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Desvendando mitos e quebrando paradigmas do princípio da eventualidade.
Bom dia novamente, queridos e ilustrados colegas juristas que deveriam
estar estudando ou trabalhando mas estão aqui na internet matando tempo e vendo
bobagens J
O tema de hoje não poderia ser outro, dada a repercussão do famigerado
caso da receita de pamonha escondida dentro de uma citação de
jurisprudência em uma petição.
Creio ser importante trazer um contraponto às várias críticas que foram
feitas de todos os lados pelas mídias sociais, considerando minha perspectiva
de quem tem vários anos de advocacia no currículo e, agora, alguns de
Magistratura.
Todos se lembram do caso, certo? O advogado escreveu uma receita de
pamonha escondida em uma citação de jurisprudência, que passou despercebida
pelo juiz, e, em razão disso, propagou-se aos quatro ventos que o juiz não leu
a petição inicial integralmente.
Pois é. Vou começar contando um “segredo” pra vocês: A grande maioria
dos juízes não tem tempo de ler petições inteiras. Especialmente a parte “Do
Direito” das iniciais quase sempre é integralmente pulada.
Não apenas iniciais, mas vários outros documentos do processo, lamentavelmente,
a gente acaba tendo que deixar de lado.
O nosso volume de trabalho é muito absurdo. Quando eu era advogado, em
um grande escritório de Curitiba, eu cheguei a ter mais de cento e vinte
processos em andamento ao mesmo tempo. Achava que trabalhava feito louco. Daí
passei no concurso para a Magistratura e descobri que...
Ano passado, quando eu assumi uma Vara Cível como titular, sabem quantos
processos vieram conclusos de imediato, no primeiro dia? SEIS MIL, CENTO E
SETENTA E SETE. Sim, o número é esse. 6.177. Como é difícil
de “enxergar”, aqui está o que eu encontrei no meu gabinete quando cheguei. A
primeira foto é da minha mesa. Bem, do pouco que se pode ver dela:
Em cada um desses processos são necessários despachos, decisões,
sentenças, audiências, entender o que aconteceu, dar rumo, analisar provas...
enfim, vocês sabem. E prazo estipulado pelo CNJ e Corregedorias para apreciação
é de noventa dias.
Acham mesmo que tem como ler 100% do conteúdo das petições e documentos,
de todos eles, 6.177, em noventa dias? Eu poderia até ler tudo. Porém, não nos
noventa dias, e a consequência é que em no máximo três meses eu estaria
respondendo a inúmeros processos administrativos disciplinares por atraso na
prestação o jurisdicional, com a Corregedoria no meu pé, OAB no meu pé, CNJ no
meu pé, imprensa etc... Sem falar na fila de advogados na porta do
gabinete querendo me matar por causa da demora nos processos, além do monte
de representações disciplinares e pedidos de desagravo.
Esse problema de falta de tempo e decisões superficiais é apenas uma das
consequências nefastas das inúmeras metas que nos são empurradas sem muito
critério ou reflexão pelo CNJ. Eis o que pensaram: a Justiça está lenta, logo,
a culpa deve ser dos juízes, então vamos manda-los trabalhar mais, sob pena de
sofrerem punições disciplinares. Brilhante, não? Ninguém pensou antes em fazer
uma análise estrutural do Judiciário, sobretudo de primeiro grau, ou do nosso
sistema processual tanto cível quanto penal absolutamente arcaico e inservível,
ou em formas de punir severamente as demandas temerárias e aventuras jurídicas,
além de priorizar o processo coletivo. Nada disso. É muito mais fácil botar a
culpa no juiz e descer-lhe o sarrafo. E foi o que fizeram. PS: Sim, há alguns
péssimos juízes, que não honram suas togas e não trabalham adequadamente. Mas
são uma ínfima minoria. A absoluta maioria (mais de 95% com certeza) trabalha
feito camelo, muito além de seu mero horário de expediente. Quem não acredita,
peça pra passar um dia no gabinete de algum juiz aí da sua cidade. Quem quiser
vir aqui em União da Vitória, está convidado!
