Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

21 de dez. de 2014

Malhação de Judas


            Segundo a Wikipédia, a “Malhação de Judas ou Queima de Judas é uma tradição vigente em diversas comunidades católicas e ortodoxas ... também realizada em diversos outros países, sempre no Sábado de Aleluia, simbolizando a morte de Judas Iscariotes. Consiste em surrar um boneco do tamanho de um homem, forrado de serragem, trapos ou jornal, pelas ruas de um bairro e atear fogo a ele, normalmente ao meio-dia”.
            A tradição de “malhar Judas” está se perdendo, mas o costume de “malhar todo mundo” tem se intensificado...
            Antigamente as pessoas discordavam ou mesmo se desentendiam e cada uma ia para o seu lado refletir sobre o ocorrido, tentar se colocar no lugar da outra, se aconselhar, reconhecer acertos e falhas, enfim, analisar friamente o incidente e quiçá se desculpar. Atualmente, com a proliferação de redes sociais e o acesso facilitado pelo telefone celular, muitas vezes uma pequena divergência faz com que a parte envolvida, de forma impensada, leviana, “despeje” publicamente os seus descontentamentos e dessa forma macule a imagem do outro sem qualquer necessidade. Essa reação tem certa dose de infantilidade (“vou contar para a minha mãe que você me fez isso”), na medida em que pessoas adultas e maduras devem solucionar elas próprias os seus problemas sem ficar lamuriando e importunando desnecessariamente terceiros. Em alguns casos esses “desabafos” acabam “recheados” de ofensas, prejulgamentos e generalizações. E depois fica difícil se arrepender e reparar o prejuízo à honra alheia.
            Pior do que ficar postando todo e qualquer incidente em redes sociais é comentar situações cujos detalhes não são todos revelados por quem “desabafa” e em relação às quais não consta a versão do outro contendor. Tem gente que se acostumou a julgar tudo o que chega ao seu conhecimento, como se essa tarefa fosse simples. Como magistrado, por exemplo, já cheguei a refletir durante alguns dias para solucionar alguns casos. Formar convicção é uma tarefa difícil e que deve ser realizada com absoluta isenção. O problema é que ela nem sempre está presente nas postagens no Facebook e no WhatsApp acerca de fatos supostamente vividos pelos contatos de quem o comentarista se propõe a ser conselheiro mesmo quando não foi chamado... E os comentários acabam se sucedendo com a mesma rapidez e a mesma imprudência, no melhor estilo “Maria vai com as outras”...
            Como exemplo dessa leviandade é possível citar o caso do juiz fluminense que se desentendeu com uma agente de trânsito e acabou vencendo demanda e tendo o direito de ser indenizado reconhecido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Apenas pelo fato de ele, segundo a imprensa, já ter se envolvido em outros incidentes, as pessoas simplesmente o trataram como se fosse um boneco feito com trapos. Foi achincalhado e internautas até fizeram uma “vaquinha” para que a agente de trânsito pudesse pagar a indenização, eliminando, dessa forma, o caráter pedagógico da condenação judicial. Fiz questão de ler com atenção o acórdão prolatado nos autos do Proc. 0176073-33.2011.8.19.0001 aos 12/11/2014 e verifiquei que ele analisou com profundidade as provas colhidas antes de concluir que o juiz nada tinha feito que justificasse a reação da agente de trânsito que o desprestigiou. O juiz apenas tinha esquecido a carteira de habilitação na bolsa da esposa, que por sua vez trouxe rapidamente o documento. Não portar a CNH é infração leve. O carro estava sem placas porque era novo e o juiz contava com autorização do Detran para que pudesse transitar daquela maneira porque a repartição estava atrasada nas instalações de placas. O condutor se submeteu ao teste do etilômetro e não tinha consumido álcool. E ele apenas queria que o carro não fosse apreendido de imediato porque estava cheio de processos que tinha trazido do Fórum e temia que os documentos fossem para o pátio. Segundo o Desembargador relator, “ao desdenhar do conhecimento jurídico do réu, afirmando ‘você é juiz e desconhece a lei?’, a autora [agente de trânsito] zombou dolosamente da condição do autor [magistrado], menosprezando seu saber jurídico e a função por ele exercida na sociedade, se distanciando da seriedade e urbanidade que se exige de um servidor público no exercício de suas funções”. Ao receber voz de prisão por desacato, segundo consta, a agente de trânsito afirmou que o fiscalizado era “só um juiz, não Deus”. O julgado reconheceu abuso de autoridade da mulher. Embasou-se nos relatos de várias testemunhas, dentre elas, uma que afirmou que “em alguns momentos os funcionários do Detran que trabalhavam na Lei Seca se mostraram arrogantes”; e outra que garantiu que “em momento algum o representado perdeu o controle”. O desembargador enfatizou, inclusive, que o processo administrativo deflagrado pela agente contra o juiz foi julgado improcedente pela maioria dos integrantes da Corte Especial do Tribunal, isentando de qualquer reprovação a conduta do magistrado. De resto, o que não está no processo não pode ser considerado pelo Judiciário. Será que o juiz realmente se excedeu ou a agente quis se aproveitar do fato de ter detectado infração praticada por ele? Afinal, infração praticada por juiz acaba sendo sempre grave...
            A nossa Constituição garante a liberdade de manifestação do pensamento, mas, é claro, ela não é absoluta. Se não for bem exercida, aquele que “falar o que quiser” poderá “escutar o que não desejar”, além de ser compelido a pagar indenização, ser alvo de apuração criminal e experimentar vários outros aborrecimentos... O juiz foi “malhado como Judas”, mas, oficialmente, no entendimento de vários desembargadores do órgão especial do Tribunal e do relator do recurso da agente de trânsito, agiu acertadamente diante do excesso, o que tem de ficar bem claro. E nem se diga que o Tribunal o “protegeu”, pois ao decidir outro caso, absolveu uma jornalista a quem o juiz imputava a prática de crimes contra a sua honra. É lamentável que a seriedade da atuação do Tribunal tenha sido colocada em xeque por opiniões desprovidas de fundamentos técnicos e fáticos e muitas vezes tendenciosas e sensacionalistas. Não tenho a intenção de defender o “Judas”, mas apenas de expor a verdade apurada.
            Que cada um de nós possa, a partir do que foi exposto, avaliar melhor a necessidade e a conveniência de “arremessar pedras” por meio das redes sociais em vez de usá-las para difusão de conhecimento, de encorajamento e de boas práticas!
Adriano Rodrigo Ponce de OIiveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
(publicado no Diário de Penápolis de 27/11/2014 e na Revista Comunica de dez/2014)



