Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

20 de jun. de 2015

Carga esparramada tem dono!

Não é raro depararmos com notícia de tombamento de caminhão e subsequente apossamento da carga por pessoas que se aglomeram no local... Essa questão nem sempre é bem explorada no que diz respeito às consequências jurídicas.
O Direito Penal protege, dentre outros bens jurídicos, o patrimônio. Assim sendo, o apossamento de algo que não pertence ao agente normalmente caracteriza infração penal se ele tem o conhecimento de que está atingindo o patrimônio alheio ou mesmo se ele prevê o perigo e não se importa em correr o risco.
Quando o apossamento recai sobre coisa sem dono, abandonada ou doada, evidentemente, não retrata crime contra o patrimônio. É necessário, contudo, que o agente tenha certeza de que pode ficar com o bem sem ofender interesse de quem quer que seja.
A coisa que evidentemente ou presumidamente foi perdida por alguém não é considerada coisa sem dono. A apropriação de coisa achada é crime previsto no art. 169 do Código Penal. Quem encontra um telefone celular na via pública, por ex., tem o dever de entregá-lo à autoridade policial para que seja formalmente apreendido. Uma cópia do auto de apreensão deverá ser entregue ao cidadão para que ele prove de que tomou a providência prevista em lei.
É imprescindível que o indivíduo não tenha dúvida alguma de que determinada coisa foi abandonada para que não corra risco de responsabilização penal se se apossar dela. Normalmente aquilo que o morador deposita na calçada, perto do suporte para lixo, por ex., aparenta essa condição de abandono e permite apossamento. Diante do caso concreto, a conduta do agente será detalhadamente analisada para que se verifique se ele agiu com boa-fé. Em alguns casos, mesmo que se decida pela ocorrência de crime, poderá haver redução de pena; noutros, afastamento total da penalidade.
Quando um caminhão se acidenta na via pública, a carga que se espalha continua tendo dono, ainda que esteja segurada. Lamentavelmente algumas pessoas se aglomeram e aguardam como “abutres” que uma subtraia algo para que as demais promovam aquilo que não posso denominar de outra forma: saque! O mais impressionante é que as pessoas participam e/ou presenciam aquela cena como se houvesse amparo legal para as subtrações, ou seja, como se nada de anormal estivesse acontecendo...
Se a carga não estiver segurada, é claro, continua pertencendo ao transportador. Se estiver segurada e se a seguradora decidir pelo ressarcimento do prejuízo, incumbirá a ela decidir o que fará com a mercadoria que não estiver em condições de comercialização. Mas até que isso aconteça e até que pessoa autorizada manifeste expressamente a doação, qualquer investida caracterizará furto.
Se duas ou mais pessoas somarem esforços para o apossamento dos bens, estaremos diante de furto qualificado.
O motorista do caminhão tem o dever de intervir, solicitar que ninguém mexa na carga do patrão e acionar a polícia. A omissão injustificada implicará na sua responsabilização. Isso porque a omissão é penalmente relevante se quem se omite tem o dever legal ou o dever contratual de evitar o resultado, ou mesmo se contribuiu para o surgimento do risco. Mesmo se nada subtrair, como se vê, o motorista poderá vir a responder por furto.
O mesmo raciocínio se aplica ao policial que se aproxima e presencia as ações dos saqueadores sem se certificar se as pessoas estavam autorizadas a se apossarem das mercadorias. Ele tem o dever de proteger o patrimônio e a omissão também implicará na sua responsabilização pelo resultado da conduta de terceiro. Dificilmente a polícia não terá o que fazer para evitar o saque. De qualquer forma, se intervir e houver confronto, quem agir com violência ou grave ameaça para conseguir perpetrar a subtração praticará roubo, delito bem mais grave do que o furto.
De resto, é preciso que imagens registradas no local e eventualmente divulgadas pelos meios de comunicação e/ou por redes sociais sejam utilizadas para a completa e rigorosa apuração dessas condutas, uma vez que em nada se diferenciam dos furtos a respeito dos quais esses próprios saqueadores costumam exigir providências das autoridades. Ao contrário, a subtração de carga espalhada denota considerável grau de reprovabilidade, já que as ações sucedem infortúnios e demonstram, além da ganância, falta de solidariedade. Às vezes até sucedem acidentes fatais...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
(publicado aos 18/6/2015 no Diário de Penápolis e no Correio de Lins; abordado em entrevista à Rádio Regional Esperança aos 15/6/2015)