João
registrou Ana como filha, mas surgiu dúvida que o levou a ajuizar ação
negatória de paternidade. Decorridos dez anos sem que o caso tivesse desfecho,
designei tentativa de conciliação. A demora teve a ver com sucessivas ausências
da jovem, agora com 16 anos, aos locais de coleta de material para exame de
comparação genética (DNA).
Optei
pela audiência porque confesso que não queria sentenciar o caso sem laudo
pericial. Estava aflito com a possibilidade de vir a decidir pela exclusão da
paternidade por conta da postura de Ana. O processo se encerraria, mas a dúvida
persistiria. Juridicamente, outro desfecho possível seria a manutenção da
paternidade, levando em conta a manifestação de João por ocasião do registro da
filhasem qualquer vício de consentimento e a subsequente ausência de dúvida
fundada (confira-se Recurso Especial 1.003.628/STJ). Mas eu ainda não tinha
opinião formada...
Ana,
mais uma vez, não compareceu. Eu queria entender a dúvida de João. Ele me disse
que quando a filha tinha três anos, discutiu com a mãe dela. Ele teria dito à
mulher: “Fiquei sabendo que já fez abortos no passado. Se um dia ‘tirar’ algum
filho meu, lhe denunciarei”. Ela teria respondido: “Você nunca terá certeza se
algum filho meu será também seu”.
Ponderei
com João que isso parecia pouco para tê-lo feito demandar, especialmente porque
o comentário da mãe de Ana tinha surgido durante acalorada discussão, depois
que ele mesmo havia sido grosseiro com a mulher.
João
se intitulou “um pescador xucro” (rústico, rude) que não conseguiria conviver
com a dúvida.A sua postura inflexível despertou preocupação, mas não custava
perseverar. Prossegui dizendo que a filha, com quem ele tinha algum contato,
fosse biológica ou não, já era parte da sua vida e vice-versa. Incentivei-o a
fortalecer esse vínculo. Expliquei que Ana poderia ser punida sem ter culpa. João
admitiu que a filha não vinha comparecendo para coleta do material porque a mãe
não permitia, mas que a Ana também desejava sanar a dúvida. Afirmei que quando
ela completasse 18 anos, já que estava disposta a fornecer o material, poderia
fazê-lo sem ingerência da mãe, quando então a dúvida poderia ser cabalmente resolvida.
Ressaltei que, caso contrário, se a ação fosse julgada e sobreviesse exclusão definitiva
de paternidade, a jovem experimentaria sofrimento e decepção.
Mexi
com os sentimentos do autor da ação e felizmente fui auxiliado pelo próprio
Advogado dele, também sensível à situação de Ana. O que queríamos era convencer
João a desistir da ação, preservarmos o vínculo da paternidade e, mais do que
isso, mostrar a ele o quanto seria positivo estreitar o relacionamento com Ana.
Fomos auxiliados pela atual esposa de João, que demonstrou afeto pela enteada.
Depois de quase uma hora de conversa que deixou de lado o enfoque jurídico para
tratar de valores familiares, consequências psicológicas dos possíveis
desfechos e até de preceitos religiosos, João começou a considerar a
desistência. Mas o que eu desejava era decisão serena e espontânea. Encerrei a
audiência dizendo a ele que não queria a resposta ali, mas que, se o caso, João
poderia se pronunciar durante o período em que o processo ficaria comigo para sentenciamento.
Decorridos
alguns dias, sobreveio notícia daquilo que parecia impossível: desistência! Eu
e meus assessores comemoramos! Livrei-me da tormentosa decisão que interferiria
sobremaneira na vida de João e Ana, qualquer que fosse ela, e que teria de ser
tomada sem apoio no exame, mas unicamente com base em entendimentos processuais
que jamais pacificariam os corações, inclusive o meu, naquele momento, já
envolvido.
O mais
importante de tudo é que a objetiva e franca conversa, a mim me pareceu,
surtirá outros efeitos positivos, dentre eles o fortalecimento do contato entre
os dois. Penso até que João “sepultará” a sua dúvida em detrimento da
manutenção do vínculo e também para não ferir os sentimentos de Ana, que, no
final das contas, não tinha culpa das diferenças que um dia separaram seus
pais.
A
lição que fica é que ninguém é xucro o suficiente para ser absolutamente
desprovido de amor, solidariedade, compaixão e de outros sentimentos nobres.
Ninguém psicologicamente normal deixa de se colocar no lugar do outro. Compete
a quem está ao redor acreditar na humanidade daquele a quem aconselha; expor
ponderadamente a sensatez de determinada solução e sempre ter esperança na
prevalência do afeto, que tanto deve ser cultivado para que tenhamos uma
sociedade mais fraterna, justa e igualitária.
(usei nomes fictícios)
Adriano Rodrigo Ponce de
Oliveira
Juiz de Direito da 2ª Vara
da Comarca de Penápolis(SP)
Professor do Curso de
Direito do Unisalesiano
(publicado no Correio de Lins de 3/4/2013)