O Estado normalmente exerce os seus
poderes investigativo e punitivo sem considerar a vontade da pessoa ofendida.
Os crimes são investigados a partir de quando chegam ao conhecimento de alguma
autoridade (normalmente a autoridade policial). A partir daí o Ministério
Público avalia os elementos de convicção colhidos e se encontrar prova da
materialidade e indícios de autoria, oferece denúncia para dar início à ação
penal. Isso acontece, via de regra, mesmo que a vítima não se interesse pela
responsabilização. De nada adianta, por ex., a vítima dizer que não deseja que
o ladrão seja punido, pois é do interesse da sociedade que quem atente contra o
patrimônio alheio seja responsabilizado para que se previnam outras investidas
e se reprima o deslize. Mais recentemente o Supremo Tribunal Federal decidiu,
inclusive, que nos casos violência doméstica e familiar contra a mulher não se
deve exigir representação da vítima, ou seja, que a apuração não deva depender
de qualquer condição. Isso porque a nossa legislação, interpretada no seu
conjunto, tem sido alterada de forma a conter esse tipo de violência e depender
da manifestação da vítima, que muitas vezes é coagida ou é dependente do
agressor, seria um retrocesso.
Em algumas situações excepcionais a
apuração de um crime depende da representação da vítima. Isso acontece quando a
infração não é tão grave (ex. lesão leve, lesão culposa) ou quando a
investigação pode gerar constrangimento à vítima (ex. estupro de pessoa maior
de 18 anos e capaz). Nesses casos o legislador entende que o interesse da
sociedade em ver um crime apurado deve dar lugar à análise do interesse da
própria pessoa ofendida, que pode preferir ser indenizada ou mesmo não ter a
sua intimidade exposta.
A lesão culposa (não intencional)
decorrente de acidente de trânsito, qualquer que seja a sua gravidade, é delito
cuja investigação e apuração dependem de representação da pessoa lesionada.
Isso somente não acontece se o condutor culpado estiver: (i) sob a influência
de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência;
(ii) participando, em via pública, de corrida, disputa ou competição
automobilística, de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo
automotor, não autorizada pela autoridade competente; (iii) transitando em
velocidade superior à máxima permitida para a via em 50 km/h. A regra,
portanto, é a apuração condicionada à representação: a pessoa lesionada precisará
manifestar interesse pela investigação do fato, a fim de que, se ficar
demonstrada a responsabilidade do condutor, seja possível puni-lo.
Mas a lei prevê que se o condutor
firmar compromisso de reparação dos danos, ou seja, fizer acordo com a vítima,
o acordo (que pode ser firmado tanto na chamada audiência preliminar quanto
extrajudicialmente), depois de judicialmente homologado, acarreta a renúncia ao
direito de queixa ou representação.
A vítima pode estar muito mais
interessada em ser indenizada pelos prejuízos de maneira mais célere e sem a
necessidade de recorrer ao Judiciário do que propriamente pela
responsabilização penal do condutor. Quanto a este, a composição (acordo)
evitará a apuração e consequências que poderiam advir de futura condenação
(maus antecedentes, reincidência etc.). A solução é excelente para ambos, pois
evitarão, inclusive, despesas que teriam para litigar posteriormente.
Acontece que a vítima deve estar
atenta para o prazo. A representação deve ser ofertada no prazo de seis meses a
partir do conhecimento da autoria do delito. Recomenda-se que não ofereça a
representação de imediato, ou seja, por ocasião do registro da ocorrência, a
não ser que a vontade de ver o outro investigado já surja e prepondere em
relação à intenção de ressarcimento. A partir daí a pessoa prejudicada poderá
manter contato com o condutor supostamente culpado para tratar da indenização. Se
ambos concordarem sobre a forma de reparação dos danos, o acordo deverá ser
escrito, prever minuciosamente valores e prazos, e deverá ser assinado pelas
partes e, de preferência, por testemunhas. Esse documento trará segurança para
a pessoa prejudicada, que a partir de então terá mais facilidade para
satisfazer a sua pretensão (não precisará mais discutir a responsabilidade e
nem o valor, mas apenas buscar a satisfação do montante); bem como para o
condutor culpado, que evitará antecedente criminal (uma vez que não correrá
risco de ser criminalmente condenado). De certa forma, a vítima, dentro do
prazo de seis meses, estará fortalecida para exigir a reparação dos danos (terá
uma “carta na manga”), pois contará com a possibilidade de representar contra o
condutor. Decorrido esse prazo decadencial, que não se interrompe por razão
alguma, se não tiver havido representação, ou seja, se a vítima não tiver
manifestado de forma inequívoca à autoridade policial a intenção de ver o fato
apurado na esfera criminal, haverá extinção da punibilidade, ou seja, o Estado
nada mais poderá fazer. Aí restará para a vítima a possibilidade de ajuizar
ação indenizatória, quando então o condutor, evidentemente, poderá exercer a
sua ampla defesa e terá condições de demonstrar, principalmente, que não teve
culpa. A vítima, portanto, não pode vacilar.
O texto não tem o condão de esgotar
o assunto, mas, em linhas gerais, são esses os possíveis desdobramentos
jurídicos de um acidente de trânsito que resulta lesão não intencional.
Adriano
Rodrigo Ponce de OIiveira
Juiz
de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook
Adriano Ponce Jurídico
(publicado
no Diário de Penápolis e no Correio de Lins)