Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

25 de jun. de 2015

Redução da maioridade penal

O art. 228 da Constituição Federal classifica como penalmente inimputáveis os menores de 18 anos.
A proposta de emenda constitucional (PEC) 171/1993 visa a alterar esse patamar para 16 anos. A aprovação dependerá de votos favoráveis de 308 deputados federais e de 49 senadores.
Recentemente, um parlamentar impetrou mandado de segurança (33.556) no Supremo para sustentar que a proposta fere cláusula pétrea e que por isso não poderia prosperar. Segundo o impetrante, a alteração da idade ofenderia garantia individual, pois a sua definição atual protege as pessoas que ainda não completaram 18 anos do poder de punir do Estado.
O debate é bastante complexo, tanto que a tramitação se estende há mais de duas décadas...
Particularmente, sou contrário à alteração almejada.
Os adolescentes de 16 e 17 anos atualmente vêm sendo investigados e responsabilizados com base no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prevê, inclusive, internação para atos infracionais que envolvam violência ou grave ameaça ou mesmo para reiteração infracional grave ou descumprimento de medida socioeducativa. O Supremo tem decidido que o envolvimento no tráfico de drogas por si só não justifica internação porque não se trata de infração cuja prática envolva violência.
É equivocado dizer que os menores de 18 anos não respondem pelos seus atos. Eles apenas são tratados de forma diferenciada porque a lei leva em conta que são pessoas em desenvolvimento.
O fato de o jovem poder votar nada tem a ver com a resposta por infração que possa vir a cometer. O voto é facultativo. A imputabilidade penal se define não só pelo fato de a pessoa ter condições de saber o que é ilegal. Exige também que a pessoa tenha condições de se determinar de forma a não praticar conduta ilícita. E essa “maturidade”, segundo mais de 80% das legislações mundiais (inclusive de países considerados como “de primeiro mundo”), só é atingida a partir do 18º aniversário.
Dados estatísticos demonstram que apenas 12% dos atos infracionais tratam de condutas equiparadas a homicídios, latrocínios e estupros. O percentual de reiteração infracional de jovens que cumprem medidas socioeducativas não ultrapassa esse percentual. Já a reincidência de adultos criminosos que frequentam penitenciárias é da ordem de 60%. A partir do momento em que todos se “misturarem”, jovens de 16 e 17 anos certamente reincidirão mais... Essa “mistura” fatalmente acontecerá. O art. 123 do ECA determina que as internações obedeçam a rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração, mas a falta de estrutura já tem impedido a observância dessa regra e jovens de personalidades bastante distintas estão convivendo em muitos Estados brasileiros.
Os jovens de 16 e 17 deixarão de contar com a proteção integral do ECA. Tudo indica que poderão passar a conduzir veículos automotores, pois o Código de Trânsito considera apto para tanto o que é penalmente imputável. Teoricamente, o fornecimento de álcool, tabaco e outras substâncias lícitas que possam causar dependência não será mais vedado ao jovem de 16 anos. A superlotação carcerária se ampliará, o que poderá abrir espaço para penitenciárias privatizadas mantidas por empresas que têm feitos sistemáticas doações para campanhas (o que pode estar justificando os interesses de alguns parlamentares pela aprovação da PEC). O aumento da falta de vagas poderá importar na manutenção em liberdade de muitos indivíduos perigosos...
Encarcerar mais jovens de 16 e 17 anos será medida paliativa e trará certa comodidade ao Estado, que não terá de enfrentar o problema da forma mais adequada, ou seja, não terá de ampliar investimentos e ações em educação, profissionalização e prevenção. A sociedade até poderá estar temporariamente protegida, mas em pouco tempo receberá o jovem de volta com pouca ou nenhuma motivação para mudar de vida, ou mesmo com a opção pela vida do crime já feita.
Alguns estudiosos têm sustentado, e concordo, que os jovens de 16 e 17 anos não são responsáveis pelo clima de insegurança que atualmente impera no país. Algumas infrações graves acabam repercutindo nos meios de comunicação, mas refletem pequeno percentual de atos ilícitos. Alterações na sistemática repressiva não podem ser feitas sob o clima de comoção popular. Há políticos que simplesmente têm medo de se posicionarem contrariamente e de perderem votos.
A sociedade precisa se mobilizar pela efetividade da legislação já existente, ainda que alguns ajustes no ECA possam sejam bem-vindos. Os índices de esclarecimentos de ilícitos e de respostas do Estado precisam ser melhorados por meio de investimentos nas polícias e no sistema judiciário. O que assusta o delinquente não é lei muito severa, mas a maior certeza de ser descoberto e punido. E mesmo com a intensificação da punição, infringir ou não a lei sempre será uma escolha, o que confirma a tese de que o esclarecimento por meio da educação também é fundamental para contenção da criminalidade. Ou será que mesmo com a pena de morte ninguém mais tentará introduzir drogas na Indonésia? Ou será que mesmo diante do risco de pagarem elevadas multas de trânsito e de responderem pelo crime de embriaguez ao volante, todas as pessoas que se dizem cumpridoras das normas deixaram e/ou deixarão de beber antes de dirigirem veículos automotores?
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
(publicado aos 25/6/2015 no Diário de Penápolis e no Correio de Lins; abordado em entrevista à Rádio Regional Esperança aos 22/6/2015)


