Não é raro depararmos com notícia
de tombamento de caminhão e subsequente apossamento da carga por pessoas que se
aglomeram no local... Essa questão nem sempre é bem explorada no que diz
respeito às consequências jurídicas.
O Direito Penal protege, dentre
outros bens jurídicos, o patrimônio. Assim sendo, o apossamento de algo que não
pertence ao agente normalmente caracteriza infração penal se ele tem o
conhecimento de que está atingindo o patrimônio alheio ou mesmo se ele prevê o
perigo e não se importa em correr o risco.
Quando o apossamento recai sobre
coisa sem dono, abandonada ou doada, evidentemente, não retrata crime contra o
patrimônio. É necessário, contudo, que o agente tenha certeza de que pode ficar
com o bem sem ofender interesse de quem quer que seja.
A coisa que evidentemente ou presumidamente
foi perdida por alguém não é considerada coisa sem dono. A apropriação de coisa
achada é crime previsto no art. 169 do Código Penal. Quem encontra um telefone
celular na via pública, por ex., tem o dever de entregá-lo à autoridade
policial para que seja formalmente apreendido. Uma cópia do auto de apreensão
deverá ser entregue ao cidadão para que ele prove de que tomou a providência prevista
em lei.
É imprescindível que o indivíduo
não tenha dúvida alguma de que determinada coisa foi abandonada para que não
corra risco de responsabilização penal se se apossar dela. Normalmente aquilo
que o morador deposita na calçada, perto do suporte para lixo, por ex.,
aparenta essa condição de abandono e permite apossamento. Diante do caso
concreto, a conduta do agente será detalhadamente analisada para que se
verifique se ele agiu com boa-fé. Em alguns casos, mesmo que se decida pela
ocorrência de crime, poderá haver redução de pena; noutros, afastamento total
da penalidade.
Quando um caminhão se acidenta na
via pública, a carga que se espalha continua tendo dono, ainda que esteja
segurada. Lamentavelmente algumas pessoas se aglomeram e aguardam como
“abutres” que uma subtraia algo para que as demais promovam aquilo que não
posso denominar de outra forma: saque! O mais impressionante é que as pessoas
participam e/ou presenciam aquela cena como se houvesse amparo legal para as
subtrações, ou seja, como se nada de anormal estivesse acontecendo...
Se a carga não estiver segurada,
é claro, continua pertencendo ao transportador. Se estiver segurada e se a
seguradora decidir pelo ressarcimento do prejuízo, incumbirá a ela decidir o
que fará com a mercadoria que não estiver em condições de comercialização. Mas
até que isso aconteça e até que pessoa autorizada manifeste expressamente a
doação, qualquer investida caracterizará furto.
Se duas ou mais pessoas somarem
esforços para o apossamento dos bens, estaremos diante de furto qualificado.
O motorista do caminhão tem o
dever de intervir, solicitar que ninguém mexa na carga do patrão e acionar a
polícia. A omissão injustificada implicará na sua responsabilização. Isso
porque a omissão é penalmente relevante se quem se omite tem o dever legal ou o
dever contratual de evitar o resultado, ou mesmo se contribuiu para o
surgimento do risco. Mesmo se nada subtrair, como se vê, o motorista poderá vir
a responder por furto.
O mesmo raciocínio se aplica ao
policial que se aproxima e presencia as ações dos saqueadores sem se certificar
se as pessoas estavam autorizadas a se apossarem das mercadorias. Ele tem o
dever de proteger o patrimônio e a omissão também implicará na sua
responsabilização pelo resultado da conduta de terceiro. Dificilmente a polícia
não terá o que fazer para evitar o saque. De qualquer forma, se intervir e
houver confronto, quem agir com violência ou grave ameaça para conseguir
perpetrar a subtração praticará roubo, delito bem mais grave do que o furto.
De resto, é preciso que imagens
registradas no local e eventualmente divulgadas pelos meios de comunicação e/ou
por redes sociais sejam utilizadas para a completa e rigorosa apuração dessas
condutas, uma vez que em nada se diferenciam dos furtos a respeito dos quais
esses próprios saqueadores costumam exigir providências das autoridades. Ao
contrário, a subtração de carga espalhada denota considerável grau de
reprovabilidade, já que as ações sucedem infortúnios e demonstram, além da
ganância, falta de solidariedade. Às vezes até sucedem acidentes fatais...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no
Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
(publicado aos 18/6/2015 no
Diário de Penápolis e no Correio de Lins; abordado em entrevista à Rádio Regional Esperança aos 15/6/2015)