Enfim. Obviamente que a celeridade que eles (CNJ) exigem não iria sair
de graça, e a má qualidade das decisões é o resultado mais que óbvio, já que as
metas não vieram acompanhadas de investimentos estruturais no
Judiciário. É como se diz: as coisas podem ser rápidas, bem feitas e baratas,
mas só podemos escolher duas dentre as três. Pra fazer rápido e “barato” (sem
que sejam nomeados mais juízes, contratados mais assessores, mais funcionários
em geral), não tem como fazer bem feito. Bom e rápido custa caro, e,
infelizmente, não há interesse político em um Judiciário forte e eficiente.
Há uma série de outas razões para isso, que serão abordadas em outra
coluna. Por hora, o que é relevante dizer é simplesmente o óbvio: não adianta
ficar querendo escancarar o quanto a cozinha do restaurante é suja; você vai
ter que almoçar nele. E tem mais: só está suja porque você almoça ali. Não
existe outro Judiciário no Brasil. E o que existe, apesar do enorme esforço
pessoal de muitos Juízes e servidores, não é o ideal. Nem perto disso. Tem
muitos problemas por inúmeras causas. E somos todos parcialmente culpados por
isso.
Nós sabemos disso. Acreditem! Não é sacanagem nem maldade. Não temos
prazer algum em fazer decisões superficiais sem abordagem minuciosa de todos os
fatos. Não é legal assinar o despacho que o estagiário fez sem corrigir
atentamente. Quando passei por aquela Vara Cível atolada das
fotos o que mais me doía era saber que era impossível dar toda a atenção que
cada processo merece, e o trabalho não raras vezes acabava saindo meio “nas
coxas”. Isso me causou stress, depressão e até uma grave arritmia cardíaca. Fiz
um excelente trabalho, reduzindo a obstrução processual a menos da metade em
apenas pouco mais de um ano e com pouquíssimas burradas, mas depois
de muito me incomodar com cobranças injustas que não levavam em conta o quanto
eu já estava me matando de trabalhar, resolvi priorizar minha própria saúde e
pedi remoção para uma Vara Criminal, cujo volume de processos é cerca de um
décimo do que havia na Vara Cível. Agora até consigo tirar uns minutos para
escrever uma coluna semanal J. Inclusive descobri que tem umas pessoas morando
aqui em casa que dizem ser minha esposa e meu filho!!!
Voltando ao caso. Gente, realmente não tem como ler tudo. Com a
estrutura atual do Poder Judiciário, ou se faz no
prazo ou se faz bem feito (e sofre-se punições
disciplinares). É um OU outro. Eu também gostaria que fosse diferente, mas não
é. Então, meus amigos, ou a gente fica reclamando e continua dando murro em
ponta de faca, ou tratamos de ajudar a ser parte da solução.
Falando novamente das petições, convenhamos, vem muita baboseira
escrita! Muita coisa totalmente desnecessária. Acha que a gente precisa que
alguém nos diga que a prática de ato ilícito prevista no art. 186 do CC implica
o dever de indenizar, conforme o art. 927 do CC, e trazer dez páginas de
citações de doutrina desde as Ordenações Afonsinas até o Código Teixeira de
Freitas e citar o anteprojeto do Código de Obrigações de Caio Mário da Silva
Pereira??? Ou que o Código de Defesa do Consumidor se aplica às instituições
financeiras, juntando quatrocentos julgados a respeito, sendo que é matéria
sumulada? Alguma coisa a gente até “passa os olhos” ... uma ou outra
jurisprudência muito atualizada e do Tribunal local, e olhe lá. Mas ler com
atenção letra por letra, infelizmente, não tem como L.
