Nos últimos dias atuava no Plantão Policial de Lins
quando policiais militares me apresentaram três indivíduos com os quais tinham
apreendido, em momentos distintos, porções de maconha.
Segundo os policiais, durante a observação de uma casa
apontada como ponto de tráfico, eles conseguiram identificar dois compradores
que foram abordados logo depois das aquisições. Os encontros das drogas em
poder deles e a conseqüente confirmação do tráfico permitiram, ato contínuo,
que a equipe desembarcasse na residência do vendedor e então o detivesse, mesmo
porque estocava mais uma porção da mesma substância.
Em relação ao morador, não havia dúvida de que seria
preso em flagrante por tráfico de drogas, diante da suficiência de elementos de
convicção: provas testemunhais das vendas, apreensões em poder dos clientes e
do próprio vendedor e, principalmente, condenações anteriores pelo mesmo crime.
Além do mais, as embalagens e os formatos das porções encontradas eram
absolutamente idênticos.
No tocante aos compradores, era preciso aferir as suas
condições (traficantes revendedores ou usuários possuidores), e, em princípio,
as quantidades das drogas (43 e 70 gramas, respectivamente) depunham em seu
desfavor, apesar de este não ser o único critério para a distinção entre a
posse para uso e para comércio.
Cientifiquei ambos de que estavam sendo investigados
pelas posses das drogas e que, por isso, tinham o direito constitucional de
permanecerem calados durante as suas inquirições. Disse-lhes, ainda, que se no
passado havia disposição expressa no Código de Processo Penal acerca da
possibilidade de interpretar o eventual silêncio em prejuízo da defesa;
atualmente há previsão justamente do contrário, ou seja, no sentido de que o
silêncio não poderia prejudicá-los, até mesmo em face da previsão do direito ao
silêncio pela Constituição Federal. Informei-lhes, no entanto, que a confissão,
caso optassem por ela, figurava no art. 65 do Código Penal como circunstância
atenuante da pena.
Nenhum deles acatou a sugestão de acionar advogado, em
pese a aparente condição de fazê-lo. Preferiria que o tivessem feito...
À medida que eu os orientava, eles analisavam algumas
possibilidades. Como tinham sido vistos adquirindo drogas, de nada adiantaria
negar tudo. Em contrapartida, se confessassem, aquisições para consumos
próprios, apesar da benesse na fixação de pena, comprometeriam o vendedor,
pessoa que lhes inspirava certo temor pela própria condição de traficante. Sob
outra ótica, se silenciassem sobre as invocadas condições de usuários, poderiam
ser equiparados ao traficante principal, posto que as quantidades apreendidas
lhes permitiriam revender a maconha.
“E agora, doutor?” Era a indagação, muito comum no filme
“Carandiru”, que eu mais ouvia durante aquela madrugada... Expliquei-lhes que
não assumiria a responsabilidade pelas decisões de prestar ou não os
esclarecimentos por escrito, pois, quaisquer que fossem as escolhas, poderiam
vir a ser criticadas e alguém poderia sugerir parcialidade nas minhas
sugestões. Cada pergunta recebida eu devolvia da seguinte maneira: “‘E agora?’,
digo eu, pois tenho a obrigação legal de fundamentar a minha decisão com base
no que está nos autos, e não no que informalmente estão me dizendo...”. Não
posso negar que estava aflito em ter de decidir o que seria de ambos se viessem
optar pelo silêncio... Intimamente, preferia que se pronunciassem duas os
interrogatórios.
Instalou-se uma longa conversa (o registro da opção pelo
silêncio teria sido muito mais prático!) e eu acumulava as condições de
Delegado e de imparcial orientador, principalmente porque a transparência
inspirava confiança aos dois detidos por compra de maconha. E não poderia ser
diferente, pois a função da autoridade policial não é acusar, mas investigar,
tentar se aproximar o quanto possível da verdade e oferecer suas convicções à justiça,
ainda que o investigado se beneficie com o trabalho investigativo.
Ao mesmo tempo em que seriam interessantes formais
indicações do traficante por parte dos dois compradores (que já o tinham
delatado espontânea e informalmente, mas avaliavam o custo-benefício de fazê-lo
por escrito), solidarizava-me com os justificáveis temores que externavam e com
os arrependimentos dos abordados. “Já não tenho mais idade para isso”, “e se
meus clientes descobrirem”, lamentavam os reféns do vício com os olhos
lacrimejantes...
O meu relativo desconforto somente cessou quando ambos decidiram
enfrentar o problema: confessaram as aquisições e as condições de usuários há
longos anos; indicaram o vendedor (que tinha sido preso quase que
concomitantemente, e sem a interferência dos compradores) e justificaram que
para não se exporem tanto no ponto de tráfico, costumavam adquirir maconha que
os abasteceria por algum tempo. Convenci-me de que eram usuários, pois os
únicos antecedentes criminais que ostentavam tratavam justamente da posse de
droga para uso próprio. Acatei as justificativas e ambos foram compromissados e
em seguida liberados. Dessa maneira, auxiliaram a si próprios (sujeitar-se-ão,
caso condenados, a penas condizentes com a sua situação) e à justiça; e o mais
importante é que agiram espontaneamente, cientes dos direitos e das conseqüências
dos seus atos. Talvez eu teria tomado decisão injusta se os dois detidos
tivessem optado por nada dizerem, pois, apesar de o silêncio, como já dito, não
poder ser utilizado para prejudicar, em razão dele eu teria tido certa
dificuldade para justificar a solução que efetivamente tomei.
É por isso que a doutrina dominante defende o caráter
misto do interrogatório: meio de prova e ao mesmo tempo meio de defesa.
Nem sempre a confissão reflete a verdade (há casos de
coação, de tentativa de favorecer terceiro etc.), mas, aliada a outros
indícios, não há dúvida de que demonstra arrependimento de quem confessa e de
que traz tranqüilidade àquele que vai decidir. Assim, em que pesem algumas
divergências doutrinárias, na maioria dos casos deve beneficiar o réu na futura
decisão judicial, inclusive, na minha opinião, quando o investigado, antes
mesmo de ela ocorrer, já fizer jus à sanção mínima prevista em lei, para que se
estimule a sua efetivação.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito e Professor universitário
Facebook Adriano Ponce Jurídico
www.youtube.com/adrianoponce10
(publicado no Getulina Jornal de 26/2/2006, quando o
autor era Delegado de Polícia de Guarantã/SP, e republicado no Diário de
Penápolis de 29/10/2015)