Há alguns dias uma professora da rede pública de
ensino manifestou, nas páginas de um jornal de circulação estadual, o desejo
de, após o falecimento, externar a satisfação de ter exercido tão nobre profissão
em vida através da instalação de uma placa na lápide de sua sepultura. Não
podemos deixar de ressaltar, consideradas as dificuldades materiais e
principalmente o crescente desinteresse dos jovens pelos estudos, que o
exercício do magistério é mais do que uma profissão: é um verdadeiro ideal que
se persegue com muito amor. Refletindo sobre o assunto, imaginei que as
famílias dos policiais, por sua vez, jamais poderiam atender pedido semelhante
ao da professora: a placa indicativa de que em determinado local estivesse
sepultado um policial provavelmente implicaria em danos das mais variadas
espécies. Jamais descansaríamos em paz...
A nossa legislação dedica especial atenção à
proteção do respeito aos mortos.
A Lei Federal 5.250/1.967 – Lei de Imprensa, por
exemplo, prevê que são puníveis a calúnia, a difamação ou a injúria contra a
memória dos mortos.
Mas a proteção legal não pára por aí. O Código Penal
destinou um capítulo especificamente para elencar quatro crimes contra o
respeito aos mortos.
O artigo 209 trata do “impedimento ou perturbação de
cerimônia funerária”. O cantor Zeca Pagodinho retrata, numa de suas músicas,
situação que se adeqüa perfeitamente à previsão legal. Vejamos:
“entrou no velório, pulando a janela, xingou o
defunto, apagou a vela, cantou a viúva, mulher de favela, deu um beijo nela, o
bicho pegou, a Polícia chegou...”.
Qualquer atitude que vise impedir ou perturbar
enterro ou cerimônia funerária pode implicar na imposição de pena de detenção
que pode variar de 1 mês a 1 ano, ou mesmo de pena de multa, além das penas
aplicáveis à violência que eventualmente venha a ser utilizada. Para alguns
juristas, além da vontade livre e consciente, deve estar presente a específica
finalidade de desrespeitar o morto; para outros, não importa a finalidade do
agente. A proteção legal se estende ao velório, à cremação e à translação de
uma sepultura para outra.
O ato de violar ou profanar sepultura ou urna
funerária é punido com mais severidade: reclusão de 1 a 3 anos, e multa (artigo
212). Violar consiste em devassar, abrir sepultura ou urna funerária, não
importa a finalidade (curiosidade, vontade de rever o ente querido etc.).
Profanar significa desrespeitar, ultrajar ou, no lecionar de Aurélio, tratar
com irreverência. Qualquer ação que recaia sobre a cova, o túmulo, os
ornamentos, inscrições e objetos ligados permanentemente ao local onde encontra
o cadáver pode ensejar a responsabilidade penal do(a) autor(a). A subtração de
objetos que enfeitam a sepultura pode configurar furto. Os atos de derrubar
cruz ou enfeite religioso e até mesmo bebida alcoólica sobre símbolo funerário
já foram punidos com base neste artigo.
Se o(a) agente também vier a destruir, subtrair ou
ocultar cadáver ou parte dele cometerá, ainda, o crime previsto no art. 211. A
pena varia de 1 a 3 anos de reclusão e multa. A ocultação de cadáver muitas
vezes sucede a prática de homicídio. Se a subtração tiver por objetivo angariar
cadáver para fins científicos, o fato poderá configurar furto. O exemplo mais
comum do delito em estudo é o rompimento de urna para a remoção de próteses de
ouro. Não é necessário que o(a) autor(a) seja movido por vingança ou cobiça:
basta o desrespeito ao morto.
Por fim, o Código trata do vilipêndio a cadáver ou
suas cinzas (artigo 212). O vilipêndio envolve desprezo, humilhação. Até mesmo
atos que ridicularizem os esqueletos expostos em eventos científicos podem ser
punidos (muitos recebem enfeites ou pontas de cigarros dos visitantes). A
necrofilia (prática de ato sexual com cadáver) também configura o crime.
A proteção da lei tem razão de ser: ninguém merece
passar por tudo isso justamente na hora do merecido descanso... Já bastam as
humilhações que sofremos durante a nossa existência material...
Adriano
Rodrigo Ponce de Oliveira
Delegado
de Polícia, Diretor da Cadeia Pública e da 37ª Ciretran de Getulina(SP)
(texto
publicado na edição de 05/07/2003 do jornal “Espaço Notícias” de Getulina/SP)
Observação
de 21/2/2015: o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que a Lei de Imprensa
(Lei nº 5250/67) é incompatível com a atual ordem constitucional. Confira: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=107402