20 de jun. de 2015

Carga esparramada tem dono!

Não é raro depararmos com notícia de tombamento de caminhão e subsequente apossamento da carga por pessoas que se aglomeram no local... Essa questão nem sempre é bem explorada no que diz respeito às consequências jurídicas.
O Direito Penal protege, dentre outros bens jurídicos, o patrimônio. Assim sendo, o apossamento de algo que não pertence ao agente normalmente caracteriza infração penal se ele tem o conhecimento de que está atingindo o patrimônio alheio ou mesmo se ele prevê o perigo e não se importa em correr o risco.
Quando o apossamento recai sobre coisa sem dono, abandonada ou doada, evidentemente, não retrata crime contra o patrimônio. É necessário, contudo, que o agente tenha certeza de que pode ficar com o bem sem ofender interesse de quem quer que seja.
A coisa que evidentemente ou presumidamente foi perdida por alguém não é considerada coisa sem dono. A apropriação de coisa achada é crime previsto no art. 169 do Código Penal. Quem encontra um telefone celular na via pública, por ex., tem o dever de entregá-lo à autoridade policial para que seja formalmente apreendido. Uma cópia do auto de apreensão deverá ser entregue ao cidadão para que ele prove de que tomou a providência prevista em lei.
É imprescindível que o indivíduo não tenha dúvida alguma de que determinada coisa foi abandonada para que não corra risco de responsabilização penal se se apossar dela. Normalmente aquilo que o morador deposita na calçada, perto do suporte para lixo, por ex., aparenta essa condição de abandono e permite apossamento. Diante do caso concreto, a conduta do agente será detalhadamente analisada para que se verifique se ele agiu com boa-fé. Em alguns casos, mesmo que se decida pela ocorrência de crime, poderá haver redução de pena; noutros, afastamento total da penalidade.
Quando um caminhão se acidenta na via pública, a carga que se espalha continua tendo dono, ainda que esteja segurada. Lamentavelmente algumas pessoas se aglomeram e aguardam como “abutres” que uma subtraia algo para que as demais promovam aquilo que não posso denominar de outra forma: saque! O mais impressionante é que as pessoas participam e/ou presenciam aquela cena como se houvesse amparo legal para as subtrações, ou seja, como se nada de anormal estivesse acontecendo...
Se a carga não estiver segurada, é claro, continua pertencendo ao transportador. Se estiver segurada e se a seguradora decidir pelo ressarcimento do prejuízo, incumbirá a ela decidir o que fará com a mercadoria que não estiver em condições de comercialização. Mas até que isso aconteça e até que pessoa autorizada manifeste expressamente a doação, qualquer investida caracterizará furto.
Se duas ou mais pessoas somarem esforços para o apossamento dos bens, estaremos diante de furto qualificado.
O motorista do caminhão tem o dever de intervir, solicitar que ninguém mexa na carga do patrão e acionar a polícia. A omissão injustificada implicará na sua responsabilização. Isso porque a omissão é penalmente relevante se quem se omite tem o dever legal ou o dever contratual de evitar o resultado, ou mesmo se contribuiu para o surgimento do risco. Mesmo se nada subtrair, como se vê, o motorista poderá vir a responder por furto.
O mesmo raciocínio se aplica ao policial que se aproxima e presencia as ações dos saqueadores sem se certificar se as pessoas estavam autorizadas a se apossarem das mercadorias. Ele tem o dever de proteger o patrimônio e a omissão também implicará na sua responsabilização pelo resultado da conduta de terceiro. Dificilmente a polícia não terá o que fazer para evitar o saque. De qualquer forma, se intervir e houver confronto, quem agir com violência ou grave ameaça para conseguir perpetrar a subtração praticará roubo, delito bem mais grave do que o furto.
De resto, é preciso que imagens registradas no local e eventualmente divulgadas pelos meios de comunicação e/ou por redes sociais sejam utilizadas para a completa e rigorosa apuração dessas condutas, uma vez que em nada se diferenciam dos furtos a respeito dos quais esses próprios saqueadores costumam exigir providências das autoridades. Ao contrário, a subtração de carga espalhada denota considerável grau de reprovabilidade, já que as ações sucedem infortúnios e demonstram, além da ganância, falta de solidariedade. Às vezes até sucedem acidentes fatais...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
(publicado aos 18/6/2015 no Diário de Penápolis e no Correio de Lins; abordado em entrevista à Rádio Regional Esperança aos 15/6/2015)


