Francisca ajuizou pedido para que o Juízo
reconhecesse 19 anos de união estável e a dissolução dessa convivência com
Paulo, contra quem também dirigiu requerimento de partilha de patrimônio
apontado como adquirido pelo esforço comum. Juntou várias fotografias.
Conforme estabelece o Código Civil no art. 1.790,
“a companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos
bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições
seguintes: I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota
equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II - se concorrer com
descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada
um daqueles; III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a
um terço da herança; IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à
totalidade da herança”.
A ação tramitou sob intenso grau de litigiosidade,
repleta de acusações recíprocas, até que designei tentativa de conciliação que,
aparentemente, seria infrutífera.
Paulo sustentava que tinha tido apenas um “caso”
com Francisca e que ela não tinha direito a qualquer parcela do seu patrimônio.
Analisando as fotografias
juntadas pela mulher, percebi que eram antigas. Paulo aparecia em momentos
festivos da família, abraçado com os filhos de Francisca, atualmente já maiores
de 21 anos, enquanto eles ainda eram crianças... Iniciada a audiência, eu disse
a Paulo que não me anteciparia em classificar que tipo de relação teria
existido entre ele, Francisca e os familiares dela. Comentei apenas que as
fotografias demonstravam grande afeto entre todos, especialmente entre ele e os
filhos dela.
Perguntei a Paulo: Se o
Juízo acolher o seu pedido e entender que não houve convivência marital entre
vocês, deixando de partilhar seu patrimônio, o Sr. poderá se considerar
vencedor? Indaguei Francisca: Se o Juízo deferir a sua participação no
patrimônio de Paulo, poderá se dizer vencedora?
Expus aos dois: Na
verdade, antes mesmo da decisão judicial, ambos já são perdedores por terem
deixado que o afeto retratado nas fotografias tivesse se transformado numa
briga judicial intensa que agora leva em conta interesses menos importantes...
Vocês querem que a história aqui fotografada se perca para sempre? Como conseguiram
apagar das suas memórias todos esses momentos? Será que essas crianças, agora
pessoas adultas, aprovam o que está acontecendo? Será que pelo afeto recebido
elas não consideraram Paulo como pai durante uma boa fase da vida? E será que
Paulo não as considerou como filhas durante essa mesma fase? É justo que esse
sentimento agora se esvazie apenas porque a relação de vocês não deu certo? As
fotografias, agora juntadas ao processo, serão sonegadas aos filhos de
Francisca? Será que eles não gostariam de ficar com tais fotografias como
recordação de quem aparentemente tiveram como pai na sua infância?
Ambos me ouviram em
silêncio e enquanto eu falava Francisca começou a chorar e Paulo ficou
visivelmente constrangido... Percebi que era hora de sair da sala e disse que logo
voltaria. A opção foi correta porque, confesso, estava sensibilizado com o rumo
que o que existiu entre eles tinha tomado e com as consequências para
terceiros. Não é fácil enfrentar certas questões de Direito de Família... Nem
sempre é possível atuar tecnicamente, sem se afligir...
Em seguida, o casal pediu
que meu Escrevente e que os Advogados também se ausentassem, tendo sido
atendido. Permanecemos pacientemente fora da sala por cerca de 30 minutos. Quando
voltamos, o acordo estava fechado. Francisca aceitou uma oferta em dinheiro de
Paulo, que, implicitamente, acabou reconhecendo que realmente conviveram
maritalmente e que a primeira merecia ser indenizada pela vida comum. A
proposta ficou bem aquém do que se discutia fervorosamente e a mútua flexibilização
demonstrou mútuo arrependimento. Mas o que mais importou foi que as partes, ao
término da audiência, se cumprimentaram, deram as mãos e disseram que manteriam
a amizade, o que antes parecia impossível. Aliviado, dei outras duas
orientações. Pedi que tentassem se reunir com os filhos dela para que todos
mantivessem um contato saudável, tudo em homenagem aos bons momentos que
viveram, segundo as fotografias, por longos anos. E recomendei que solicitassem
o desentranhamento (retirada do processo) das fotografias originais para que
pudessem guardá-las, afinal, a história deles não poderia ir parar no arquivo
geral do Judiciário.
A sensação de todos,
inclusive servidores, Advogados e das cerca de dez testemunhas que seriam
ouvidas e que foram liberadas, foi de muita paz. As testemunhas já comentavam,
no corredor, que Francisca e Paulo poderiam ter evitado tudo aquilo.
É compreensível que no
momento da tempestade alguém acabe decidindo procurar a Justiça e que a pessoa
demandada, sentindo-se ofendida, relute em propor acordo, agravando a
discussão, quando a divergência poderia ser sanada com diálogo. Chega um
momento em que as pessoas deixam a razoabilidade de lado para apenas “medir
forças”, esquecendo-se do desgaste que isso significa, independentemente de
quem venha a “vencer” a demanda. É por isso que não devemos decidir nada sob a
tempestade. É por isso que devemos eleger com cautela com quem nos aconselharemos
antes de tomar decisões de repercussão, pois sempre haverá quem incite a
discórdia e não tenha vocação para o perdão. É por isso que devemos estar
próximos de quem se encontra no meio do temporal, indicando o caminho mais
seguro. Afinal, quase sempre o ímpeto gera e/ou intensifica o erro,
interferindo na prevalência do afeto de que tanto tem se esquecido a
humanidade.
Adriano Rodrigo Ponce de
Oliveira
Juiz de Direito / Professor
do Curso de Direito do Unisalesiano
(remetido para publicação ao Correio de Lins aos 29/4/2013)