Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

12 de set. de 2016

Condutor embriagado: homicídio doloso ou culposo?

No caso do homicídio, age com dolo direto aquele que busca deliberadamente produzir a morte, por exemplo, ao disparar contra o seu desafeto. O homicídio doloso, na sua forma mais simples, é punido com reclusão de 6 a 20 anos. Dolo, em linhas gerais, significa “vontade”.
O homicídio culposo é praticado por aquele que causa morte sem intenção, mas em virtude de ter sido imprudente (agiu de maneira descuidada), negligente (deixou de se acautelar) ou imperito (faltou habilidade no exercício de uma profissão). Para o homicídio culposo o Código Penal prevê detenção de 1 a 3 anos e o Código de Trânsito estabelece detenção de 2 a 4 anos.
As sanções são bastante diferentes porque, obviamente, desejar a morte não é a mesma coisa do que causá-la por descuido.
Em alguns casos, é bastante complicado diferenciar o dolo eventual da culpa consciente. Quando o sujeito pratica uma conduta arriscada, não deseja morte, mas também não se importa com a possibilidade de causá-la, age com dolo eventual. Isso acontece, por exemplo, quando acelera o carro, passa pelo semáforo vermelho, invade movimentada avenida e causa colisão. Nesse caso, o condutor aceita o risco. O mesmo ocorre com o motorista que pratica racha onde há concentração de pessoas. O dolo eventual tem a mesma consequência jurídica do dolo direto. Em resumo, atirar no inimigo ou invadir a avenida aceitando a possibilidade de causar acidente fatal configuram homicídios dolosos apenados, em tese, da mesma maneira. No segundo caso, o instrumento do crime não é a arma de fogo, mas o veículo.
Pode ser que o sujeito preveja o risco, mas confie, sinceramente, que não causará dano. O atirador de facas do circo treina bastante e se sente habilitado a desempenhar aquele papel. Se tiver tomado todas as cautelas e, mesmo assim, tiver errado um arremesso e causado a morte da assistente, será responsabilizado por homicídio culposo.
O fato de o condutor causador de acidente estar embriagado, juridicamente, não pode implicar, de forma automática, na sua responsabilização por homicídio doloso. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o “Habeas Corpus” 107.801, decidiu, em 2011, que “a embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo”. De outro lado, se a “embriaguez é voluntária e completa e o agente previu e podia prever que, em tal estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de culpa”. O Superior Tribunal de Justiça também já confirmou desclassificação de homicídio doloso para culposo ao decidir: “a embriaguez, por si só, sem outros elementos do caso concreto, não pode induzir à presunção, pura e simples, de que houve intenção de matar, notadamente se, como na espécie, o acórdão concluiu que, na dúvida, submete-se o paciente ao Júri, quando, em realidade, apresenta-se de maior segurança a aferição técnica da prova pelo magistrado da tênue linha que separa a culpa consciente do dolo eventual” (HC 328.426/SP, 2015).
A combinação de embriaguez e excesso de velocidade sugere insensibilidade do condutor (STJ, AgRg no AREsp 739.762/PR, 2016), mas detalhes de cada caso é que dirão se ele pouco se importou com a possibilidade de matar alguém no trânsito.
Se houver dúvida fundada sobre a aceitação ou não do resultado previsível, o juiz deverá encaminhar o caso para o Tribunal do Júri. Caberá os jurados analisarem aquilo que tem aparência de crime doloso contra a vida. Se as provas demonstrarem o contrário, decidirão por crime meramente culposo. Todavia, se não houver indícios mínimos de dolo, o próprio magistrado se encarregará do julgamento.
A aplicação da lei penal depende de prova contundente da responsabilidade, que não pode ser firmada com base em presunções. As autoridades devem solucionar os casos com bastante técnica e sem se preocuparem com a opinião popular para não cometerem injustiças. Se a resposta penal não é apropriada, devemos incentivar alterações legais.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito
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(publicado na edição de 10/9/2016 do Diário de Penápolis)


