João trabalhava com ajudante de
Pedro no corte de lenha. Aproveitando-se de um descuido do “patrão”, subtraiu
uma folha do talão de cheques da vítima, a preencheu, a assinou e se serviu
dela para tentar obter vantagem indevida em prejuízo de um estabelecimento
comercial. Por ter sido surpreendido, foi acusado da prática de estelionato.
Por ocasião do interrogatório de
João, tive oportunidade de fazer algo inusitado. O réu sustentava inocência e alegava
que, em verdade, Pedro havia lhe emprestado a folha de cheque assinada, mas não
preenchida. Ocorre que algumas incoerências na sua versão indicavam que mentia.
Eu lhe disse que como ele afirmava que não tinha assinado o cheque,
encomendaria exame pericial, já que a providência não tinha sido tomada na fase
de inquérito. Alertei-o de que a perícia provavelmente constataria a sua culpa,
pois havia coincidências nas grafias do preenchimento do cheque (cuja autoria
ele tinha admitido) e da assinatura. Passei a ponderar que a negativa não se coadunava
com o que o acusado havia anunciado: que queria mudar de vida, pois tinha
perdido o emprego e a família. Enfatizei que durante a sua fala, João tinha se
referido ao amigo (e vítima) como “um pai” (de fato havia diferença etária
suficiente entre eles) e usei isso para emocioná-lo e incentivá-lo a confessar,
o que acabou fazendo, quando então chorou. Percebi sincero arrependimento
naquele que instintivamente tentava se defender, mas que, em verdade, lamentava
muito por ter traído o companheiro de trabalho que tanto havia lhe ajudado,
segundo ele mesmo revelou. Propus, de forma inédita, e o réu concordou, que o vídeo
do seu interrogatório fosse remetido à vítima. Afinal, ele tinha deixado registrado
que queria voltar a trabalhar com Pedro quando deixasse a prisão. Tive a idéia
de remeter as imagens para que Pedro pudesse tomar conhecimento do
arrependimento de João e quiçá um dia conceder ao infrator uma nova chance...
Naquele caso, se eu tivesse embasamento legal, teria designado uma nova
audiência, colocado os dois frente a frente e teria evitado impor sanção penal.
O encontro teria sido suficiente à prevenção de novos deslizes. Ao final da
audiência, percebi que a “justiça restaurativa” pode, em muitos casos, ser benéfica
para todos.
O Papa João Paulo II certa
vez esteve na prisão onde o turco Ali Agca se encontrava para conceder
misericórdia ao autor da tentativa de homicídio de que foi vítima. O próprio
Jesus pediu que aqueles que o maltratavam fossem perdoados porque não sabiam o que
estavam fazendo...
Sérgio Salomão Shecaira, certa vez,
ao prefaciar “Justiça Restaurativa:
Amanhecer de uma Era”, de César Barros Leal, fez referência à justiça restaurativa como a “justiça em que todos ganham e ninguém perde”
e relacionou alguns termos que já foram utilizados para denominá-la: justiça doce, transformadora, relacional, reconciliadora,
pacificadora, participativa, reconstitutiva, restauradora, reparatória ou transformadora.
Em síntese, os defensores dessa
modalidade sustentam que a vítima de um delito deva participar mais
intensamente do processo. Facilitadores cuidam de buscar, por meio de
entrevistas com o ofendido e com o criminoso, acordo de reparação que pode
prever a indenização dos danos, a prestação de serviços comunitários e vários
outros tipos de respostas à infração que traduzam maior conforto à vítima e à
comunidade e maior possibilidade de reflexão ao delinquente. Todos são
estimulados a analisaram ponderadamente o ocorrido. As necessidades e os
direitos dos afetados são expostos e debatidos. Tudo isso não costuma ocorrer
com a mera imposição de pena...
Não
se trata de criar uma nova justiça, mas de introduzir uma fase não obrigatória
no processo penal, tendo em vista a ineficiência da sistemática em uso, que na
maioria das vezes não faz cicatrizar os traumas que o delito impõe não só à vítima,
mas também ao delinquente. Sai de cena a vontade exclusiva do Estado para que
seja considerada também a opinião do ofendido, que depois de ouvir o autor do
crime poderá desenvolver empatia e entender que uma boa composição gera mais
satisfação do que a imposição de uma pena que nem sempre terá capacidade de
reconstrução, já que o poder público não oferece condições para tanto (e terá
dificuldade para oferecer, frente à crescente demanda).
Consta que em alguns países a justiça restaurativa
tem sido aplicada até em casos mais graves como o homicídio, o estupro e o
tráfico de pessoas. No dizer dos adeptos, a resposta acaba sendo mais rápida,
humana e eficiente. No Brasil tem se fortalecido a idéia de que a justiça
restaurativa poderia ser uma ótima maneira de dar encaminhamento, por exemplo,
às apurações de atos infracionais.
De certa forma, a vontade da vítima
já tem sido observada nos casos de crimes cujas apurações dependem da sua
iniciativa (ação penal de iniciativa privada ou condicionada à representação).
No que tange às infrações ditas de menor potencial ofensivo, em alguns casos o
acordo de reparação civil (indenização) implica no arquivamento da persecução
penal. A Lei 9.099/1995 também flexibilizou a obrigatoriedade de propositura da
ação penal por parte do Ministério Público, tendo instituído a possibilidade de
transação penal e de suspensão condicional do processo para várias situações e,
dessa forma, propiciado a possibilidade de investigados se redimirem por meio
do cumprimento de determinados compromissos.
Para alguns é meio utópico acreditar
que a justiça restaurativa possa vir a ser uma solução viável, mas penso que se
ela for legal e criteriosamente ampliada e que se sobrevier progressiva mudança
de mentalidade acerca do papel do Direito Penal, a sensação de impunidade será
reduzida e a efetiva recuperação do faltoso atingirá índices muito mais
expressivos.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
(publicado na Revista Comunica de nov/2014, no
Diário de Penápolis de 6/11/2014 e no Correio de Lins de 25/11/2014)