Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

29 de jul. de 2015

Fiança criminal

Segundo a Constituição Federal, são inafiançáveis o racismo, a tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo, os crimes hediondos e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
Ao mesmo tempo, ela prevê que ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.
Não é possível tratar a inafiançabilidade como absoluta porque a própria Constituição considera inocente aquele que ainda não ostenta condenação transitada em julgado, ou seja, definitiva. Há quem consiga reverter condenação depois de percorrer várias instâncias judiciais. Enquanto houver recurso disponível, existe essa possibilidade.
Não é apropriado a lei querer impedir a libertação de preso ainda não definitivamente condenado porque essa tarefa cabe ao juiz e a avaliação deve levar em conta uma série de circunstâncias. Cada caso é um caso... Muitas vezes nem a condenação definitiva importará em prisão e por isso fica difícil justificar a custódia ainda no curso do processo.
Quando alguém é surpreendido em flagrante delito, deve ser apresentado à autoridade policial, a quem incumbirá avaliar se a pessoa deve ser recolhida à prisão ou se deve arbitrar fiança em seu favor, o que pode fazer no caso de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a quatro anos. Fixará o valor entre um e cem salários mínimos. Nos demais casos, a fiança deverá ser requerida ao juiz, que poderá se pautar entre dez e duzentos salários mínimos.
Para determinar o valor da fiança, a autoridade deve considerar a natureza da infração, as condições pessoais de fortuna e vida pregressa do acusado, as circunstâncias indicativas de sua periculosidade, bem como a importância provável das custas do processo, até final julgamento.
O juiz pode dispensar a fiança, reduzi-la até o máximo de dois terços ou aumentá-la em até mil vezes, levando em conta ou a impossibilidade de recolhimento ou a insuficiência do valor “tabelado” na lei. A lei autoriza a redução e a dispensa da fiança para que o réu pobre não acabe ficando preso apenas por causa da sua condição econômica. É uma forma de tratar com igualdade os desiguais (rico e pobre).
O detido assume compromissos, dentre eles, o de comunicar mudança de endereço e o de comparecer sempre que for convocado.
A fiança pode ser cassada quando o juiz conclui que o investigado deve permanecer preso durante a apuração do delito, ou seja, quando é cabível a prisão preventiva.
Quando recebe a comunicação da prisão, portanto, o juiz deve avaliar se é o caso de liberdade provisória ou prisão preventiva. A concessão de liberdade pode ser acompanhada ou não da decretação de medidas cautelares que sejam suficientes, em tese, para que o investigado não torne a infringir a lei. São medidas cautelares: (a) comparecimento periódico em juízo para informar e justificar atividades; (b) proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato; (c) proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; (d) proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; (e) recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; (f) suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; g) internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável e houver risco de reiteração; (h) fiança; (i) monitoração eletrônica (“tornozeleira”).
Pode ser que o juiz entenda que a prisão preventiva é imprescindível à garantia da ordem pública; à garantia da ordem econômica; à regularidade da instrução criminal ou à aplicação da lei penal. Ela somente será decretada, todavia, quando houver prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria. Ao decretá-la o juiz não faz prejulgamento, mas apenas conclui que o conjunto probatório, naquela ocasião, é desfavorável ao investigado.
A avaliação é complexa e tormentosa para o juiz. A investigação está somente começando. Muitas questões ainda serão esmiuçadas. A prisão antes da condenação definitiva deve ser excepcional, mas às vezes as circunstâncias exigem a sua decretação para que, por exemplo, se evitem novos roubos a comerciantes ou se evite intimidação de testemunha ou nova investida contra a mesma vítima. É um instrumento jurídico à disposição do Judiciário que, entretanto, tem de ser bem utilizado, pois a tramitação da ação penal leva alguns meses e o investigado permanecerá custodiado durante esse tempo, muito embora seja possível, a qualquer momento, reavaliar a questão e libertar, quando as razões que fundamentaram a prisão já não persistirem. É necessária muita cautela, pois não é difícil alguém se confundir sobre a autoria de um crime, o que pode implicar em danos irreversíveis para a pessoa indevidamente incriminada e seus familiares. E o juiz deve analisar tudo com isenção, não se deixando levar pelo que a comunidade deseja, pois muitas vezes as pessoas não estão minimamente informadas sobre os detalhes da investigação.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico

