Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

31 de ago. de 2016

STF autoriza cumprimento de pena antes da condenação definitiva

De maneira geral, a apuração de um crime começa na primeira instância, onde o caso é julgado por um magistrado estadual ou federal (a depender do delito), ou seja, submetido a um juízo monocrático. Cabe recurso para um grupo de desembargadores do tribunal estadual ou federal ou mesmo para um grupo de juízes do Colégio Recursal (no caso de delito de menor potencial ofensivo). A análise na segunda instância, portanto, é feita por um juízo colegiado e prevalece a decisão da maioria. Em algumas situações excepcionais, podem ser admitidos recursos aos chamados tribunais superiores: recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça e/ou recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal. Tais recursos, porém, não possuem efeito suspensivo, ou seja, o ato de recorrer, por si só, não suspende a decisão do tribunal inferior.
A Constituição Federal trata do princípio da presunção da inocência (ou presunção da não-culpa, como alguns preferem) no artigo 5º, inciso LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O trânsito em julgado acontece quando não cabe mais recurso da condenação.
O Supremo Tribunal Federal vinha decidindo pela impossibilidade cumprimento de pena antes do trânsito em julgado. Afinal, alguns réus conseguiam absolvições no STJ e no STF. Mas sempre houve quem defendesse que um percentual muito pequeno de absolvições não justificava que a maciça maioria de criminosos continuasse se servindo de recursos (muitos, desprovidos de bons argumentos) para protelarem o cumprimento das suas penas, em prejuízo de toda a coletividade.
Aos 17/2/2016, por ocasião do julgamento do “Habeas Corpus” 126.292/SP, os onze ministros do Supremo, por maioria (7x4), alteraram o entendimento do colegiado e decidiram que nada impede o início da execução da pena imposta pela segunda instância, ainda que o acusado recorra para o STJ ou para o próprio STF.
O Ministro Lewandowski, que tinha ficado vencido naquela votação, ao presidir o plantão judiciário de julho, sob o argumento de que a prisão, na pendência de julgamento de recurso, é ofensiva ao princípio da presunção da inocência, autorizou a soltura de um prefeito nos autos do “Habeas Corpus” 135.752. Entretanto, ao assumir a presidência desse processo, o Ministro Edson Fachin revogou a ordem de libertação e confirmou a possibilidade de cumprimento da pena.
Fachin, ao reafirmar a tese adotada em fevereiro, salientou que as instâncias ordinárias sempre esgotam o exame de fatos e provas e que a definição de culpa por um juiz e, em seguida, por “pelo menos três magistrados em estágio adiantado de suas carreiras”, é bastante para o início do cumprimento da pena. Prestigiou os tribunais inferiores: “As instâncias ordinárias, portanto, são soberanas no que diz respeito à avaliação das provas e à definição das versões fáticas apresentadas pelas partes”. Resumiu a posição mais recente do Supremo: “Em razão disso, fixou-se a tese no sentido de que: ‘A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência”. Ressaltou que era necessário que a mais alta Corte do País se mantivesse coerente com o que a maioria tinha resolvido. Ponderou que não permitir o cumprimento de pena definida por tribunal significaria “conferir efeito paralisante à eficácia de absolutamente todas as condenações criminais assentadas em segundo grau”.
Há sedutores argumentos em ambos os sentidos. De qualquer forma, ainda que seja cedo para dizer que o Supremo pacificará o debate, parece provável que a possibilidade de cumprimento da pena depois de condenação em segunda instância passe mesmo a ser amplamente reconhecida.
Estejamos atentos!
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito
Facebook Adriano Ponce Jurídico
www.direitoilustrado.blogspot.com
www.youtube.com/adrianoponce10

(publicado na edição de 11/8/2016 do Diário de Penápolis)
]