O desafio de trabalhar e estudar


Decidir frequentar curso superior noturno depois do trabalho é um ato de coragem e por isso quem se matricula já pode se sentir vitorioso. Afinal, assume um compromisso de pelo menos quatro anos, normalmente, cinco. Muitas vezes deixa a zona de conforto...

Via de regra essa pessoa age movida por uma vontade muito grande de transformar a vida e de testar os seus limites. Em grande parte das vezes sequer dispõe de todos os recursos necessários ao custeio dos estudos, mas se arrisca para ver o que vai dar.

Tomar a decisão é o maior passo, mas, é claro, muitas dificuldades surgem quando o curso começa. Nem sempre o aluno tem afinidade com as disciplinas que irá cursar. Nem sempre tinha o hábito de estudar. Muitas vezes estava longe dos estudos havia algum tempo. Em alguns casos não tem a exata noção do que lhe espera. Há quem não tenha o necessário apoio da família. E não é difícil alguém se dispor a estudar o que não gosta somente para agradar os pais. Tudo isso exige doses extras de reflexão, atenção e perseverança.

Com a proliferação de cursos e o consequente aumento da oferta de vagas, os processos seletivos estão menos exigentes e os candidatos às vezes não têm encontrado grandes dificuldades. Essa circunstância acaba gerando no novo aluno uma falsa sensação de preparo.

Acontece que o curso superior tem carga horária elevada e os professores estão compromissados com o cumprimento do que foi planejado pelas instituições. E mesmo assim, normalmente o futuro exercício profissional dependerá de estudos complementares, uma vez que nem sempre haverá tempo de repassar todo o conteúdo, seja pela vastidão da matéria, seja porque os docentes terão de adotar ritmo compatível com as diferenças de preparo, de capacidade e de empenho verificadas nas numerosas salas de aula.

Mas o que o aluno que trabalha durante o dia pode fazer para enfrentar melhor a fase de formação superior?

Um caderno bem anotado é fundamental. Pode evitar despesas com livros e cópias reprográficas. Reproduzir o caderno do colega antes da avaliação pode até ajudar, mas nem sempre haverá familiaridade com redação utilizada, o que poderá comprometer a absorção do conteúdo. Por isso, cada um deve se esmerar em fazer os seus próprios apontamentos.

Na fase da graduação os livros devem apenas complementar os estudos de temas tidos como mais relevantes e/ou que causam mais dificuldades. Não se pode estudar apenas por eles. Isso porque normalmente não há tempo para extensas leituras e elas desmotivam o estudante. Daí a importância de anotações completas sobre o que foi dito e de se prestar muita atenção nas explicações.

