Getulina(SP), meados de 2000... Acidente fatal na Rodovia Transbrasiliana...
Como Delegado de Polícia, passei a arrecadar os pertences do falecido para
identificá-lo... Naquele momento, o celular que recolhi no bolso dele tocou...
Era uma mulher... Nosso diálogo: Cadê meu noivo? Boa tarde, senhora, ele teve
um problema e estou com o celular dele. O que aconteceu (já desesperada)? Houve
um acidente e ele está sendo atendido. Pode dizer que ele morreu, eu sei que
ele morreu... Eu vou me matar aqui (totalmente descontrolada)... A vida não tem
mais sentido. Calma senhora! Eu quero morrer!!!
Em síntese, a mulher, de pronto, quando o noivo não atendeu ao chamado,
desconfiou que algo de grave tinha acontecido. Ainda que eu tivesse desejado
contornar a situação, tive de admitir o óbito. A partir de então mantivemos uma
longa conversa com o objetivo de evitar uma segunda morte (suicídio). Momentos
de grande tensão, mas o desfecho foi positivo...
Lembrei-me do evento enquanto assistia ao filme Chamado de Emergência,
estrelado por Halle Berry, que mostra o drama de uma atendente do serviço 911
da polícia norte-americana frente aos pedidos de socorro e às mortes
“testemunhadas” durante os telefonemas. Ela passa a se incomodar por não poder
intervir como gostaria, por se sentir impotente diante de certas situações. Nos
momentos mais tensos, as atendentes buscam se reequilibrar na
“sala isolada”, cômodo especialmente destinado para isso.
Nos primeiros meses de Magistratura tivemos acompanhamento psicossocial, mas, a
bem da verdade, esse atendimento deveria persistir durante toda a carreira. Eu,
por ex., pensei por quatro dias para autorizar a interrupção da gestação do
feto anencéfalo, pois o deferimento seria irreversível. Cotidianamente vivencio
desgraças humanas como o caso do pai que engravidou a filha por duas vezes.
Ouvir um adolescente contando, com frieza, como matou o dono de uma padaria,
mexeu comigo. Mesmo as situações aparentemente menos graves como os divórcios
repercutem emocionalmente, principalmente quando crianças experimentam as
conseqüências. Nem sempre consigo manter “distância” do problema do outro, o
que tem seu lado positivo (maior chance de acertar ao decidir), mas também o
negativo (sensações desagradáveis). Às vezes chego bem desgastado ao final do
expediente...
São
muitas as situações, mas o objetivo aqui não é propriamente relatar o que
enfrentei e enfrento na minha atividade profissional... Toda profissão tem seus
“espinhos”, mas algumas carreiras profissionais deveriam receber constante
acompanhamento psicológico. Antes de eleger a sua carreira, é preciso que você
tenha exata noção do quanto o seu emocional estará exposto. O maior estresse
sem dúvida tem a ver com o contato com a morte. Policiais, bombeiros e
profissionais da saúde muitas vezes sofrem por não conseguirem evitá-la.
Psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais e religiosos sofrem para minimizar
os impactos que dela decorrem. Juízes e promotores sofrem quando ouvem as
pessoas envolvidas e para formarem o convencimento aparentemente mais adequado
sobre o desfecho a ser dado a cada caso. O sofrimento humano contamina todos à
sua volta, por mais profissionais que sejam. Às vezes o alcoolismo e as drogas
se tornam uma perigosa rota de fuga para o profissional, a depender do quanto
se “contamina” com as tragédias.
A quem pretende ingressar no mercado de trabalho recomendo teste vocacional.
Mais do que isso, sugiro que verifique,
de perto, as dificuldades da profissão cogitada. Caso contrário, poderá perder
valioso tempo da sua vida estudando para aquilo que não conseguirá desempenhar
ou sentirá muito desconforto durante a sua carreira se não tiver alternativa ou
se não tiver a iniciativa de mudar de rumo.
A quem já experimenta as conseqüências da profissão, convém avaliar se vale a
pena prosseguir, se não há como fazer ajustes que possam preservar seu
emocional, ou mesmo se não seria o caso de buscar acompanhamento profissional
permanente. Sugere-se que o empregador avalie a possibilidade de encaminhar
aquele bom empregado que enfrenta dificuldades. Assim, terá chance de resgatar
todo o seu potencial de trabalho e de retribuir tudo o que ele já fez. Se a
empresa não acreditar na importância do acompanhamento ou por alguma razão não
disponibilizá-lo (para evitar custos etc.), pode ser o caso de o interessado
custear, ele mesmo, esse serviço. Muito embora não pareça justo, na prática
esse investimento na saúde poderá poupar a pessoa de conseqüências gravíssimas
que não raramente interferem na sua vida como um todo, às vezes, para sempre.
É preciso, de qualquer forma, muita atenção para que intervenções aconteçam no
momento certo, pois quando a “luz vermelha se acender” a “sala isolada”
poderá já não ser suficiente... Aí poderá ser tarde demais...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito em Penápolis(SP)
Professor no Unisalesiano
(redigido para a edição de jan/2014 da Revista Comunica)