Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

5 de jan. de 2015

Acidente de trânsito com vítima e representação


            O Estado normalmente exerce os seus poderes investigativo e punitivo sem considerar a vontade da pessoa ofendida. Os crimes são investigados a partir de quando chegam ao conhecimento de alguma autoridade (normalmente a autoridade policial). A partir daí o Ministério Público avalia os elementos de convicção colhidos e se encontrar prova da materialidade e indícios de autoria, oferece denúncia para dar início à ação penal. Isso acontece, via de regra, mesmo que a vítima não se interesse pela responsabilização. De nada adianta, por ex., a vítima dizer que não deseja que o ladrão seja punido, pois é do interesse da sociedade que quem atente contra o patrimônio alheio seja responsabilizado para que se previnam outras investidas e se reprima o deslize. Mais recentemente o Supremo Tribunal Federal decidiu, inclusive, que nos casos violência doméstica e familiar contra a mulher não se deve exigir representação da vítima, ou seja, que a apuração não deva depender de qualquer condição. Isso porque a nossa legislação, interpretada no seu conjunto, tem sido alterada de forma a conter esse tipo de violência e depender da manifestação da vítima, que muitas vezes é coagida ou é dependente do agressor, seria um retrocesso.
            Em algumas situações excepcionais a apuração de um crime depende da representação da vítima. Isso acontece quando a infração não é tão grave (ex. lesão leve, lesão culposa) ou quando a investigação pode gerar constrangimento à vítima (ex. estupro de pessoa maior de 18 anos e capaz). Nesses casos o legislador entende que o interesse da sociedade em ver um crime apurado deve dar lugar à análise do interesse da própria pessoa ofendida, que pode preferir ser indenizada ou mesmo não ter a sua intimidade exposta.
            A lesão culposa (não intencional) decorrente de acidente de trânsito, qualquer que seja a sua gravidade, é delito cuja investigação e apuração dependem de representação da pessoa lesionada. Isso somente não acontece se o condutor culpado estiver: (i) sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência; (ii) participando, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística, de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente; (iii) transitando em velocidade superior à máxima permitida para a via em 50 km/h. A regra, portanto, é a apuração condicionada à representação: a pessoa lesionada precisará manifestar interesse pela investigação do fato, a fim de que, se ficar demonstrada a responsabilidade do condutor, seja possível puni-lo.
            Mas a lei prevê que se o condutor firmar compromisso de reparação dos danos, ou seja, fizer acordo com a vítima, o acordo (que pode ser firmado tanto na chamada audiência preliminar quanto extrajudicialmente), depois de judicialmente homologado, acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação.
            A vítima pode estar muito mais interessada em ser indenizada pelos prejuízos de maneira mais célere e sem a necessidade de recorrer ao Judiciário do que propriamente pela responsabilização penal do condutor. Quanto a este, a composição (acordo) evitará a apuração e consequências que poderiam advir de futura condenação (maus antecedentes, reincidência etc.). A solução é excelente para ambos, pois evitarão, inclusive, despesas que teriam para litigar posteriormente.
            Acontece que a vítima deve estar atenta para o prazo. A representação deve ser ofertada no prazo de seis meses a partir do conhecimento da autoria do delito. Recomenda-se que não ofereça a representação de imediato, ou seja, por ocasião do registro da ocorrência, a não ser que a vontade de ver o outro investigado já surja e prepondere em relação à intenção de ressarcimento. A partir daí a pessoa prejudicada poderá manter contato com o condutor supostamente culpado para tratar da indenização. Se ambos concordarem sobre a forma de reparação dos danos, o acordo deverá ser escrito, prever minuciosamente valores e prazos, e deverá ser assinado pelas partes e, de preferência, por testemunhas. Esse documento trará segurança para a pessoa prejudicada, que a partir de então terá mais facilidade para satisfazer a sua pretensão (não precisará mais discutir a responsabilidade e nem o valor, mas apenas buscar a satisfação do montante); bem como para o condutor culpado, que evitará antecedente criminal (uma vez que não correrá risco de ser criminalmente condenado). De certa forma, a vítima, dentro do prazo de seis meses, estará fortalecida para exigir a reparação dos danos (terá uma “carta na manga”), pois contará com a possibilidade de representar contra o condutor. Decorrido esse prazo decadencial, que não se interrompe por razão alguma, se não tiver havido representação, ou seja, se a vítima não tiver manifestado de forma inequívoca à autoridade policial a intenção de ver o fato apurado na esfera criminal, haverá extinção da punibilidade, ou seja, o Estado nada mais poderá fazer. Aí restará para a vítima a possibilidade de ajuizar ação indenizatória, quando então o condutor, evidentemente, poderá exercer a sua ampla defesa e terá condições de demonstrar, principalmente, que não teve culpa. A vítima, portanto, não pode vacilar.
            O texto não tem o condão de esgotar o assunto, mas, em linhas gerais, são esses os possíveis desdobramentos jurídicos de um acidente de trânsito que resulta lesão não intencional.
Adriano Rodrigo Ponce de OIiveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
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(publicado no Diário de Penápolis e no Correio de Lins)