O aluno não pode ter medo de pedir esclarecimentos ao professor. Não pode sair com dúvida. Nem sempre conseguirá saná-la sozinho ou pelo menos perderá muito tempo para tanto. Não deve se importar com eventuais críticas de colegas menos interessados. E se o professor reluta em responder indagações, a questão deverá ser levada ao conhecimento do seu superior.

O tempo do intervalo deve ser bem aproveitado. Pode ser importante para uma visita à biblioteca. Se sempre existe fila na lanchonete, por que não trazer algo de casa para comer? Aliás, a fome dificulta o aprendizado. Demorar para retornar à sala e perder os minutos iniciais das explicações pode interferir sobremaneira na compreensão.

Para maior conforto são recomendáveis releituras das anotações nos finais de semana. A prática poderá evitar exames, repetições e frequência a custosos cursos preparatórios.

O método de estudo deve ser pessoal, mas vale a pena trocar idéias para saber como o colega procede. “Encaixar” a graduação numa rotina que já era corrida por conta do trabalho e da família poderá exigir a redução de horas de sono por algum tempo, mas, é claro, o estudante deverá decidir isso com bom senso e orientação para não comprometer a saúde. Deve-se abdicar, ainda que temporariamente, daquilo que pode esperar.

É claro que os perfis dos estudantes e dos cursos geram especificidades que não podem ser tratadas nesta breve análise. O que pretendo é apenas ressaltar a necessidade de uma completa mudança de postura quando alguém decide trabalhar e estudar. É preciso ser mais do que um mero frequentador do curso. Adaptações na rotina evitarão uma série de dissabores. Todo o tempo desviado para atividades menos importantes (como as redes sociais) acabará sendo de uma forma ou outra “cobrado” do aluno. Toda tarefa protelada se torna mais difícil e demorada de ser executada. Etapas que poderiam ser superadas com um pouco de esforço poderão se tornar um grande fardo por culpa exclusiva do discente. Dito isso, por que não fazer alguma coisa desde já para preservar a sua tranquilidade e melhorar o seu aproveitamento?

Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico

(publicado na edição de junho de 2015 da Revista Comunica)

12 de jun. de 2015

Prisão em flagrante e legítima defesa

Certa vez analisei a prisão em flagrante de um taxista que reagiu ao roubo anunciado por um passageiro, entrou em luta corporal com o roubador, o desarmou e conseguiu atingi-lo no pescoço com a faca que tinha sido utilizada para intimidá-lo. Matou, portanto, o ladrão. Os elementos de convicção até então colhidos davam conta de que a reação tinha sido imprescindível à proteção da vida e de que o taxista tinha se servido do meio necessário. Notava-se proporcionalidade entre a defesa e a agressão sofrida. A vítima do roubo, inclusive, tinha sofrido lesões e sido internada.

Na ocasião o taxista, mesmo assim, chegou a ser preso em flagrante, o que demandou a intervenção do Judiciário para a sua imediata libertação. Lembrei-me do caso não para criticar ninguém, mas para induzir reflexão.

Conforme já decidiu o egrégio Supremo Tribunal Federal: “A prisão cautelar – qualquer que seja a modalidade que ostente no ordenamento positivo brasileiro (prisão em flagrante, prisão temporária, prisão preventiva, prisão decorrente de sentença de pronúncia ou prisão motivada por condenação penal recorrível) – somente se legitima, se se comprovar, com apoio em base empírica idônea, a real necessidade da adoção, pelo Estado, dessa extraordinária medida de constrição do ‘status libertatis’ do indiciado ou do réu (“Habeas Corpus” 89.501 – Relator Min. Celso de Mello, j. 12/12/2006).

O Código de Processo Penal estabelece, quando trata da prisão em flagrante: “Resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão” (art. 304, § 4º).