(publicado aos 23/7/2015 no Correio de Lins e no Diário de Penápolis e abordado em entrevista à Rádio Regional Esperança aos 20/7/2015)

Novos crimes hediondos: atentados contra policiais e familiares

A Lei Federal 13.142, de 6/7/2015, que entrou em vigor no dia seguinte, ampliou a repressão para investidas contra a vida e a integridade física de autoridade ou agente das Forças Armadas; da polícia federal; da polícia rodoviária federal; da polícia ferroviária federal; das polícias civis; das polícias militares; dos corpos de bombeiros militares; do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela.
A punição também se tornou mais severa para atentados contra cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau dos referidos profissionais, desde que praticados em razão da condição funcional deles.
O homicídio, nessas circunstâncias, será sempre qualificado; e a lesão corporal sempre terá pena aumentada de um a dois terços. Nos dois casos, estaremos diante de crimes hediondos.
O objetivo da nova lei foi desestimular as investidas, pois elas traduzem maior ousadia e retratam extrema reprovabilidade, já que configuram verdadeiros atentados contra o sistema de proteção. Quando um agente de força de segurança ou um familiar é atacado em razão dessa condição, o agressor, em verdade, está menosprezando a sociedade como um todo. Por isso, essa sua “rebeldia” precisa de uma resposta mais severa (e não porque a vida de um policial valha mais do que qualquer outra).
Todas as demais modalidades de homicídios qualificados também integram o rol de crimes hediondos: (i) mediante paga (pagamento prévio ao mercenário) ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe (repugnante, como matar para assumir o ponto de tráfico de drogas); (ii) por motivo fútil (visivelmente desproporcional, como matar a esposa porque ela não preparou o almoço); (iii) com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso (traiçoeiro) ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum (risco para um número indeterminado de pessoas); (iv) à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação (fingimento) ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; (v) para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime; (vi) contra a mulher por razões da condição de sexo feminino (feminicídio, que pode decorrer de violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher). A pena pode variar de 12 a 30 anos de reclusão.
São considerados hediondos pela Lei 8.072/1990: (i) homicídio simples, quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente; (ii) homicídio qualificado (como já dito); (iii) lesão corporal dolosa de natureza gravíssima (que resulta incapacidade permanente para o trabalho; enfermidade incurável; perda ou inutilização do membro, sentido ou função; deformidade permanente ou aborto) e lesão corporal seguida de morte, nos casos previstos na Lei 13.142; (iv) latrocínio (popularmente conhecido como “roubo com resultado morte”); (v) extorsão (chantagem) qualificada pela morte; (vi) extorsão mediante sequestro (seguida ou não de morte); (vii) estupro (a nomenclatura agora abrange violência sexual contra mulher ou homem); (viii) estupro de vulnerável (ato libidinoso contra menor de 14 anos ou pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência); (ix) epidemia com resultado morte; (x) falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais; (xi) favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável; (xii) genocídio (artigos 1º a 3º da Lei Federal 2.889/1956).
São equiparados a hediondos: tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo.
O regime inicial para pena do crime hediondo é o fechado. A progressão de regime só é possível depois do cumprimento de pelo menos dois quintos da pena e o livramento depende de dois terços e ausência de reincidência específica.  A prisão temporária terá prazo de 30 dias, prorrogável por igual período.
É natural que toda inovação legislativa divida opiniões. O que importa é que toda divergência seja respeitosa. Vejo com bons olhos as novas previsões, especialmente a que tratou da lesão corporal, pois nenhuma modalidade de lesão fazia parte da lista dos hediondos e o agressor pode não desejar matar, mas apenas machucar seriamente. Quanto aos homicídios contra agentes de segurança ou familiares, seja pela forma de execução (meio que dificulte defesa), seja pela motivação do homicida (normalmente, motivo torpe), normalmente já eram considerados qualificados e, por isso, hediondos.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico


