Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

16 de jan. de 2014

Sala isolada


            Getulina(SP), meados de 2000... Acidente fatal na Rodovia Transbrasiliana... Como Delegado de Polícia, passei a arrecadar os pertences do falecido para identificá-lo... Naquele momento, o celular que recolhi no bolso dele tocou... Era uma mulher... Nosso diálogo: Cadê meu noivo? Boa tarde, senhora, ele teve um problema e estou com o celular dele. O que aconteceu (já desesperada)? Houve um acidente e ele está sendo atendido. Pode dizer que ele morreu, eu sei que ele morreu... Eu vou me matar aqui (totalmente descontrolada)... A vida não tem mais sentido. Calma senhora! Eu quero morrer!!!
            Em síntese, a mulher, de pronto, quando o noivo não atendeu ao chamado, desconfiou que algo de grave tinha acontecido. Ainda que eu tivesse desejado contornar a situação, tive de admitir o óbito. A partir de então mantivemos uma longa conversa com o objetivo de evitar uma segunda morte (suicídio). Momentos de grande tensão, mas o desfecho foi positivo...
            Lembrei-me do evento enquanto assistia ao filme Chamado de Emergência, estrelado por Halle Berry, que mostra o drama de uma atendente do serviço 911 da polícia norte-americana frente aos pedidos de socorro e às mortes “testemunhadas” durante os telefonemas. Ela passa a se incomodar por não poder intervir como gostaria, por se sentir impotente diante de certas situações. Nos momentos mais tensos, as atendentes buscam se reequilibrar na “sala isolada”, cômodo especialmente destinado para isso.
            Nos primeiros meses de Magistratura tivemos acompanhamento psicossocial, mas, a bem da verdade, esse atendimento deveria persistir durante toda a carreira. Eu, por ex., pensei por quatro dias para autorizar a interrupção da gestação do feto anencéfalo, pois o deferimento seria irreversível. Cotidianamente vivencio desgraças humanas como o caso do pai que engravidou a filha por duas vezes. Ouvir um adolescente contando, com frieza, como matou o dono de uma padaria, mexeu comigo. Mesmo as situações aparentemente menos graves como os divórcios repercutem emocionalmente, principalmente quando crianças experimentam as conseqüências. Nem sempre consigo manter “distância” do problema do outro, o que tem seu lado positivo (maior chance de acertar ao decidir), mas também o negativo (sensações desagradáveis). Às vezes chego bem desgastado ao final do expediente...
            São muitas as situações, mas o objetivo aqui não é propriamente relatar o que enfrentei e enfrento na minha atividade profissional... Toda profissão tem seus “espinhos”, mas algumas carreiras profissionais deveriam receber constante acompanhamento psicológico. Antes de eleger a sua carreira, é preciso que você tenha exata noção do quanto o seu emocional estará exposto. O maior estresse sem dúvida tem a ver com o contato com a morte. Policiais, bombeiros e profissionais da saúde muitas vezes sofrem por não conseguirem evitá-la. Psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais e religiosos sofrem para minimizar os impactos que dela decorrem. Juízes e promotores sofrem quando ouvem as pessoas envolvidas e para formarem o convencimento aparentemente mais adequado sobre o desfecho a ser dado a cada caso. O sofrimento humano contamina todos à sua volta, por mais profissionais que sejam. Às vezes o alcoolismo e as drogas se tornam uma perigosa rota de fuga para o profissional, a depender do quanto se “contamina” com as tragédias.
            A quem pretende ingressar no mercado de trabalho recomendo teste vocacional. Mais do que isso,  sugiro que verifique, de perto, as dificuldades da profissão cogitada. Caso contrário, poderá perder valioso tempo da sua vida estudando para aquilo que não conseguirá desempenhar ou sentirá muito desconforto durante a sua carreira se não tiver alternativa ou se não tiver a iniciativa de mudar de rumo.
            A quem já experimenta as conseqüências da profissão, convém avaliar se vale a pena prosseguir, se não há como fazer ajustes que possam preservar seu emocional, ou mesmo se não seria o caso de buscar acompanhamento profissional permanente. Sugere-se que o empregador avalie a possibilidade de encaminhar aquele bom empregado que enfrenta dificuldades. Assim, terá chance de resgatar todo o seu potencial de trabalho e de retribuir tudo o que ele já fez. Se a empresa não acreditar na importância do acompanhamento ou por alguma razão não disponibilizá-lo (para evitar custos etc.), pode ser o caso de o interessado custear, ele mesmo, esse serviço. Muito embora não pareça justo, na prática esse investimento na saúde poderá poupar a pessoa de conseqüências gravíssimas que não raramente interferem na sua vida como um todo, às vezes, para sempre.
            É preciso, de qualquer forma, muita atenção para que intervenções aconteçam no momento certo, pois quando a “luz vermelha se acender” a “sala isolada” poderá já não ser suficiente... Aí poderá ser tarde demais...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito em Penápolis(SP)
Professor no Unisalesiano

(redigido para a edição de jan/2014 da Revista Comunica)