Venda e compra de veículos usados

Os negócios envolvendo veículos usados corriqueiramente desembocam no Judiciário. As ações judiciais normalmente decorrem da falta de cuidado na avaliação do bem; da ausência de contrato escrito; da venda de veículo financiado sem transferência da dívida junto ao banco e da anuência para que a transferência da propriedade não seja feita de imediato. Todo mundo sabe que isso costuma dar problema, mas muita gente não aprende...
O Código Civil trata dos vícios redibitórios ao dispor que “a coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor” (artigo 441). O adquirente pode pleitear “desfazimento do negócio jurídico” ou preferir abatimento no preço (artigo 442).
É preciso se atentar para os prazos decadenciais previstos no Código Civil para a tomada de providências: 30 dias se a coisa for móvel; e um ano se for imóvel, contado da entrega efetiva. Caso o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, o prazo contar-se-á do momento em que dele se tiver ciência, até o prazo máximo de 180 dias, em se tratando de bens móveis; e de um ano, para os imóveis.
O Código do Consumidor, por sua vez, prevê prazos de 30 ou 90 dias para exercício da reclamação pelos vícios aparentes ou de fácil constatação, respectivamente, de produtos não duráveis ou duráveis. Estabelece que, tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito (art. 26). Aplica-se, por exemplo, quando o veículo é adquirido em loja.
Há quem faça “maquiagem” de defeito... Somente será possível dizer se a fraude configurará estelionato ou mesmo crime contra as relações de consumo depois da análise de cada caso, posto que a diferença entre a mera malícia comercial e a ação criminosa daquele que age com má-fé é muito tênue. A adulteração de hodômetro de veículo (redução da marcação da quilometragem) já ensejou condenação por crime contra o consumidor (artigo 7º, inciso IX, da Lei n. 8.137/1990) (vide STJ – “Habeas Corpus” 135.906).
Por ocasião da aquisição de veículo, é importante se orientar com mecânico de confiança. É recomendável que o proprietário anterior, se não estiver envolvido no negócio, seja consultado. Desgaste de volante, pneus, “bola” do câmbio, pedais e outros componentes podem denunciar o quanto o bem já foi usado.
Recentemente, apreciei reclamação feita pelo comprador de um “jet sky” localizado em anúncio de Internet. Ele alegou que o equipamento apresentou defeito pouco tempo depois da aquisição. Tinha consultado o mecânico e tinha testado a máquina na água. Já tinha experiência no manejo. Ponderei que o usuário de moto aquática normalmente explora toda a capacidade do motor e que não descartava abuso. Não tive condições de concluir se o “jet” já estava avariado ou se foi danificado pelo uso indevido... Afinal, tinha mais de dez anos de uso... Ilustrei a minha sentença com julgado que mencionou, inclusive, que a utilização indevida de “jet sky” pode gerar danos no motor nas primeiras horas. Naquele caso, o autor da ação alegou que o “jet” era zero quilômetro, mas, nos primeiros quinze minutos de uso, o motor se encheu de água e parou de funcionar. Ficou decidido: “1 – De acordo não só com a perícia realizada judicialmente, como também de acordo com o laudo técnico realizado pela vendedora e seus técnicos, constatou-se a ausência de qualquer defeito de fabricação no jet-ski, encontrando-se em perfeito estado de funcionamento quando da realização da perícia. Ressaltou o sr. perito que, havendo impacto da moto contra ondulações que cubram o capô a água entra no motor, o que também ocorre quando o veículo é mergulhado na água, quando há queda do condutor virando a moto e quando há inclinação acentuada que ultrapasse o nível de água, o que se verificou no caso dos autos; 2 – Não há meios de se exigir do vendedor a entrega de novo produto ou devolução da quantia se não houve defeito de fabricação ou vício do produto, mas sim má utilização” (TJSP, Apelação 1002849-07.2013.8.26.0281, julgada aos 6/4/2016). Especificidades do contexto, portanto, foram consideradas...
Os tribunais costumam decidir que bens usados normalmente apresentam defeitos. Eis um precedente: “COMPRA E VENDA – VEÍCULO USADO ADQUIRIDO NO ESTADO EM QUE SE ENCONTRAVA - VÍCIO DO PRODUTO – RISCO DO COMPRADOR – AUSÊNCIA DE PROVA DE VÍCIO OCULTO - RECURSO NÃO PROVIDO. Veículo usado, com mais de seis anos de uso, adquirido no estado em que se encontrava, não conta com garantia referente aos componentes comprometidos pelo desgaste natural decorrente do uso. Improcedência da ação mantida” (TJSP, Apelação 1017456-15.2014.8.26.0079, julgada aos 23/8/2016).
Em resumo: não dá para esperar muito de um veículo bastante usado, muito embora, em determinados casos, normalmente por meio de perícia complexa (que, anote-se, não cabe em procedimento do Juizado), seja possível comprovar defeito oculto (vício redibitório) que justifique que o negócio seja defeito ou haja abatimento do preço.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito
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(publicado na edição de 1º/9/2016 do Diário de Penápolis)