Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

4 de nov. de 2015

E agora, Doutor?

Nos últimos dias atuava no Plantão Policial de Lins quando policiais militares me apresentaram três indivíduos com os quais tinham apreendido, em momentos distintos, porções de maconha.
Segundo os policiais, durante a observação de uma casa apontada como ponto de tráfico, eles conseguiram identificar dois compradores que foram abordados logo depois das aquisições. Os encontros das drogas em poder deles e a conseqüente confirmação do tráfico permitiram, ato contínuo, que a equipe desembarcasse na residência do vendedor e então o detivesse, mesmo porque estocava mais uma porção da mesma substância.
Em relação ao morador, não havia dúvida de que seria preso em flagrante por tráfico de drogas, diante da suficiência de elementos de convicção: provas testemunhais das vendas, apreensões em poder dos clientes e do próprio vendedor e, principalmente, condenações anteriores pelo mesmo crime. Além do mais, as embalagens e os formatos das porções encontradas eram absolutamente idênticos.
No tocante aos compradores, era preciso aferir as suas condições (traficantes revendedores ou usuários possuidores), e, em princípio, as quantidades das drogas (43 e 70 gramas, respectivamente) depunham em seu desfavor, apesar de este não ser o único critério para a distinção entre a posse para uso e para comércio.
Cientifiquei ambos de que estavam sendo investigados pelas posses das drogas e que, por isso, tinham o direito constitucional de permanecerem calados durante as suas inquirições. Disse-lhes, ainda, que se no passado havia disposição expressa no Código de Processo Penal acerca da possibilidade de interpretar o eventual silêncio em prejuízo da defesa; atualmente há previsão justamente do contrário, ou seja, no sentido de que o silêncio não poderia prejudicá-los, até mesmo em face da previsão do direito ao silêncio pela Constituição Federal. Informei-lhes, no entanto, que a confissão, caso optassem por ela, figurava no art. 65 do Código Penal como circunstância atenuante da pena.
Nenhum deles acatou a sugestão de acionar advogado, em pese a aparente condição de fazê-lo. Preferiria que o tivessem feito...
À medida que eu os orientava, eles analisavam algumas possibilidades. Como tinham sido vistos adquirindo drogas, de nada adiantaria negar tudo. Em contrapartida, se confessassem, aquisições para consumos próprios, apesar da benesse na fixação de pena, comprometeriam o vendedor, pessoa que lhes inspirava certo temor pela própria condição de traficante. Sob outra ótica, se silenciassem sobre as invocadas condições de usuários, poderiam ser equiparados ao traficante principal, posto que as quantidades apreendidas lhes permitiriam revender a maconha.
“E agora, doutor?” Era a indagação, muito comum no filme “Carandiru”, que eu mais ouvia durante aquela madrugada... Expliquei-lhes que não assumiria a responsabilidade pelas decisões de prestar ou não os esclarecimentos por escrito, pois, quaisquer que fossem as escolhas, poderiam vir a ser criticadas e alguém poderia sugerir parcialidade nas minhas sugestões. Cada pergunta recebida eu devolvia da seguinte maneira: “‘E agora?’, digo eu, pois tenho a obrigação legal de fundamentar a minha decisão com base no que está nos autos, e não no que informalmente estão me dizendo...”. Não posso negar que estava aflito em ter de decidir o que seria de ambos se viessem optar pelo silêncio... Intimamente, preferia que se pronunciassem duas os interrogatórios.
Instalou-se uma longa conversa (o registro da opção pelo silêncio teria sido muito mais prático!) e eu acumulava as condições de Delegado e de imparcial orientador, principalmente porque a transparência inspirava confiança aos dois detidos por compra de maconha. E não poderia ser diferente, pois a função da autoridade policial não é acusar, mas investigar, tentar se aproximar o quanto possível da verdade e oferecer suas convicções à justiça, ainda que o investigado se beneficie com o trabalho investigativo.
Ao mesmo tempo em que seriam interessantes formais indicações do traficante por parte dos dois compradores (que já o tinham delatado espontânea e informalmente, mas avaliavam o custo-benefício de fazê-lo por escrito), solidarizava-me com os justificáveis temores que externavam e com os arrependimentos dos abordados. “Já não tenho mais idade para isso”, “e se meus clientes descobrirem”, lamentavam os reféns do vício com os olhos lacrimejantes...
O meu relativo desconforto somente cessou quando ambos decidiram enfrentar o problema: confessaram as aquisições e as condições de usuários há longos anos; indicaram o vendedor (que tinha sido preso quase que concomitantemente, e sem a interferência dos compradores) e justificaram que para não se exporem tanto no ponto de tráfico, costumavam adquirir maconha que os abasteceria por algum tempo. Convenci-me de que eram usuários, pois os únicos antecedentes criminais que ostentavam tratavam justamente da posse de droga para uso próprio. Acatei as justificativas e ambos foram compromissados e em seguida liberados. Dessa maneira, auxiliaram a si próprios (sujeitar-se-ão, caso condenados, a penas condizentes com a sua situação) e à justiça; e o mais importante é que agiram espontaneamente, cientes dos direitos e das conseqüências dos seus atos. Talvez eu teria tomado decisão injusta se os dois detidos tivessem optado por nada dizerem, pois, apesar de o silêncio, como já dito, não poder ser utilizado para prejudicar, em razão dele eu teria tido certa dificuldade para justificar a solução que efetivamente tomei.
É por isso que a doutrina dominante defende o caráter misto do interrogatório: meio de prova e ao mesmo tempo meio de defesa.
Nem sempre a confissão reflete a verdade (há casos de coação, de tentativa de favorecer terceiro etc.), mas, aliada a outros indícios, não há dúvida de que demonstra arrependimento de quem confessa e de que traz tranqüilidade àquele que vai decidir. Assim, em que pesem algumas divergências doutrinárias, na maioria dos casos deve beneficiar o réu na futura decisão judicial, inclusive, na minha opinião, quando o investigado, antes mesmo de ela ocorrer, já fizer jus à sanção mínima prevista em lei, para que se estimule a sua efetivação.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito e Professor universitário
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(publicado no Getulina Jornal de 26/2/2006, quando o autor era Delegado de Polícia de Guarantã/SP, e republicado no Diário de Penápolis de 29/10/2015)