O uso das algemas e a Súmula Vinculante 11 do STF

As algemas eram usadas, na antiguidade, por volta do século XVI, para castigar ou humilhar os infratores. Hoje, a finalidade é garantir a segurança pública.
O julgamento do HC nº 91.952 pelo STF originou a Súmula Vinculante 11, que disciplinou o uso das algemas quando houver fundado receio de fuga, resistência, ou perigo à integridade física de terceiros ou do próprio detido. Vejamos: “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
A Lei de Execuções Penais determinou, em seu artigo 199, que a regulamentação do uso das algemas seja feita por decreto federal. Surgiram diversos projetos, mas nenhum prosperou. Segundo o Código de Processo Penal, o uso deve ser excepcional. O Estatuto da Criança e do Adolescente não prevê e nem proíbe o uso algemas, mas há controvérsias devido à ausência de previsão. De um lado, há quem sustente proibição, pois se o Estatuto veda o transporte de adolescente em compartimento fechado de viatura policial, em tese, não admite o uso das algemas, já que em ambas as situações se resguarda a pessoa do investigado. De outro lado, muitos defendem que o emprego das algemas em adolescentes é permitido, desde que justificado pela periculosidade, diante da ausência de proibição legal específica.
O Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, relator do Habeas Corpus 140982-RJ no STJ, refutou nulidade da audiência de apresentação, invocada com base no uso das algemas em um adolescente. Ele estava sendo investigado pela pratica de ato infracional equiparado a homicídio qualificado que, segundo consta, tinha relação com o tráfico de drogas. Sua Excelência entendeu que não houve violação ao disposto na Súmula. O Tribunal Paulista, nos autos da Apelação 0007511-10.2013.8.26.0482, aos 27/7/2016, rejeitou tese de nulidade, tendo a relatora Des. Ivana David ponderado: “Com efeito, não é nula a audiência em razão da manutenção das algemas durante a realização do ato, quando a medida está concretamente justificada, diante da periculosidade do réu e segurança dos cidadãos que transitam pelo Fórum de Presidente Prudente, isto porque para se dirigir até a sala de audiências o recorrente por corredores sempre repletos de pessoas”.
A Súmula Vinculante 11 visa a proteger a honra, a imagem e a intimidade do acusado enquanto a sua culpa não é reconhecida. No plenário do Tribunal do Júri, há quem diga que as algemas podem gerar impressão negativa do réu e influenciar os jurados. O Código de Processo Penal determina: “Art. 474, § 3º Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes”.
Recentemente, o ministro Luiz Edson Fachin, nos autos da Reclamação 22.557 – STF, anulou audiência de instrução e julgamento pelo fato de o réu ter sido mantido algemado durante os atos processuais sem a fundamentação adequada, o que contrariou a Súmula Vinculante 11. A defesa do réu, que era acusado de tráfico de drogas, havia requerido ao juiz da Vara Criminal de São Gonçalo que as algemas fossem retiradas, mas o pedido havia sido negado.
O uso injustificado poderá gerar responsabilização do agente e nulidade da prisão. Se ele tiver tido por objetivo causar dor, pavor ou sofrimento, com o fito de obter informação, declaração ou confissão, poderá até responder por tortura.
A edição da súmula era desnecessária. Há quem critique o surgimento dela depois da prisão de uma pessoa influente (banqueiro Daniel Dantas). Agentes públicos não conseguem cumpri-la sem colocar em risco à sua integridade física. É impossível prever o que se passa na cabeça de um ser humano que almeja a liberdade.
A Suprema Corte dos Estados Unidos adota rol ampliado para o emprego das algemas e prestigia a análise subjetiva do estado de comportamento, dos antecedentes e da periculosidade, o que contribui para a redução de riscos para o agente policial e terceiros.
A exigência da fundamentação, de qualquer forma, deveria continuar, a fim de se evitarem arbitrariedades.
Carlos Alexandre de Souza
Graduando em Direito pelo Unisalesiano – Lins(SP)
(supervisão de Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira – Juiz de Direito)

(publicado na edição de 18/8/2016 do Diário de Penápolis)