(publicado no Diário de Penápolis e no Correio de Lins de 16/7/2015 e abordado em entrevista à Rádio Regional Esperança aos 13/7/2015)

11 de jul. de 2015

Crimes contra a honra

Segundo Magalhães Noronha, honra é o conjunto de predicados ou condições da pessoa que lhe conferem consideração social e estima própria. É direito fundamental (art. 5º, inciso X, da Constituição Federal).
A injúria atinge a idéia que a pessoa tem dela mesma. A calúnia e a difamação distorcem a imagem que a comunidade tem do ofendido.
Mesmo o criminoso pode ser vítima de crime contra a honra. Ninguém tem o direito de ofendê-lo.
A honra pode ser atingida por palavras, escritos, gestos, até mesmo por um sorriso, uma afirmação implícita ou ironia.
Calúnia é a imputação falsa da prática de crime. Se o agente não quis ofender, não se configura. Fazer referência a alguém como suspeito, provável autor de delito, normalmente não é calúnia, mas cada caso deve ser analisado. Se o indivíduo conscientemente deflagra investigação contra pessoa que sabe ser inocente, pratica denunciação caluniosa (artigo 339 do Código Penal) ou falso testemunho (artigo 342 do Código Penal). Em alguns casos a lei permite que o caluniador faça prova de que o que disse é verdadeiro para se livrar da responsabilização penal. Noutros casos mesmo que provar que falou a verdade, responderá por calúnia (ex. ofensa contra o Presidente da República). A lei pune a calúnia contra pessoa falecida.
Difamação é a imputação de fato ofensivo à reputação, mas que não configura crime. Exemplo: dizer que fulana faz programas sexuais em determinado local. Mesmo que isso fique provado, ninguém tem o direito de comentar... Apenas quando o ofendido é funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções é que o autor da afirmação tem o direito de provar que ela é verdadeira. Ex.: comentar que um guarda municipal dorme durante o turno de trabalho. Isso porque a coletividade tem interesse no adequado funcionamento do serviço público. A crítica desfavorável por meio de linguagem adequada não configura crime, por exemplo, quando o indivíduo foi instado a prestar informações sobre o proceder de alguém.
A injúria atinge a dignidade (atributos morais) ou o decorro (atributos físicos, intelectuais ou sociais). Não envolve fato. Há imputação de qualidade negativa (ex.: fulano é burro, preguiçoso) e/ou humilhação, menosprezo (ex.: arremesso de bebida; tapa na cara para desdenhar; colocação de lixo na porta do desafeto; deixar a pessoa sem cumprimento, com mão estendida; arremesso de ovos). O desacato é a injúria que vitima funcionário público no exercício das funções ou em razão dela. O juiz pode deixar de aplicar a pena se o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria e no caso de retorsão imediata que consista em outra injúria. Se a injúria envolve utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa portadora de deficiência, a pena prevista é bem mais severa: reclusão de 1 a 3 anos e multa. O racismo é o desprezo por todas as pessoas com determinada característica. A injúria de cunho racista é a ofensa a uma ou algumas pessoas especificadas.
Não constituem injúria ou difamação punível a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador (é do interesse público favorecer decisões justas).
Não configura injúria a opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica, salvo quando inequívoca a intenção de injuriar ou difamar.
O conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação ou informação que preste no cumprimento de dever do ofício, também não deve ser punido.
O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria ou difamação puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer.
Os membros do Ministério Público gozam de inviolabilidade pelas opiniões externadas ou pelo teor de suas manifestações processuais ou procedimentos, nos limites de sua independência funcional. Mas há quem diga que a imunidade existe em qualquer caso.
Os vereadores têm inviolabilidade por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município.
O querelado (apontado autor de crime contra a honra) que, antes da sentença, se retrata cabalmente de calúnia ou da difamação, fica isento de pena. A injúria não admite retratação, pois ela poderia macular ainda mais a honra da vítima.
Se, de referências, alusões ou frases, se infere calúnia, difamação ou injúria, quem se julga ofendido pode pedir explicações em juízo acerca do que foi dito ou escrito.
Na maioria dos casos o crime contra a honra somente é apurado mediante queixa. A ação penal não é deflagrada pelo Ministério Público, mas pelo próprio ofendido, por meio de advogado. A tramitação envolve audiência de conciliação. Se o ofendido manifestou perdão de maneira expressa ou implícita, estará extinta a punibilidade do ofensor. O prazo para oferecer a queixa-crime e dar início ao processo normalmente é de seis meses contados do conhecimento da autoria da ofensa.
Muitas vezes a ofensa à honra embasa pretensão indenizatória, mas estar em juízo pode significar novo aborrecimento para a vítima. É preciso analisar o custo–benefício.
As redes sociais são campos férteis para a prática de crimes contra a honra porque muitos se precipitam e/ou se acham habilitados a analisarem a conduta do outro e não fazem isso com moderação e respeito.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
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(publicado no Diário de Penápolis e no Correio de Lins de 9/7/2015 e abordado em entrevista concedida à Rádio Regional Esperança FM aos 6/7/2015)