Há quem sustente, sob o argumento de que não existe regra expressa, que o delegado de polícia não pode deixar de lavrar o auto de prisão em flagrante ainda que se convença de que a pessoa agiu em legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito, devendo encaminhar os autos à análise do Judiciário. Com a devida vênia, não posso concordar. Diante das chamadas excludentes da ilicitude, não há de se falar em crime. E se não existe crime, não há de se falar em flagrante delito.

Penso que o delegado, diante da situação que denote legítima defesa, deve apenas registrar ocorrência e expor fundamentadamente as suas razões de que houve fato típico (conduta descrita em lei como delituosa), porém, lícito (com amparo legal). Afinal, é bacharel em Direito e o seu convencimento, ausente qualquer indício de má-fé, deve ser respeitado. A carreira deve ser privilegiada. É muito comum, por ex., o Delegado deixar de lavrar auto de prisão quando um policial militar, em evidente resposta à agressão armada de um criminoso, atinge e mata o oponente. Deve ter a mesma desenvoltura quando quem mata em legítima defesa é o cidadão que foi acuado e reagiu em conformidade com a autorização legal.

A liberdade é um dos principais direitos garantidos no art. 5º da Constituição Federal. Até mesmo para o criminoso confesso a prisão provisória, como dito, deve ser excepcional. Não tem lógica e fere a dignidade humana sustentar que uma pessoa que reagiu em legítima defesa deve ser indiciada, autuada e encarcerada até que o Judiciário se pronuncie, como se a autoridade policial não tivesse qualquer condição de promover essa análise e como se essa espera fosse algo “normal”. Até mesmo sob o ponto de vista do melhor aproveitamento do serviço público, o desperdício de recursos pessoais e materiais (cada vez mais escassos) não se explica, pois a lavratura de auto de prisão é trabalhosa e demorada...

Não parece sensato privar do delegado essa possibilidade de analisar a legítima defesa se o juiz, diante de evidências da excludente da ilicitude, terá necessariamente de relaxar a prisão em flagrante justamente por conta da sua ilegalidade... Nem de longe a autoridade policial poderá ser tachada de prevaricadora se não prender em flagrante aquele que reagiu acobertado pela lei. Se pode decidir pela prisão, medida mais gravosa, pode também optar por não prender.

O Tribunal de Justiça de São Paulo já decidiu: “Não observada a prudência devida ficaria [o delegado] fadado a cometer abusos manifestos contra a pessoa; e assim também, se obrigado fosse, de forma automática, a praticar ato de restrição de liberdade por puro mandamento legal sem que pudesse sopesar da oportunidade para tanto (Habeas Corpus 990.10.078571-0, Relator Des. Camilo Lellis, j. 23/9/2010).

No caso a que inicialmente me referi, o próprio taxista acionou a polícia. Os relatos dos policiais sobre a cena do crime sugeriam legítima defesa. A própria autoridade policial informou que os ferimentos que o autuado apresentava nas mãos eram “denotativos de lesões de defesa”. O fato ocorreu na zona rural e a apreensão de uma bolsa com pertences do roubador sugeriam a sua condição de passageiro. Resolvi que a custódia provisória do taxista não se justificava. Além dos indícios de excludente da ilicitude, ele era primário, tinha bons antecedentes, residia na Comarca e mantinha ocupação lícita. Mas muita coisa poderia ter sido evitada se o delegado tivesse apenas registrado ocorrência para posterior esclarecimento dos fatos... Inclusive, a família do taxista, que teve até de contratar advogado, talvez tivesse compreendido melhor o real objetivo da nossa legislação, que deve ser sempre interpretada como um todo.

Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
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(publicado aos 11/6/2015 no Diário de Penápolis e no Correio de Lins; abordado em entrevista na Rádio Regional Esperança ao 8/6/2015)

7 de jun. de 2015

Poder investigatório do Ministério Público

Nos autos do Recurso Extraordinário 593.727-5, o egrégio Supremo Tribunal Federal analisou a constitucionalidade da investigação criminal conduzida pelo Ministério Público. O enfrentamento do tema se deu em regime de repercussão geral. Isso significa que a solução deverá ser aplicada aos processos cujas tramitações foram suspensas nas demais instâncias.