A cobrança diferenciada ao usuário de cartão de crédito é abusiva

Ao analisar o Recurso Especial 1.479.039, o Superior Tribunal de Justiça, em outubro de 2015, confirmou a abusividade de uma prática relativamente comum: desconto para pagamento em dinheiro ou cheque em detrimento do pagamento por meio de cartão de crédito.
O Ministro Humberto Martins enfatizou: “O preço à vista deve ser estendido também aos consumidores que pagam em cartão de crédito, os quais farão jus, ainda, a eventuais descontos e promoções porventura destinados àqueles que pagam em dinheiro ou cheque”.
O acórdão destacou que o pagamento por meio de cartão soluciona de imediato a pendência e reflete ampla quitação, pois, a partir de então, a administradora honrará o compromisso. Pouco importa que o valor venha a ser recebido posteriormente. Para se isentar de riscos, o estabelecimento comercial repassa à operadora um percentual do valor pago pelo consumidor, mas, ao optar pelo recebimento por tal meio (não é obrigado a tanto), segundo ficou decidido, “incrementa a atividade comercial, aumenta as vendas e obtém lucros, haja vista a praticidade do cartão de crédito, que o torna uma modalidade de pagamento cada vez mais costumeira”. Não se pode poder dizer, por isso, que o comerciante, quando paga a administradora do cartão, sofre prejuízo.
A tentativa de empresários mineiros de evitar autuações pelo Procon naufragou, pois o STJ confirmou que a discriminação da operação que envolve cartão de crédito atrai a incidência de duas previsões legais que protegem o consumidor:
a) Código de Defesa do Consumidor – Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva; X - elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços;
b) Lei Federal 12.529⁄2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: X - discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços; XI - recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, dentro das condições de pagamento normais aos usos e costumes comerciais.
Foram referenciados, no citado julgamento, dois raciocínios expostos pelo Ministro Massami Uyeda nos autos do Recurso Especial 1.133.410⁄RS:
a) “O custo pela disponibilização de pagamento por meio do cartão de crédito é inerente à própria atividade econômica desenvolvida pelo empresário, destinada à obtenção de lucro, em nada referindo-se ao preço de venda do produto final. Imputar mais este custo ao consumidor equivaleria a atribuir a este a divisão de gastos advindos do próprio risco do negócio (de responsabilidade exclusiva do empresário), o que, além de refugir da razoabilidade, destoa dos ditames legais, em especial do sistema protecionista do consumidor”;
b) “O consumidor, pela utilização do cartão de crédito, já paga à administradora e emissora do cartão de crédito taxa por este serviço (taxa de administração). Atribuir-lhe ainda o custo pela disponibilização de pagamento por meio de cartão de crédito, responsabilidade exclusiva do empresário, importa em onerá-lo duplamente (‘in bis idem’) e, por isso, em prática de consumo que se revela abusiva”.
Estejamos atentos!
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito
Facebook Adriano Ponce Jurídico
www.direitoilustrado.blogspot.com
www.youtube.com/adrianoponce10

(publicado na edição de 4/8/2016 do Diário de Penápolis)


“Pirâmide” x “Marketing multinível”

