta centímetros cúbicos (3,05 polegadas cúbicas) e cuja velocidade máxima de fabricação não exceda a cinquenta quilômetros por hora”. Consignou-se que, segundo a resolução, “para os efeitos de equiparação ao ciclomotor, entende-se como cicloelétrico todo o veículo de duas ou três rodas, provido de motor de propulsão elétrica com potência máxima de 4 kw (quatro quilowatts) dotados ou não de pedais acionados pelo condutor, cujo peso máximo incluindo o condutor, passageiro e carga, não exceda a 140 kg (cento e quarenta quilogramas) e cuja velocidade máxima declarada pelo fabricante não ultrapasse a 50 km/h (cinquenta quilômetros por hora). Também ficou mencionado que “inclui-se nesta definição de cicloelétrico a bicicleta dotada originalmente de motor elétrico, bem como aquela que tiver este dispositivo motriz agregado posteriormente à sua estrutura” (motorização “de fábrica” ou adaptada).
É necessário registro da bicicleta motorizada (Apelação 0005769-65.2010.8.26.0510). Nesse sentido os artigos 24 e 129 do CTB. Aliás, o artigo 129 previa que o registro e o licenciamento dos ciclomotores deveriam ser regulamentados por legislação municipal, mas a redação foi alterada pela Lei Federal 13.154/2015. A competência municipal foi excluída, muito provavelmente, porque a maioria dos municípios não editou lei regulamentadora. Cabe agora aos Estados e ao Distrito Federal a tomada de providências. A mesma lei 13.154, não é demais mencionar, previu o registro de tratores e máquinas agrícolas, sem ônus, pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, diretamente ou mediante convênio.
Decisões recentes tem determinado a liberação de bicicleta motorizada se apreendida com base na ausência de registro nos órgãos de trânsito, isso se o bem tiver sido adquirido antes de 31/7/2015. O fundamento tem sido a possibilidade de regularização de registro e de licenciamento no Renavam pelo prazo de dois anos, a contar da vigência da Resolução Contran nº 555/2015 (Apelação 1015781-31.2015.8.26.0451), alterada pela Resolução 582.
Nos autos da Apelação 0005322-94.2011.8.26.0396 ficou consignada, obviamente, a necessidade de equipamentos obrigatórios de segurança.
Tratando-se de veículo automotor, o tribunal tem decidido, inclusive, que acidentes de trânsito envolvendo bicicletas motorizadas (inclusive a queda causada pela imprudência do condutor de outro veículo) legitimam a cobrança do seguro obrigatório. DPVAT. Nos autos dos Embargos de declaração 1001254-94.2015.8.26.0024 ficou resolvido que “a Lei Federal 6.194/74, que dispõe sobre o seguro obrigatório, não faz qualquer distinção quanto à natureza do infortúnio, bastando, para viabilizar a pretensão indenizatória, que os danos tenham como causa um acidente com veículo automotor de via terrestre ou sua carga, a pessoas transportadas ou não”.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
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(publicado na edição de 22/9/2016 do Diário de Penápolis)



Estacionamento e responsabilidade civil

Está cada vez mais difícil estacionar veículo nos centros comerciais de cidades de médio e grande porte. Em razão disso, o estabelecimento que fornece vagas aos clientes, sem dúvida, leva vantagem sobre os concorrentes...
O problema é que alguns empresários experimentam esse bônus, ao mesmo tempo em que tentam se livrar dos ônus... De vez em quando a gente depara com placas por meio das quais os estabelecimentos tentam se eximir da responsabilidade pelo que possa acontecer nos seus estacionamentos...
A legitimidade do Ministério Público para questionar cláusula que excluía a responsabilidade da rede de supermercados quanto a eventuais danos ocorridos em veículos dentro de estacionamento destinado a seus consumidores foi confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça quando apreciou o AgRg no AREsp 372.936.
Segundo a Súmula 130 do STJ, “a empresa responde, perante o cliente, pela reparação de dano ou furto de veiculo ocorridos em seu estacionamento”. O tribunal tem teses consolidadas sobre o tema.
Nos autos do AgRg no AREsp 841.921/SP, o STJ reafirmou que “shoppings centers”, bancos e supermercados respondem por furtos e roubos ocorridos nos seus estacionamentos, pois devem zelar pela segurança dos consumidores. No caso dos “shoppings”, um dos principais atrativos é justamente a maior sensação de segurança que propiciam e isso, conforme destacado no julgado, incrementa o volume de vendas. Segundo o tribunal superior, no caso de ação violenta, os danos morais são presumidos, não sendo necessário produzir prova acerca da sua ocorrência (REsp 582.047⁄RS).
A empresa que fornece estacionamento aos veículos de seus clientes, conforme Recurso Especial 1.269.691, “assume o dever – implícito em qualquer relação contratual – de lealdade e segurança, como aplicação concreta do princípio da confiança”.
A responsabilidade de um posto de combustível pelo furto de caminhão no seu estacionamento foi reconhecida mesmo que o uso fosse gratuito, pois essa facilidade, usualmente concedida, cativa clientes; agrega valor à atividade-fim. Afinal, o estabelecimento, ao fornecer vagas, assume o dever de guarda e proteção (teoria do risco da atividade empresarial). Tratando-se de relação de consumo, cabe à empresa demonstrar que a culpa foi exclusivamente da vítima ou de terceiro; que não oferece serviço de estacionamento a seus clientes ou que o furto do veículo não ocorreu em suas dependências (AgRg no AREsp 609.976).
Noutro caso, ainda que o furto tivesse se consumado em estacionamento de faculdade privada sem fins lucrativos, ela foi responsabilizada. Ficou estabelecido que a ausência de finalidade lucrativa não interferia na solução da questão (AgRg no REsp 1.408.498).
O estabelecimento de lava-rápido, de estacionamento ou que recebe o veículo para reparo, segundo o STJ, responde por furto ou roubo de veículo ocorrido nas suas dependências, diante da falha no dever de guarda (AgRg no REsp 1.535.751; REsp 218.470; AgRg no REsp 1.235.168; AgRg no AREsp 408.494). Existe decisão no sentido de que “o roubo à mão armada exclui a responsabilidade de quem explora o serviço de estacionamento de veículos” (REsp 1.232.795).
Ao julgar o REsp 195.664, o STJ enfatizou: "A empresa que permite aos seus empregados utilizarem-se do seu parqueamento, aparentemente seguro e dotado de vigilância, assume dever de guarda, tornando-se civilmente responsável por furtos de veículos a eles pertencentes ali ocorridos". "Conclusão que se impõe diante da evidência de que a empresa, ao assim proceder, aufere, como contrapartida ao comodismo e segurança proporcionados, maior e melhor produtividade dos funcionários, notadamente por lhes retirar, na hora do trabalho, qualquer preocupação quanto à incolumidade de seus veículos". No mesmo sentido: AgRg no AREsp 645.896; REsp 1.484.908.
Prepondera o entendimento de que “em se tratando de estacionamento de veículos oferecido por instituição financeira, o roubo sofrido pelo cliente, com subtração do valor que acabara de ser sacado e de outros pertences não caracteriza caso fortuito apto a afastar o dever de indenizar, tendo em vista a previsibilidade de ocorrência desse tipo de evento no âmbito da atividade bancária, cuidando-se, pois, de risco inerente ao seu negócio” (REsp 1.232.795). Confira-se, ainda, AgRg no AREsp 195.736.
Os detalhes de cada caso e a interpretação das provas pelo magistrado, evidentemente, poderão impor desfecho diverso daqueles que tem sido adotados.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
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(publicado na edição de 15/9/2016 do Diário de Penápolis)