Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

4 de set. de 2014

Entre a cruz e a espada

Vigora no nosso Direito o princípio da livre convicção motivada, que, em síntese, significa que a maciça maioria das situações postas em Juízo pode ser comprovada por quaisquer meios lícitos de prova, isso sem que haja hierarquia entre elas. Cabe ao julgador, diante do conjunto probatório, apenas fundamentar quais foram os elementos preponderantes à formação do seu convencimento.
Nas ações de aposentadoria rural, a prova testemunhal assume especial importância. Grosso modo, para quem atuou a vida inteira na roça, trabalhando na informalidade, sem registro em carteira, a lei exige apenas início de prova escrita (documentos antigos que apontem a atuação rurícola) e admite que o período todo seja ratificado por testemunhas, tudo porque no passado o vínculo com a terra, principalmente no que tange às mulheres, dificilmente era documentado.
Sem querer polemizar, tenho ponderado que infelizmente o cotidiano forense tem me obrigado a ser mais rigoroso na análise da prova oral. Isso porque é comum depararmos com alguns advogados orientando testemunhas de forma velada ou até explícita nos corredores ou na frente do Fórum. Às vezes o magistrado passa ao lado e o “diretor do teatro” não se abala...
Na Comarca de Cafelândia, por exemplo, comparei os relatos de uma testemunha (que depunha semanalmente, diga-se de passagem) com o seu depoimento pessoal no processo em ela mesma tinha conseguido a aposentadoria e constatei que não havia coerência entre as falas no que tange às propriedades rurais em que ela teria atuado. Era, em verdade, uma testemunha profissional.
Em Penápolis(SP), uma testemunha, ao ingressar no prédio, com o fito de saber em que sala seria ouvida, acabou apresentando na portaria uma carta por meio da qual uma advogada a tinha recomendado a passar antes no seu escritório para que fosse orientada sobre o que deveria dizer para que o desfecho fosse de procedência. O “ensaio”, portanto, seria feito em outro local.
É evidente que a maioria dos advogados atua de acordo com a lei e com os preceitos éticos, mas como o juízo acaba tendo dificuldade para comprovar algumas irregularidades e não pode discriminar o trabalho de quem quer que seja, tenho defendido que precisa adotar posicionamento uniforme que, se por um lado, reconheço, pode deixar alguém que faça jus ao benefício sem ele; por outro, evita o deferimento da aposentadoria “no atacado”, com grande impacto para o erário.
O Poder Judiciário não é entidade beneficente e o ônus da prova incumbe a quem alega. Cabe à parte diligenciar em repartições públicas, sindicatos, cartórios, escritórios e outros. Mas, via de regra, a parte tem se contentado com documentos que referenciam apenas o cônjuge como rurícola e tentado estender essa condição a si mesma. A prática mais comum é apresentar certidão de casamento que menciona o marido como lavrador para sustentar que a mulher, apontada como dona-de-casa no mesmo documento, também se dedicou à agricultura.
Penso que o Judiciário deve conduzir ações previdenciárias com responsabilidade, se empenhar na colheita da prova oral, explorar detalhes e contradições, pois não se cuida de apenas deferir mais um benefício, mas de adotar posicionamento que de certa forma vinculará o julgador em casos análogos, já que toda mudança de posicionamento deverá ser justificada, sob pena até de averiguação de inépcia profissional.
Defendo que não basta, para a aposentadoria, que duas testemunhas digam que a parte “plantou arroz, feijão e milho para o José de tal, para o Manoel de tal e para o Antonio de tal”, muitas vezes sem qualquer referência ao nome da propriedade rural; e que a parte foi rurícola “a vida inteira”. Não me sinto confortável com a procedência nessas circunstâncias.
Fico “entre a cruz e a espada” quando a prova escrita é fraca, pois isso pode acontecer ou porque a parte de fato era lavradora e não conseguiu recolher mais documentos ou porque não foi bem orientada a esse respeito. E nesse caso a dedicação à roça pela vida toda poderá não ser recompensada com o benefício. Mas como a credibilidade na prova oral ficou abalada em razão das situações expostas (muito embora eu nunca tenha cogitado generalizar), acabo tendo de seguir uma linha coerente de interpretação que, no mais das vezes, exige bom amparo documental à pretensão e atenção aos detalhes, como sotaque, sinais físicos comuns em rurícolas, naturalidade ao falar da vida na roça etc.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito em Penápolis(SP)
Professor no Unisalesiano Lins(SP)
(publicado no Diário de Penápolis de 4.9.2014)