Dezenas de denúncias de “pirâmides” estão sendo investigadas no Brasil.
O “site” governamental www.portaldoinvestidor.gov.br há algum tempo disponibilizou informações sobre como diferenciar “pirâmide” de “marketing multinível”. Segundo foi divulgado, a principal característica da “pirâmide” é a reduzida importância dada à efetiva comercialização de produtos. Não existe tanta preocupação com treinamento em vendas. Não importa se o interessado em fazer parte tenha perfil de vendedor. Nas “pirâmides”, o interesse maior do integrante é convencer outros a se tornarem ramificações dele. Há exigência de considerável aporte financeiro e aquele que se situa acima do novo membro lucra com isso. O retorno está mais atrelado à integração de novos indivíduos, ainda que algum ganho, de menor expressão, possa derivar da venda de mercadoria. Na prática, em pouco tempo os elos da corrente se partirão e alguns poucos serão beneficiados em detrimento de muitos lesados que não conseguirão recuperar o que “investiram”. Isso porque vai ficando difícil cadastrar gente nova, seja pelo descrédito, seja pelo valor exigido.
Nesse sentido se pronunciou o Segundo o Superior Tribunal de Justiça (STJ): “As operações denominadas de "pirâmide financeira", sob o disfarce de "marketing multinível", caracterizam-se por oferecer a seus associados uma perspectiva de lucros, remuneração e benefícios futuros irreais, cujo pagamento depende do ingresso de novos investidores ou de aquisição de produtos para uso próprio, em vez de vendas para consumidores que não são participantes do esquema” (CC 146.153/SP, 11/5/2016).
No “marketing multinível” ou de rede, o retorno financeiro do cadastrado basicamente deriva do seu esforço em vender, ainda que ele possa receber alguma “comissão” de outros que venha a inserir no grupo. Normalmente não se cobra pelo ingresso e o revendedor se reporta diretamente ao fabricante do produto. O dinheiro é injetado por consumidores (estranhos ao grupo) e não por novos integrantes. Há geração de tributos. Não há ilegalidade, segundo se tem decidido, muito embora o modelo também receba críticas de quem afirme que a maior parte dos revendedores já não consegue experimentar lucro porque muita gente atualmente compra pela Internet.
Nem sempre é simples detectar ilegalidade. Isso requer aprofundada análise do funcionamento. É preciso ter cautela ao “disparar” que determinada prática configura “pirâmide”.
O Tribunal de Justiça paulista tem afirmado que "corrente" ou "pirâmide" configura o seguinte ilícito penal: “Art. 2º da Lei Federal 1.521/1951: “IX - obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos ("bola de neve", "cadeias", "pichardismo" e quaisquer outros equivalentes) –  Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa”. Nos autos da Apelação 1002958-24.2014.8.26.0010, ficou resolvido: “Contrato de concessão de uso de loja virtual e de agente de vendas - Negócio realizado com a falsa aparência de marketing multinível e que encerra verdadeira ilicitude conhecida por corrente ou pirâmide fraudulenta (obrigar o contratante a arregimentar novos subscritores para receber bonificações compensatórias do valor pago para ingresso na cadeia que favorece exclusivamente quem vende a ilusão do lucro fácil) – Prática condenada (art. 2º, IX, da Lei 1521/51) e que não sobrevive com a cumplicidade da internet, por falta de boa-fé objetiva quanto ao dever “post factum finitum” – Precedentes do Tribunal, com a rescisão dos contratos (art. 166, II, do CC), obrigando a ré em devolver a quantia paga, atualizada”. No mesmo sentido: Apelações 0004092-89.2010.8.26.0157; 0032019-21.2008.8.26.0506 e 9084908-22.2009.8.26.0000. Em muitos caos (inclusive nos citados), os invocados danos morais não tem sido reconhecidos. Ao julgar a Apelação 0000716-36.2008.8.26.0070, o TJSP ponderou: “Danos morais não configurados - Autores que aderiram voluntariamente ao negócio e também não se cercaram de nenhuma cautela, tudo sob a promessa de lucro fácil, o que deveria ser visto com reservas”.
O risco é bastante conhecido, mas de vez em quando as “pirâmides” ressurgem. A expectativa de ganho e o bom trabalho de convencimento acabam “cegando” as pessoas. Elas acabam se convencendo de que é possível alcançar riqueza rapidamente e sem muito esforço. Deixam de investir o seu tempo e a sua capacidade em projetos de efeitos certos e duradouros como a busca de formação superior, o aprimoramento profissional ou a preparação para um bom concurso público. Desenvolvem reduzida tolerância às notícias e debates sobre o tema e se insurgem facilmente contra postagens em redes sociais, ainda que não digam respeito, exatamente, ao seu grupo. O seu grau de envolvimento e de cobiça é tamanho que, diante de um texto como este, por exemplo, de caráter geral e meramente informativo, mas que pode, por ser indutor de reflexão, desestimular novos cadastramentos e, em consequência, afetar lucro quem já está no “jogo”, “torcem o nariz” e não raramente demonstram agressividade incomum. Esse pode ser o maior sinal de que “mergulharam”, sem suficiente percepção, naquilo que consideraram que tinha pouca profundidade, mas que, em verdade, correm risco de se afogar...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito
Facebook Adriano Ponce Jurídico
www.direitoilustrado.blogspot.com
www.youtube.com/adrianoponce10

(publicado na edição de 28/7/2016 do Diário de Penápolis)



Ruídos produzidos por cães: “cada cabeça é uma sentença...”