12 de dez. de 2014

Pane jornalística


            Dias atrás tive acesso à edição de 11/11/2014 do jornal “O Dia - Marília” e fiquei mais uma vez estarrecido...
            Digo “mais uma vez” porque recentemente tratei das críticas feitas de forma inconsequente ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro por conta do julgamento do caso que envolveu o juiz e a agente de trânsito, e, na ocasião, enfatizei que infelizmente a imprensa nem sempre procura se informar de detalhes que envolvem as decisões do Poder Judiciário e acaba ela mesma promovendo injustiças com pessoas e com a própria justiça.
            O editorial da referida edição, intitulado “Pane Jurídica”, expressão que inspirou o tema deste artigo, começou afirmando que “tem algo de errado com a Justiça no Brasil” e, dessa forma, levianamente ofendeu milhares de profissionais compromissados com o que fazem.
            A crítica teve a ver, segundo consta, com a ordem de soltura prolatada pelo mesmo Tribunal fluminense: “Agora, também no Rio de Janeiro, desembargadores colocam em liberdade acusado de chefiar o tráfico que já tinha mandado de prisão contra si”.
            As ofensas e os equívocos prosseguiram: “Ao que parece, os nobres magistrados estão em ‘pane’. Algo de muito errado está acontecendo. Será que é sobrecarga de trabalho? Peças processuais mal feitas que dificultam o entendimento dos juízes ou é ‘apenas’ prevaricação? (...) Ninguém observou que o tal Orelha, que é o vulgo do traficante Edson Silva de Souza, tinha contra si um outro mandado de prisão e por isso não poderia ser solto? (...) O alvará de soltura foi expedido, mesmo havendo um outro mandado de prisão contra o acusado” (sic).
            Como sempre faço, vou tentar desmistificar essas idéias equivocadas...
            Em primeiro lugar, o crime de prevaricação consiste em “retardar ou deixar de praticar, INDEVIDAMENTE, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal” (artigo 319 do Código Penal).     Havendo escolhas legais, afasta-se o crime. Só se consuma se houver dolo na ação e na finalidade. O erro, a preguiça, a deficiência e a desídia não são suficientes. Determinar a expedição de alvará de soltura nem de longe se encaixa na definição legal.
            Mas o mais importante é desfazer um engano ainda mais grave do redator. Quando o juiz analisa determinado caso, tem a liberdade de optar pela soltura independentemente do que se passa em outra investigação e do que já decidiu outro magistrado. Não está vinculado a nada e nem a ninguém, mas apenas à sua consciência e ao seu entendimento, que é livre, muito embora tenha de ser motivado. Nada impede o juiz de conceder liberdade mesmo que outro juízo tenha imposto ou mantido a prisão do mesmo investigado. Quem tem o dever de verificar se existe alguma ordem de prisão que impeça a soltura é a autoridade policial ou o diretor do estabelecimento prisional. E é isso que está sendo averiguado: qual foi a razão de a soltura ter se efetivado pela equipe da carceragem...
            Em resumo: os mandados de prisão e alvarás de soltura são cadastrados em sistema informatizado e remetidos para a mesma autoridade administrativa. Cabe a esta autoridade, antes de dar cumprimento ao alvará de soltura, verificar se pode colocar a pessoa em liberdade. Se existir determinação de prisão a ser cumprida, a autoridade administrativa deve certificar cumprimento ao alvará de soltura, mas, ao mesmo tempo, manter o indivíduo custodiado, de tudo informando o Judiciário.
            Assim sendo, não é possível que o juiz de um processo desfaça a decisão de prisão exarada pelo juiz de outro processo. Cada magistrado age de forma independente e a convicção da necessidade de manter a prisão antes da condenação é formada a partir do que consta em cada processo. No Direito costumamos dizer que “o que não está nos autos, não está no mundo”, ou seja, que a convicção não pode ser formada a partir de elementos externos. O juiz não pode se deixar levar pelo que a imprensa e/ou a população desejam que aconteça, mas tomar a sua decisão de forma isenta e técnica. A imprensa e a população devem respeitar a decisão ou pelo menos comentá-la com educação, responsabilidade e, preferencialmente, depois de consultar alguém do ramo. Isso porque se o Direito já é bastante complexo para quem lida cotidianamente com ele, a possibilidade de o leigo fazer um comentário impertinente é muito grande.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
(publicado no Correio de Lins de 10/12/2014 e no Diário de Penápolis de 11/12/2014)