5 de jul. de 2015

Interesse de agir

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu amplo acesso à justiça. Conforme art. 5º, inciso XXXV, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Entretanto, esse acesso deve obedecer às chamadas “condições da ação” disciplinadas pelo direito processual. Uma das condições é o “interesse de agir”. Resumidamente, demandar somente se justifica se a pessoa demonstra que a sua pretensão não foi atendida pela outra parte, ou seja, que existe pretensão resistida.

Entendo que a parte tem de esgotar todas as tentativas de solucionar o seu problema administrativamente antes de distribuir uma ação. Admito que nem sempre os tribunais decidem dessa forma, o que, contudo, nem sempre é suficiente para que eu admita o prosseguimento.

No âmbito do Direito do Consumidor, por ex., a insatisfação pode ser noticiada primeiramente ao próprio fornecedor do produto ou do serviço. Se o diálogo não for suficiente, a parte pode e deve formular reclamação escrita. Se a empresa se recusar a protocolizar a reclamação, ela pode ser enviada pelo correio com aviso de recebimento, isso se o “site” não disponibilizar correio eletrônico ou formulário próprio para reclamação. Também é possível promover notificação extrajudicial (via cartório). No caso de atendimento por sistema telefônico do tipo “0800”, é recomendável que o consumidor utilize o seu telefone celular com o sistema de “viva-voz” acionado e se sirva de outro aparelho para gravar a conversa, de forma a produzir prova daquilo que lhe foi prometido. Ainda que seja possível requisitar judicialmente essa gravação no curso do processo, isso levará tempo e se o fornecedor alegar que o contato não aconteceu, o impasse poderá prejudicar o esclarecimento do defeito no produto ou no serviço. A falta de pronunciamento do fornecedor depois do decurso de prazo razoável para resposta justifica que o interessado compareça ao Procon. Acredito que somente depois disso tudo é que o ajuizamento de ação deve ser considerado legítimo. Se houver urgência, a propositura de pedido cautelar ou mesmo de antecipação dos efeitos da tutela principal de plano, evidentemente, se justificará.