Pedidos de Busca e Apreensão em Alienação Fiduciária por exemplo, que
são totalmente repetitivos e entram meia dúzia por dia, bastava passar os olhos
em poucos segundos. Vendo na capa dos autos que era “BAAF”, eu basicamente só
via se o contrato financeiro foi juntado e se havia notificação do devedor no
endereço constante do contrato. Só. Feito isso, CRTL-C / CTRL-V do “chapão”, e
vamos pro próximo! Podia ter fotos da Gisele Bündchen pelada no meio que eu
(infelizmente) não teria visto! E, sejamos francos, provavelmente ninguém veria. Garanto
que a maioria vai achar esse texto muito grande e não vai ler inteiro!!! Vai
ler só essa parte porque está em negrito!
Além do mais, a gente confia na boa fé dos advogados. Acreditamos que
não virão artifícios, ardis, surpresas, receitas de pamonha... Enfim, a sempre
desejada boa fé; objetiva e subjetiva. Ao passar os olhos rapidamente sobre a
petição, com a experiência que temos, já sabemos do que se trata. Não
precisamos conferir palavra por palavra, e nem há tempo para isso.
As vezes vem algum pedido muito fora do comum ou que cause certa
perplexidade, que não é nem revisão de contrato bancário, nem indenização por
nome no SERASA, usucapião e demais casos do dia-a-dia. Aí sim vale a pena
caprichar trazendo julgados recentes e explicar um pouco melhor para refrescar
nossa sofrida memória.
Fora dessas hipóteses muito excepcionais, podem ter certeza de que
aquela história de que o Juiz conhece o Direito (da mihi
factum dabo tibi jus) quase sempre é verdade, ainda mais em uma Vara de
competência especializada e em pedido corriqueiro. Não precisamos de grandes
ensaios acadêmicos. Precisamos de colaboração!
É também verdade que a gente aprende na faculdade, como eu aprendi com a
querida e genial professora Dra. Liliane Busato, hoje Procuradora-Chefe do Banco
Central no Paraná, que a inicial é o momento de você expor toda a sua causa,
com todos os argumentos possíveis e imagináveis, em razão do conhecido Princípio
da Eventualidade. Isso nos trouxe uma neurose coletiva de
fazer da petição inicial um palco para os mais amplos e variados ensaios
jurídicos. Pior do que isso: é ou não é verdade que se a gente termina a
petição inicial e ela tem quatro, cinco, seis páginas... dá uma insegurança,
uma sensação de que não está boa? E como resolver? Dá-lhe encher linguiça!
Mas é aí que está o maior engano! Petição inicial boa não é aquela
gigantesca, em papel cartonado, toda colorida, citando dez tipos de doutrinas
diferentes e jurisprudências de todos os Tribunais do País.
Sabem qual é a petição inicial boa? É a direta, clara e objetiva.
Todo mundo já sabe que a maioria dos juízes não tem como ler cada nota de
rodapé das petições. Isso é fato. Não vai mudar. Então pra que continuar
escrevendo cinquenta páginas não diretamente relacionadas ao processo? Só pra
continuar reclamando que o juiz não lê?
Já disse ninguém menos que Albert Einstein que é insanidade fazer
sempre a mesma coisa e esperar um resultado diferente!
Ao invés de continuar insistindo no erro e reclamando, vamos nos adaptar
à realidade! Isso só vai fazer de vocês advogados melhores e trazer bons
resultados aos seus clientes! Vou citar dois exemplos de uma comarca por onde
passei há alguns anos.
De um lado, havia vários processos patrocinados por um famoso escritório
paranaense, cujas petições mais sucintas passavam das cem laudas. Iniciais de
mais de duzentas, impugnações de cem (pra piorar, sempre impressas e
digitalizadas! Assassinando o meio ambiente!). Nunca menos de cinquenta. E
sempre as mesmas, enormemente repetitivas. Iguaizinhas. Uma chatice. E pouco se
aproveitava das centenas de páginas, pois contavam apenas com doutrina e
jurisprudência totalmente superada. E eram as mesmas pelo estado todo. Sabem o
resultado? Ficava sempre por último. Pra depois. Pra quando desse tempo. Li
inteira uma vez só e percebi que era tempo perdido. Nas demais só passava os
olhos por alto, basicamente vendo só o pedido e me valendo de modelos de
decisões disponibilizados por outros colegas que já tinham se deparado com
petições idênticas em outras comarcas. PS: São frequentemente motivo de piadas.