Observação: este texto complementa o artigo "Malhação de Judas", que será publicado em breve neste blog, assim que a edição de dezembro da revista Comunica for distribuída.

8 de dez. de 2014

Internação do adolescente infrator


            Os mais desinformados costumam comentar, em tom de deboche, que “a Polícia prende e a Justiça solta...”. Essa assertiva até que tem fundo de verdade: realmente a Justiça não prende ninguém, mas autoriza ou determina a prisão (não executa o ato de custodiar); e realmente a Polícia não solta, a não ser em situações excepcionais, por ex., quando o preso recolhe a fiança arbitrada pelo delegado e mantida pelo magistrado; ou quando se vence o prazo de custódia temporária.
            De qualquer forma, o objetivo aqui não é comparar competências e atribuições, mas apenas esclarecer como a internação do adolescente infrator tem sido tratada pelo Judiciário e tentar desmistificar a absurda idéia, cultivada por alguns, de que juízes não estão preocupados com a segurança da população.
            Primeiramente, é preciso deixar claro que juiz não é “justiceiro”, ou seja, que ele tem o dever de atuar e de decidir, como é sabido, conforme lhe faculte a lei. Não pode fazer o que bem entender... Não raramente acaba tendo de fazer certas concessões a contragosto, pois também é cidadão e também se aflige com o avanço da criminalidade. Às vezes liberta porque não tem opção, ainda que pessoalmente entenda injusto esse desfecho.
            Dentre as medidas aplicáveis ao adolescente infrator está a internação provisória, solução parecida com a prisão preventiva para o adulto criminoso.
            Dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal 8.069/1990):
            a) Art. 108 – A internação, antes da sentença, pode ser determinada pelo prazo máximo de quarenta e cinco dias. Parágrafo único: A decisão deverá ser fundamentada e basear-se em indícios suficientes de autoria e materialidade, demonstrada a necessidade imperiosa da medida;
            a) Art. 121 - A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento;
            b) Art. 122 – A medida de internação só poderá ser aplicada quando: I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa; II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves; III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.
            Muitas vezes as pessoas ficam indignadas quando um adolescente detido por ato equiparado ao tráfico de drogas acaba sendo prontamente liberado. Ocorre que muito embora o tráfico seja delito equiparado aos hediondos e gere inegável risco à coletividade, os atos executórios não envolvem violência ou grave ameaça. Assim sendo, ainda que existam fortes elementos de convicção sobre o envolvimento do jovem no tráfico, segundo o Supremo, a internação deve ser excepcional. Em suma: o tráfico promovido por adolescente é gravíssimo, mas o juízo não pode se desviar do que está escrito no Estatuto.
            Era relativamente comum depararmos com custódias provisórias de adolescentes investigados por infrações do gênero, mas os Tribunais superiores acabaram pacificando o entendimento de que a gravidade da traficância não justifica, por si só, a privação da liberdade. O Supremo, por exemplo, em 2011, ao decidir o Habeas Corpus 94.447, cuja relatoria foi do Min. Luiz Fux, enfatizou que o ECA reconhece o caráter extremo da custódia ao condicioná-la aos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (artigo 121) e ao prever a sua subsidiariedade, determinando que “em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada” (artigo 122, § 2º). Enfatizou que em razão desse caráter extremo, a internação se justifica nas hipóteses taxativamente elencadas no artigo 122, que deve ser interpretado restritivamente.
            O posicionamento da mais alta Corte de Justiça do País, como se vê, longe de retratar leniência com a delinquência juvenil, apenas fez valer a opção daqueles que nós mesmos escolhemos como legisladores.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
(publicado no Diário de Penápolis de 4/12/2014 e no Correio de Lins de 6/12/2014)