Quando a insatisfação tiver por alvo uma repartição pública haverá mais razão para se exigir da parte a prévia reclamação por escrito. As repartições normalmente protocolizam requerimentos. Instar o servidor público a se manifestar por escrito sobre a sua pretensão normalmente faz com que ele reflita melhor sobre a negativa que lhe informou verbalmente e, muitas vezes, reconsidere a conclusão contrária aos seus interesses. Da mesma forma, a recusa de protocolo poderá ser suprimida por remessa postal. Mas, no caso do serviço público, sempre haverá uma autoridade superior que poderá ser “provocada” a tomar conhecimento da atitude indevida do subordinado que tiver se negado a receber pedido escrito. A exigência de petição à repartição antes da distribuição de ação judicial, longe de significar vedação de acesso à justiça, somente vem a consagrar a separação dos poderes que também tem previsão no referido art. 5º. Em suma: antes de o Judiciário intervir no funcionamento do Executivo ou do Legislativo, estes Poderes devem ser formalmente acionados a justificarem eventuais negativas aos cidadãos. Não é demais ressaltar que o art. 5º, no inciso XXXIV, assegura a todos, independentemente do pagamento de taxas, “o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direito ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. Negar-se a receber petição do cidadão configura falta injustificável do servidor público. A Lei Federal 9.265/1996 estabeleceu gratuidade aos atos necessários ao exercício da cidadania, dentre eles, quaisquer requerimentos ou petições que amparem garantias individuais e a defesa do interesse público.

Em seara previdenciária, nota-se ajuizamento de milhares de ações sem que haja demonstração da protocolização de prévio requerimento administrativo e da subsequente negativa ou omissão, depois de decorrido tempo razoável para resposta, por parte Instituto Nacional do Seguro Social. Em consequência, o Poder Judiciário, já tão abarrotado de ações, tem funcionado como uma verdadeira repartição do INSS, absorvendo atribuições que legalmente e processualmente não se justificam. O INSS, por sua vez, em vez de ampliar o atendimento ao público (é claro que já houve expressivos avanços nesse sentido), por exemplo, por meio de unidades volantes que poderiam atender com mais frequência aos cidadãos das pequenas cidades que não contam com agências da Previdência, tem se acomodado com a atuação do Poder Judiciário como verdadeira filial de seus escritórios. Os interessados, por sua vez, também já se acostumaram a acionar diretamente a justiça e, tenho conhecimento (porque debato o assunto com outros Magistrados), é crescente (mesmo que ainda seja minoria) o número de captadores que de forma espúria arregimentam clientes para alguns advogados em troca de comissões (o que configura falta disciplinar).

Ainda falando do serviço público, a necessidade de medicamento e/ou de tratamento de saúde, no meu entender, também deve ser objeto de prévio requerimento. Esse contato direto da repartição com o enfermo é fundamental para a análise da procedência do pedido.

É preciso repensar a idéia de procurar o Judiciário e obrigar o serviço público a se pronunciar oficialmente, cada vez mais, sobre as pretensões dos cidadãos. As repartições não podem se acomodar. Ao contrário, devem aperfeiçoar os atendimentos. E resolver administrativamente acaba privando o ente público de gastos com o processo.

Não pretendo aqui estimular negativa de atendimento ao jurisdicionado. Defendo apenas o uso racional do serviço judiciário e a maior distribuição de responsabilidades entre os envolvidos para as soluções de entreveros. A partir do momento em que o Judiciário passar a ser procurado apenas em caso de necessidade manifesta, teoricamente, terá condições de atuar com mais agilidade.

Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
(publicado no Correio de Lins de 30/6/2015 e no Diário de Penápolis de 2/7/2015)

            

1 de jul. de 2015

Doença no bingulim?