De outro lado, havia o Dr. Aristeu. Advogado veterano com mais de
cinquenta anos de experiência. A mais extensa de suas petições que vi tinha
três laudas. O normal era ter apenas uma. Duas, se a causa fosse complexa. Dr.
Aristeu tinha confiança em seu trabalho, na capacidade do juiz e no direito da
parte. Simplesmente expunha os fatos, com as explicações estritamente
necessárias, e fazia o pedido. O resultado? Seus processos acabavam passando na
frente, dada a facilidade e simplicidade de exame. E acho que nunca julguei
improcedente um pedido dele. Era sempre tão claro, simples e direto que era até
difícil de discordar.
Obviamente há causas e causas. Algumas são muito complexas e não há como
explicar em dois ou três parágrafos. O parâmetro ideal é o bom senso.
Há até uma piadinha do meio jurídico que calha bem ao assunto em tela, a
respeito de Mandado de Segurança: “Se o sujeito precisa de mais de dez páginas
pra dizer que tem direito líquido e certo, é porque não tem direito
líquido e certo!”
Sejam diretos e caprichem no que é realmente importante: Narrem com
detalhes os fatos, com tudo que é importante sobre os
acontecimentos. Limitem-se a apontar brevemente as consequências jurídicas.
Jurisprudência é bom, desde que recente (menos de dois anos), em pequena
quantidade (três tá ótimo) e, preferencialmente, do próprio Tribunal ao qual
está vinculado o Juiz e/ou STJ/STF. Se o seu pedido for fundamentado em Súmula,
cite apenas ela, em letra tamanho vinte e negrito. Mais nada. E peça os efeitos
do art. 518, § 1º do CPC e antecipação dos efeitos da tutela na sentença, para
tentar evitar o efeito suspensivo da apelação.
E atentem para o mais importante: o pedido. É o
pedido que vincula, limita e condiciona a prestação jurisdicional, pelo princípio
da correlação. Mas é a parte onde está a maioria dos erros, das falhas, e
que muitas vezes parece ter sido feita “de qualquer jeito” porque o autor já
estava cansado de escrever.
Sabe aquela citação de um artigo publicado numa RT de 1982, do Min. Aldir
Passarinho, do STF? Pode ter certeza que não vai ter serventia nenhuma se você
narrou uma situação de descumprimento contratual que enseja
indenização, mas, ao final, pede a declaração de nulidade do
contrato! Sim, já vi isso acontecer!!!
O advogado é indispensável à administração da Justiça, certo? Então,
citando o grande Ben Parker, tio do Peter Parker (Homem-Aranha): com
grandes poderes, vêm grandes responsabilidades. Colaborem com a Justiça
nessa difícil tarefa de enfrentar as montanhas infindáveis de processos. Sejam
diretos e objetivos. E sem maldades.
Sei que as vezes é difícil escrever pouco, ainda mais quando o assunto é
apaixonante. Basta ver o tamanho que ficou esse artigo... Mas o lugar de
“viajar” é aqui, na produção acadêmica e literária. Não na petição.
O dia que os advogados perceberem que estão do mesmo
lado dos Juízes na consecução da Justiça, e não como antagonistas,
teremos um Estado de Direito pleno para todos. E só depende de nós. Eu estou
aqui tentando fazer a minha parte. Façam a de vocês também J.
Grande abraço!
Sergio Bernardinetti
Diretamente das trincheiras da Rússia Brasileira, em nossa alagada União
da Vitória.
Disponível em 26 jun.
2014