No dia 10/7/2016, o “site” Consultor Jurídico exibiu entrevista intitulada “Os direitos nem sempre são uma coisa boa e ampliá-los nem sempre é uma boa ideia”. Anna Pintore, professora de Filosofia do Direito na Universidade de Cagliari, discorreu sobre o risco de criação de novos direitos: “... criando novos direitos, criam-se novas obrigações e, assim, se limitam os direitos e a esfera de liberdade”. Salientou que o Judiciário acaba tendo de moldar os direitos, porque a lei nem sempre consegue prevê-los com precisão e porque diante de conflitos é necessário recorrer ao princípio da razoabilidade para eleger o que deve preponderar.
A Constituição e as leis brasileiras materializam muitos direitos, algum deles, com “status” de “fundamentais”. Mas o fato é que as normas normalmente não preveem preponderância, pois a solução de conflitos, via de regra, depende da análise de detalhes de cada situação.
Dias atrás eu postei no Facebook notícia, extraída do mesmo “site”, de que a justiça tinha decidido que a dona de 23 cães teria de se desfazer dos animais e indenizar a vizinha por causa do ruído e do mau cheiro que eles produziam. Segundo foi divulgado, “ao manter o grande número de animais, a mulher abusa de seu direito de possuir animal doméstico, ferindo o direito ao sossego alheio”. Ficou consignado que, por maior que fosse a dedicação da criadora dos cães, ela não teria condições de higienizar o seu quintal e de evitar o barulho. Os desembargadores entenderam que a lei municipal que autorizava criar dez animais não gerava direito para a moradora, pois esse número de cães “não reduziria os transtornos evidentemente causados à vizinhança" (Apelação 0005619-47.2012.8.26.0338).
Houve quem se sensibilizasse e criticasse a determinação judicial de desfazimento dos cães, como era de se esperar, mas sem formulação de proposta de solução efetiva. Parece que a decisão realmente foi acertada.
O juiz enfrenta constantemente esse dilema de ter de dizer qual direito deverá prevalecer. Mesmo que goste de cães, tem de tentar se colocar no lugar de cada parte e decidir com isenção.
Os artigos 1.277 e seguintes do Código Civil tratam do uso anormal da propriedade e suas consequências. Autorizam medidas contra “interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde”. Um deles explica: “Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança”.
O Tribunal de Justiça de São Paulo já manteve multa fixada para clínica veterinária que descumpriu ordem de retirada de cães fora do horário comercial e de adoção de medidas para a cessação dos ruídos (Ag. 2262811-56.2015.8.26.0000). Noutro processo, impôs produção de prova pericial para apurar se “pet shop” que oferecia hospedagem de animais estava produzindo ruídos e mau cheiro excessivos (Ap. 1257297004). Certa vez determinou que a dona de quarenta cães se desfizesse deles gradativamente e ficasse apenas com dez (Ap. 0004810-30.2012.8.26.0153). Mas também já reduziu o número de animais de quinze para três (Ag. 0334465-16.2010.8.26.0000). Um dos acórdãos que pesquisei deixou claro que a reclamação contra os latidos não tinha cunho pessoal, pois outros vizinhos também se sentiam incomodados, e confirmou “antecipação de tutela para obrigar o vizinho a eliminar, no prazo de trinta dias, o latido alto e incessante do seu animal, em horários inusuais, adotando as providências necessárias para a sua cessação ou diminuição a níveis e frequência toleráveis, sob pena de multa de R$ 500,00 diários, limitados a R$ 50.000,00” (Ap. 1010843-46.2013.8.26.0068). Numa situação específica, o TJSP reverteu sentença que tinha determinado o afastamento de cães do corredor que faz divisa com a residência do reclamante: “Desproporcional e desarrazoada a limitação da circulação do animal doméstico em sua própria residência – Aplicação por extensão do dispositivo previsto no artigo 5º, inciso XI, da CF – Diálogo e conciliação como forma de superação do caráter litigioso das relações humanas” (Ap. 0061463-63.2012.8.26.0602). Nesse julgado, a desembargadora relatora aplicou em favor do animal a previsão de que “a casa é asilo inviolável do indivíduo” e transcreveu até a “Prece do Cão” (!) para sensibilizar o autor da ação a tentar solucionar amigavelmente o impasse, o que, no seu entender, poderia ser facilitado se ele tentasse fazer amizade com o canino...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito
Facebook Adriano Ponce Jurídico
www.direitoilustrado.blogspot.com
www.youtube.com/adrianoponce10

(publicado na edição de 21/7/2016 do Diário de Penápolis)