Quem lida com atendimento ao público sabe do que o público é capaz e precisa estar preparado.
O bom atendimento requer exercício diário da paciência e compreensão.
É preciso entender que a maioria das pessoas procura a repartição pública para solucionar problemas, muitos deles, absolutamente desgastantes.
Muitas vezes as grosserias estão presentes, seja porque incrustadas no jeito de ser do interessado visitante (“pago impostos e quero meu problema resolvido agora”); seja porque motivadas pela sua instabilidade emocional temporária (por razões de saúde, financeiras, familiares, profissionais, amorosas etc.) ou até permanente (desvios de personalidade); seja por reação ao mau atendimento prestado por algum servidor que indevidamente transferiu suas frustrações a terceiros.
Outras vezes, o servidor público depara com pessoa simplória, desinformada e/ou de parcos conhecimentos.
Por fim, há casos nos quais a indignação do reclamante nem sempre é compreendida pelo servidor público, pois ele indevidamente se coloca no lugar do cidadão e entende que não se ofenderia ou não reclamaria pelo mesmo motivo, como se os pontos de vista não variassem de pessoa para pessoa.
É evidente que julgar, logo de plano, a legitimidade ou não da reclamação e a necessidade ou não de providências não é o melhor caminho, pois os graus de tolerância aos fatos da vida variam conforme a idade, o sexo, o grau de instrução, a profissão, o nível social e até a religião de cada pessoa. Tais fatores devem ser minuciosamente sopesados antes de o servidor desdenhar da situação narrada pelo cidadão.
Certa vez, por exemplo, um senhor esteve na Delegacia para solicitar registro de ocorrência inusitada. Julgava-se ofendido porque uma pessoa teria perguntado a um conhecido, nas imediações da sua residência, se ele tinha falecido. Muitos não se incomodariam com o mesmo questionamento, mas talvez o tal senhor o tenha encarado como um mau agouro. Respeitei a reclamação, mas esclareci que a lei não reprovava a conduta.
Algumas dúvidas também podem parecer ridículas para os mais escolados, mas, ao mesmo tempo, perturbar os desinformados. Recordo-me de que certa vez uma senhora adentrou na Delegacia (em vez de ter se dirigido a qualquer unidade de saúde) e antecipou que estava com vergonha de perguntar, mas acabou me pedindo uma opinião. Disse que ficou sabendo que seu sobrinho estava sendo procurado pelo Centro de Saúde de Pirajuí sob suspeita de ser portador de uma doença no “bingulim” (pênis, segundo o Dicionário Aurélio). Alegou que o tal indivíduo estava hospedado num lote no Projeto de Assentamento Antonio Conselheiro, em Guarantã(SP), e que em tal residência havia moças que eventualmente poderiam se sentar em algum local onde o supostamente infectado pudesse ter se sentado, o que, no entendimento da reclamante, geraria risco de contágio. Diante da inusitada consulta, encaminhei à solicitante à Assistência Social do município para que a questão que envolvia seu sobrinho fosse esclarecida.
Noutras oportunidades, ébrios e desequilibrados ou tumultuam ou alegram, mas o certo é que de certa forma alteram a rotina das repartições. Recentemente uma acusada de furto compareceu na sala de audiências do Fórum de Cafelândia(SP) e deu um forte e demorado abraço no servidor André Arnal (pareciam fã e artista de novela!). Ato contínuo, começou a chorar e a implorar a ele, em voz alta, para que “limpasse” o seu nome dela, já que estava sendo processada. Fiquei sabendo que ela era alcoólatra e não precisei mais do aquilo que vi para instaurar, de imediato, incidente para aferição da sanidade mental.
Como se vê, os servidores públicos devem estar preparados para tudo e, de preferência, isentos de conceitos próprios acerca da relevância e da urgência das situações que lhes são postas. Precisam se policiar a todo o momento. Não devem subserviência a quem quer que seja, mas, no mínimo, respeito; tolerância em relação às desigualdades de toda sorte e exata noção das aflições e limitações de toda ordem que cada vez mais atingem os seres humanos.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito de Cafelândia(SP)

(publicado no Getulina Jornal de 23/11/2008)