Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

12 de dez. de 2014

Pane jornalística


            Dias atrás tive acesso à edição de 11/11/2014 do jornal “O Dia - Marília” e fiquei mais uma vez estarrecido...
            Digo “mais uma vez” porque recentemente tratei das críticas feitas de forma inconsequente ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro por conta do julgamento do caso que envolveu o juiz e a agente de trânsito, e, na ocasião, enfatizei que infelizmente a imprensa nem sempre procura se informar de detalhes que envolvem as decisões do Poder Judiciário e acaba ela mesma promovendo injustiças com pessoas e com a própria justiça.
            O editorial da referida edição, intitulado “Pane Jurídica”, expressão que inspirou o tema deste artigo, começou afirmando que “tem algo de errado com a Justiça no Brasil” e, dessa forma, levianamente ofendeu milhares de profissionais compromissados com o que fazem.
            A crítica teve a ver, segundo consta, com a ordem de soltura prolatada pelo mesmo Tribunal fluminense: “Agora, também no Rio de Janeiro, desembargadores colocam em liberdade acusado de chefiar o tráfico que já tinha mandado de prisão contra si”.
            As ofensas e os equívocos prosseguiram: “Ao que parece, os nobres magistrados estão em ‘pane’. Algo de muito errado está acontecendo. Será que é sobrecarga de trabalho? Peças processuais mal feitas que dificultam o entendimento dos juízes ou é ‘apenas’ prevaricação? (...) Ninguém observou que o tal Orelha, que é o vulgo do traficante Edson Silva de Souza, tinha contra si um outro mandado de prisão e por isso não poderia ser solto? (...) O alvará de soltura foi expedido, mesmo havendo um outro mandado de prisão contra o acusado” (sic).
            Como sempre faço, vou tentar desmistificar essas idéias equivocadas...
            Em primeiro lugar, o crime de prevaricação consiste em “retardar ou deixar de praticar, INDEVIDAMENTE, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal” (artigo 319 do Código Penal).     Havendo escolhas legais, afasta-se o crime. Só se consuma se houver dolo na ação e na finalidade. O erro, a preguiça, a deficiência e a desídia não são suficientes. Determinar a expedição de alvará de soltura nem de longe se encaixa na definição legal.
            Mas o mais importante é desfazer um engano ainda mais grave do redator. Quando o juiz analisa determinado caso, tem a liberdade de optar pela soltura independentemente do que se passa em outra investigação e do que já decidiu outro magistrado. Não está vinculado a nada e nem a ninguém, mas apenas à sua consciência e ao seu entendimento, que é livre, muito embora tenha de ser motivado. Nada impede o juiz de conceder liberdade mesmo que outro juízo tenha imposto ou mantido a prisão do mesmo investigado. Quem tem o dever de verificar se existe alguma ordem de prisão que impeça a soltura é a autoridade policial ou o diretor do estabelecimento prisional. E é isso que está sendo averiguado: qual foi a razão de a soltura ter se efetivado pela equipe da carceragem...
            Em resumo: os mandados de prisão e alvarás de soltura são cadastrados em sistema informatizado e remetidos para a mesma autoridade administrativa. Cabe a esta autoridade, antes de dar cumprimento ao alvará de soltura, verificar se pode colocar a pessoa em liberdade. Se existir determinação de prisão a ser cumprida, a autoridade administrativa deve certificar cumprimento ao alvará de soltura, mas, ao mesmo tempo, manter o indivíduo custodiado, de tudo informando o Judiciário.
            Assim sendo, não é possível que o juiz de um processo desfaça a decisão de prisão exarada pelo juiz de outro processo. Cada magistrado age de forma independente e a convicção da necessidade de manter a prisão antes da condenação é formada a partir do que consta em cada processo. No Direito costumamos dizer que “o que não está nos autos, não está no mundo”, ou seja, que a convicção não pode ser formada a partir de elementos externos. O juiz não pode se deixar levar pelo que a imprensa e/ou a população desejam que aconteça, mas tomar a sua decisão de forma isenta e técnica. A imprensa e a população devem respeitar a decisão ou pelo menos comentá-la com educação, responsabilidade e, preferencialmente, depois de consultar alguém do ramo. Isso porque se o Direito já é bastante complexo para quem lida cotidianamente com ele, a possibilidade de o leigo fazer um comentário impertinente é muito grande.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
(publicado no Correio de Lins de 10/12/2014 e no Diário de Penápolis de 11/12/2014)

Observação: este texto complementa o artigo "Malhação de Judas", que será publicado em breve neste blog, assim que a edição de dezembro da revista Comunica for distribuída.