A defesa que recorreu invocou nulidade da investigação sob o argumento de que a Constituição não atribui ao MP a possibilidade de conduzi-la. Sustentou, ainda, que a prática ofende a garantia do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Adotou como argumento o § 4º do art. 144 da Constituição Federal: “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”.

Ao reconhecer a repercussão da discussão, em 2009, o Ministro Marco Aurélio ponderou que o MP só tinha poder investigatório em ação civil pública. Enfatizou que a apuração de ilícito penal deveria ser requisitada às Polícias Civil ou Federal, a depender do caso, cabendo ao MP a devida fiscalização.

Em maio de 2015, todavia, o Plenário do Supremo enfrentou definitivamente a questão. A maioria dos onze Ministros entendeu que o MP pode promover investigação criminal, com exceção dos casos de reserva constitucional de jurisdição (quando a Constituição Federal elege especificamente a que incumbe investigar). Penso que de fato o MP não pode ficar “refém” da investigação policial, especialmente porque o contingente das Polícias não tem sido suficiente para essa missão.

O julgamento resultou na redação da seguinte tese: “O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei 8.906/94, artigo 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no Estado democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição”.

Prevaleceu a idéia de que se o Ministério Público é titular da ação penal pública (“dominus litis”), não haveria razão para impedi-lo de colher os elementos necessários ao ajuizamento. Como se costuma dizer no Direito, “quem pode o mais, pode o menos”.

O Ministro Marco Aurélio, como dito, votou contrariamente, tendo afirmado que a investigação pelo MP somente seria legítima se tivesse havido clara previsão de como ela seria desenvolvida. No seu entender, o MP tem de fiscalizar e controlar a polícia, pois “o que se mostra inconcebível é um membro do Ministério Público colocar uma estrela no peito, armar-se e investigar”. Ponderou que, “sendo o titular da ação penal, terá a tendência de utilizar apenas as provas que lhe servem, desprezando as demais e, por óbvio, prejudicando o contraditório e inobservando o princípio da paridade de armas". Generalizou, portanto, o entendimento de que promotores seriam parciais nas conduções de apurações, o que, com o devido respeito.

A Súmula Vinculante 14, mencionada no julgado, dispõe: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.

A Resolução 13/2006 do Conselho Nacional do Ministério Público disciplinou a instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal por promotores e procuradores de justiça.

Em 2011 a proposta de emenda constitucional que tornava privativa das polícias federal e civil a apuração de crimes já tinha sido rejeitada. Ao que parece, o novo pronunciamento do STF colocou uma “pá de cal” no debate que se estendia havia algum tempo...

A Ministra Carmen Lúcia, quando se manifestou favoravelmente à investigação conduzida pelo MP, destacou que as melhores apurações, todavia, acabam sendo aquelas em que promotores e policiais agem conjuntamente, o que não deixa de ser uma verdade, pois nem sempre os primeiros detêm “know-how” e estrutura adequada para buscas, interceptações telefônicas e diligências externas.

Em tese, quanto mais gente investigar, maior será a repressão à criminalidade. Acontece que nem sempre haverá atuação conjunta, que depende precipuamente da confiança no compartilhamento de informações. E, nesse caso, desencontros entre as ações investigativas poderão acabar beneficiando o investigado, ou seja, a ação de uma instituição poderá vir a “estragar” o planejamento feito pela outra, antecipando, por exemplo, uma prisão que vinha sendo protelada para que comparsas viessem a ser identificados e/ou para que apreensões se tornassem viáveis. Em suma: a quantidade de investigadores nem sempre garantirá a qualidade da investigação.

Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
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(publicado aos 4/6/2015 no Diário de Penápolis e no Correio de Lins; abordado em entrevista na Rádio Regional Esperança ao 1º/6/2015)



2 de jun. de 2015

Violência doméstica – apuração incondicionada

Com o surgimento da Lei 9.099/1995, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais estaduais, a apuração da lesão corporal leve passou a depender de representação da vítima, ou seja, de pronunciamento favorável dela no prazo de seis meses contado do conhecimento da autoria da agressão. O Estado, detentor do poder de punir, entendeu que em alguns casos as vítimas talvez pudessem querer relevar a ofensa.

