Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

21 de fev. de 2015

Respeito aos mortos


Há alguns dias uma professora da rede pública de ensino manifestou, nas páginas de um jornal de circulação estadual, o desejo de, após o falecimento, externar a satisfação de ter exercido tão nobre profissão em vida através da instalação de uma placa na lápide de sua sepultura. Não podemos deixar de ressaltar, consideradas as dificuldades materiais e principalmente o crescente desinteresse dos jovens pelos estudos, que o exercício do magistério é mais do que uma profissão: é um verdadeiro ideal que se persegue com muito amor. Refletindo sobre o assunto, imaginei que as famílias dos policiais, por sua vez, jamais poderiam atender pedido semelhante ao da professora: a placa indicativa de que em determinado local estivesse sepultado um policial provavelmente implicaria em danos das mais variadas espécies. Jamais descansaríamos em paz...
A nossa legislação dedica especial atenção à proteção do respeito aos mortos.
A Lei Federal 5.250/1.967 – Lei de Imprensa, por exemplo, prevê que são puníveis a calúnia, a difamação ou a injúria contra a memória dos mortos.
Mas a proteção legal não pára por aí. O Código Penal destinou um capítulo especificamente para elencar quatro crimes contra o respeito aos mortos.
O artigo 209 trata do “impedimento ou perturbação de cerimônia funerária”. O cantor Zeca Pagodinho retrata, numa de suas músicas, situação que se adeqüa perfeitamente à previsão legal. Vejamos:
“entrou no velório, pulando a janela, xingou o defunto, apagou a vela, cantou a viúva, mulher de favela, deu um beijo nela, o bicho pegou, a Polícia chegou...”.
Qualquer atitude que vise impedir ou perturbar enterro ou cerimônia funerária pode implicar na imposição de pena de detenção que pode variar de 1 mês a 1 ano, ou mesmo de pena de multa, além das penas aplicáveis à violência que eventualmente venha a ser utilizada. Para alguns juristas, além da vontade livre e consciente, deve estar presente a específica finalidade de desrespeitar o morto; para outros, não importa a finalidade do agente. A proteção legal se estende ao velório, à cremação e à translação de uma sepultura para outra.
O ato de violar ou profanar sepultura ou urna funerária é punido com mais severidade: reclusão de 1 a 3 anos, e multa (artigo 212). Violar consiste em devassar, abrir sepultura ou urna funerária, não importa a finalidade (curiosidade, vontade de rever o ente querido etc.). Profanar significa desrespeitar, ultrajar ou, no lecionar de Aurélio, tratar com irreverência. Qualquer ação que recaia sobre a cova, o túmulo, os ornamentos, inscrições e objetos ligados permanentemente ao local onde encontra o cadáver pode ensejar a responsabilidade penal do(a) autor(a). A subtração de objetos que enfeitam a sepultura pode configurar furto. Os atos de derrubar cruz ou enfeite religioso e até mesmo bebida alcoólica sobre símbolo funerário já foram punidos com base neste artigo.
Se o(a) agente também vier a destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele cometerá, ainda, o crime previsto no art. 211. A pena varia de 1 a 3 anos de reclusão e multa. A ocultação de cadáver muitas vezes sucede a prática de homicídio. Se a subtração tiver por objetivo angariar cadáver para fins científicos, o fato poderá configurar furto. O exemplo mais comum do delito em estudo é o rompimento de urna para a remoção de próteses de ouro. Não é necessário que o(a) autor(a) seja movido por vingança ou cobiça: basta o desrespeito ao morto.
Por fim, o Código trata do vilipêndio a cadáver ou suas cinzas (artigo 212). O vilipêndio envolve desprezo, humilhação. Até mesmo atos que ridicularizem os esqueletos expostos em eventos científicos podem ser punidos (muitos recebem enfeites ou pontas de cigarros dos visitantes). A necrofilia (prática de ato sexual com cadáver) também configura o crime.
A proteção da lei tem razão de ser: ninguém merece passar por tudo isso justamente na hora do merecido descanso... Já bastam as humilhações que sofremos durante a nossa existência material...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Delegado de Polícia, Diretor da Cadeia Pública e da 37ª Ciretran de Getulina(SP)

(texto publicado na edição de 05/07/2003 do jornal “Espaço Notícias” de Getulina/SP)
Observação de 21/2/2015: o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que a Lei de Imprensa (Lei nº 5250/67) é incompatível com a atual ordem constitucional. Confira: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=107402