Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

23 de nov. de 2014

Justiça Restaurativa


            João trabalhava com ajudante de Pedro no corte de lenha. Aproveitando-se de um descuido do “patrão”, subtraiu uma folha do talão de cheques da vítima, a preencheu, a assinou e se serviu dela para tentar obter vantagem indevida em prejuízo de um estabelecimento comercial. Por ter sido surpreendido, foi acusado da prática de estelionato.
            Por ocasião do interrogatório de João, tive oportunidade de fazer algo inusitado. O réu sustentava inocência e alegava que, em verdade, Pedro havia lhe emprestado a folha de cheque assinada, mas não preenchida. Ocorre que algumas incoerências na sua versão indicavam que mentia. Eu lhe disse que como ele afirmava que não tinha assinado o cheque, encomendaria exame pericial, já que a providência não tinha sido tomada na fase de inquérito. Alertei-o de que a perícia provavelmente constataria a sua culpa, pois havia coincidências nas grafias do preenchimento do cheque (cuja autoria ele tinha admitido) e da assinatura. Passei a ponderar que a negativa não se coadunava com o que o acusado havia anunciado: que queria mudar de vida, pois tinha perdido o emprego e a família. Enfatizei que durante a sua fala, João tinha se referido ao amigo (e vítima) como “um pai” (de fato havia diferença etária suficiente entre eles) e usei isso para emocioná-lo e incentivá-lo a confessar, o que acabou fazendo, quando então chorou. Percebi sincero arrependimento naquele que instintivamente tentava se defender, mas que, em verdade, lamentava muito por ter traído o companheiro de trabalho que tanto havia lhe ajudado, segundo ele mesmo revelou. Propus, de forma inédita, e o réu concordou, que o vídeo do seu interrogatório fosse remetido à vítima. Afinal, ele tinha deixado registrado que queria voltar a trabalhar com Pedro quando deixasse a prisão. Tive a idéia de remeter as imagens para que Pedro pudesse tomar conhecimento do arrependimento de João e quiçá um dia conceder ao infrator uma nova chance... Naquele caso, se eu tivesse embasamento legal, teria designado uma nova audiência, colocado os dois frente a frente e teria evitado impor sanção penal. O encontro teria sido suficiente à prevenção de novos deslizes. Ao final da audiência, percebi que a “justiça restaurativa” pode, em muitos casos, ser benéfica para todos.
            O Papa João Paulo II certa vez esteve na prisão onde o turco Ali Agca se encontrava para conceder misericórdia ao autor da tentativa de homicídio de que foi vítima. O próprio Jesus pediu que aqueles que o maltratavam fossem perdoados porque não sabiam o que estavam fazendo...
            Sérgio Salomão Shecaira, certa vez, ao prefaciar “Justiça Restaurativa: Amanhecer de uma Era”, de César Barros Leal, fez referência à justiça restaurativa como a “justiça em que todos ganham e ninguém perde” e relacionou alguns termos que já foram utilizados para denominá-la: justiça doce, transformadora, relacional, reconciliadora, pacificadora, participativa, reconstitutiva, restauradora, reparatória ou transformadora.
            Em síntese, os defensores dessa modalidade sustentam que a vítima de um delito deva participar mais intensamente do processo. Facilitadores cuidam de buscar, por meio de entrevistas com o ofendido e com o criminoso, acordo de reparação que pode prever a indenização dos danos, a prestação de serviços comunitários e vários outros tipos de respostas à infração que traduzam maior conforto à vítima e à comunidade e maior possibilidade de reflexão ao delinquente. Todos são estimulados a analisaram ponderadamente o ocorrido. As necessidades e os direitos dos afetados são expostos e debatidos. Tudo isso não costuma ocorrer com a mera imposição de pena...
            Não se trata de criar uma nova justiça, mas de introduzir uma fase não obrigatória no processo penal, tendo em vista a ineficiência da sistemática em uso, que na maioria das vezes não faz cicatrizar os traumas que o delito impõe não só à vítima, mas também ao delinquente. Sai de cena a vontade exclusiva do Estado para que seja considerada também a opinião do ofendido, que depois de ouvir o autor do crime poderá desenvolver empatia e entender que uma boa composição gera mais satisfação do que a imposição de uma pena que nem sempre terá capacidade de reconstrução, já que o poder público não oferece condições para tanto (e terá dificuldade para oferecer, frente à crescente demanda).
            Consta que em alguns países a justiça restaurativa tem sido aplicada até em casos mais graves como o homicídio, o estupro e o tráfico de pessoas. No dizer dos adeptos, a resposta acaba sendo mais rápida, humana e eficiente. No Brasil tem se fortalecido a idéia de que a justiça restaurativa poderia ser uma ótima maneira de dar encaminhamento, por exemplo, às apurações de atos infracionais.
            De certa forma, a vontade da vítima já tem sido observada nos casos de crimes cujas apurações dependem da sua iniciativa (ação penal de iniciativa privada ou condicionada à representação). No que tange às infrações ditas de menor potencial ofensivo, em alguns casos o acordo de reparação civil (indenização) implica no arquivamento da persecução penal. A Lei 9.099/1995 também flexibilizou a obrigatoriedade de propositura da ação penal por parte do Ministério Público, tendo instituído a possibilidade de transação penal e de suspensão condicional do processo para várias situações e, dessa forma, propiciado a possibilidade de investigados se redimirem por meio do cumprimento de determinados compromissos.
            Para alguns é meio utópico acreditar que a justiça restaurativa possa vir a ser uma solução viável, mas penso que se ela for legal e criteriosamente ampliada e que se sobrevier progressiva mudança de mentalidade acerca do papel do Direito Penal, a sensação de impunidade será reduzida e a efetiva recuperação do faltoso atingirá índices muito mais expressivos.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
(publicado na Revista Comunica de nov/2014, no Diário de Penápolis de 6/11/2014 e no Correio de Lins de 25/11/2014)  