As lesões são consideradas leves quando não resultam incapacidade para as ocupações habituais por mais de trinta dias; perigo de vida; debilidade permanente de membro, sentido ou função; aceleração de parto; incapacidade permanente para o trabalho; enfermidade incurável; perda ou inutilização do membro, sentido ou função; deformidade permanente ou aborto.

A Lei 11.340/2006, mais conhecida como “Maria da Penha”, ao tratar da violência doméstica, previu: (1) Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial (...) tomar a representação a termo, se apresentada; (2) Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação (...) só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

A interpretação literal do que foi escrito fez com que a representação da mulher agredida continuasse sendo exigida e permitiu que ela se retratasse na fase judicial e dessa forma evitasse a responsabilização do agressor. Na prática, a mulher oprimida muitas vezes não tinha alternativa e a impunidade continuava a imperar. A falta de representação da mulher ou a sua retratação em juízo muitas vezes estimulavam agressores a se tornarem ainda mais violentos.

Mas o Supremo Tribunal Federal, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.424, decidiu que a apuração de violência doméstica não depende de pronunciamento favorável da vítima, ou seja, não carece da “autorização” dela. Em consequência, afastou a possibilidade de a persecução penal ser interrompida a pedido da mulher, o que popularmente se denomina “retirar a queixa” (muito embora “queixa” tenha significado jurídico próprio e diverso). O julgado reconheceu a natureza incondicionada da ação penal. A deflagração da apuração, portanto, não está sujeita a condição alguma. A polícia e o Ministério Público podem agir independentemente da vontade da mulher vitimada. Qualquer pessoa pode denunciar a ocorrência de violência doméstica, mesmo anonimamente.

Os Ministros que participaram do julgamento da ADI 4.424 fizeram comentários interessantes. No entender da Min. Cármen Lúcia, houve mudança de mentalidade no que se refere aos direitos das mulheres e “é dever do Estado adentrar ao recinto das ‘quatro paredes’ quando na relação conjugal que se desenrola ali houver violência”. Para o eminente Min. Ricardo Lewandowski: “as mulheres, como está demonstrado estatisticamente, não representam criminalmente contra o companheiro ou marido em razão da permanente coação moral e física que sofrem e que inibe a sua livre manifestação da vontade”. No entendimento do Min. Ayres Britto: “em um contexto patriarcal e machista, a mulher agredida tende a condescender com o agressor”. Sustentou o Ministro Celso de Mello que é fundamental que se dê atenção ao artigo 226, parágrafo 8º, da Constituição Federal, que prevê a prevenção da violência doméstica e familiar pelo Estado.

Como se vê, o ordenamento jurídico e a jurisprudência, tendo em vista a intenção de reforçar a prevenção e a repressão à violência doméstica, procuraram evitar que houvesse entraves à persecução penal. A razão de ser dessa nova mentalidade foi justamente o fato de, no passado, como dito, muitas apurações terem sido evitadas ou interrompidas porque, respectivamente, as vítimas não representaram ou se retrataram.

Já deparei com proposta de arquivamento de apuração de violência doméstica com base no argumento de que os envolvidos, por conta do processo, poderiam deixar de conviver. Imediatamente discordei. Também não concordo que a possibilidade de a pretensa vítima não cooperar com a produção da prova, o que às vezes acontece porque em juízo ela tenta “maquiar” a agressão sofrida, justifique o arquivamento do inquérito. Afinal, o relato judicial da vítima não é o único elemento de convicção. Mesmo que ela venha a negar a agressão é possível condenar. O arquivamento, nos citados casos, consistiria, com o devido respeito, num retrocesso; em fazer “ressurgir das cinzas” aquilo que há alguns anos se denominava “medida de política criminal” para tentar preservar a convivência, mas cuja aplicação sistemática acabou por incentivar a violência.

Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
(publicado aos 28/5/2015 no Diário de Penápolis e aos 30/5/2015 no Correio de Lins; abordado em entrevista na Rádio Regional Esperança aos 25/5/2015)