1 de nov. de 2014

Alterações no Código de Trânsito


            A Lei 12.971, de 9/5/2014, entrará em vigor no dia 1º/11/2014.
            Ela previu interessantes modificações no Código de Trânsito que basicamente terão o objetivo de sancionar com mais severidade o excesso de velocidade, as manobras arriscadas e as suas conhecidas consequências.
            Algumas infrações de trânsito passarão a ser apenadas com a multa prevista para a categoria “gravíssima” multiplicada por dez vezes:
            a) disputar corrida (art. 173);
            b) promover, na via, competição, eventos organizados, exibição e demonstração de perícia em manobra de veículo, ou deles participar, como condutor, sem permissão da autoridade de trânsito com circunscrição sobre a via (art. 174);
            c) utilizar-se de veículo para demonstrar ou exibir manobra perigosa, mediante arrancada brusca, derrapagem ou frenagem com deslizamento ou arrastamento de pneus (art. 175);
            d) forçar passagem entre veículos que, transitando em sentidos opostos, estejam na iminência de passar um pelo outro ao realizar operação de ultrapassagem (art. 191).
            Outras infrações embasarão multas multiplicadas por cinco vezes:
            a) Ultrapassar outro veículo pelo acostamento ou em interseções e passagens de nível (art. 202);
            b) Ultrapassar pela contramão outro veículo: I - nas curvas, aclives e declives, sem visibilidade suficiente; II - nas faixas de pedestre; III - nas pontes, viadutos ou túneis; IV - parado em fila junto a sinais luminosos, porteiras, cancelas, cruzamentos ou qualquer outro impedimento à livre circulação; V - onde houver marcação viária longitudinal de divisão de fluxos opostos do tipo linha dupla contínua ou simples contínua amarela (art. 203);
            No caso de homicídio culposo (que decorre de imprudência, negligência ou imperícia, sem a intenção de matar), se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência (droga) ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente, poderá ser condenado a 2 a 4 anos de reclusão e à suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
            A constatação da condução de veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência (droga), crime previsto no art. 306, poderá ser feita mediante teste de alcoolemia ou toxicológico, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.
            A alteração mais relevante foi introduzida no art. 308. A consumação do delito antes exigia a demonstração de “dano potencial à incolumidade pública ou privada”. Agora o Código se contentará com a demonstração de “situação de risco à incolumidade pública ou privada”. De resto, o crime continuará com mesma descrição: “Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente”. Mas por força da inclusão de dois parágrafos, se da prática resultar lesão corporal de natureza grave, a pena corporal será de 3 a 6 anos de reclusão; e se resultar morte, será de 5 a 10 anos de reclusão. Tudo isso, é claro, se as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado (agiu com dolo direto) nem assumiu o risco de produzi-lo (agiu com dolo eventual), pois caso contrário responderá por lesão corporal dolosa ou homicídio doloso. A pena para o “racha” com resultado “morte” será de no mínimo 5 anos de reclusão e a pena para o homicídio doloso simples já é de no mínimo 6 anos de reclusão, ou seja, a lei quase equiparou as penas mínimas. A diferença é que o crime de trânsito, cujo resultado é culposo (não desejado), não é julgado pelo júri, pois não se classifica dentre os dolosos contra a vida. A resposta para o praticante de “racha” que matava ou lesionava era muito mais branda...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
(publicado no Diário de Penápolis de 30/10/2014 e no Correio de Lins de 31/10/2014)