Com o surgimento da
Lei 9.099/1995, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais
estaduais, a apuração da lesão corporal leve passou a depender de representação
da vítima, ou seja, de pronunciamento favorável dela no prazo de seis meses
contado do conhecimento da autoria da agressão. O Estado, detentor do poder de
punir, entendeu que em alguns casos as vítimas talvez pudessem querer relevar a
ofensa.
As lesões são
consideradas leves quando não resultam incapacidade para as ocupações habituais
por mais de trinta dias; perigo de vida; debilidade permanente de membro,
sentido ou função; aceleração de parto; incapacidade permanente para o
trabalho; enfermidade incurável; perda ou inutilização do membro, sentido ou
função; deformidade permanente ou aborto.
A Lei 11.340/2006,
mais conhecida como “Maria da Penha”, ao tratar da violência doméstica, previu:
(1) Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a
mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial (...) tomar
a representação a termo, se apresentada; (2) Art. 16. Nas ações penais públicas
condicionadas à representação (...) só será admitida a renúncia à representação
perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes
do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
A interpretação
literal do que foi escrito fez com que a representação da mulher agredida
continuasse sendo exigida e permitiu que ela se retratasse na fase judicial e
dessa forma evitasse a responsabilização do agressor. Na prática, a mulher
oprimida muitas vezes não tinha alternativa e a impunidade continuava a
imperar. A falta de representação da mulher ou a sua retratação em juízo muitas
vezes estimulavam agressores a se tornarem ainda mais violentos.
Mas o Supremo
Tribunal Federal, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.424,
decidiu que a apuração de violência doméstica não depende de pronunciamento
favorável da vítima, ou seja, não carece da “autorização” dela. Em
consequência, afastou a possibilidade de a persecução penal ser interrompida a
pedido da mulher, o que popularmente se denomina “retirar a queixa” (muito
embora “queixa” tenha significado jurídico próprio e diverso). O julgado reconheceu
a natureza incondicionada da ação penal. A deflagração da apuração, portanto,
não está sujeita a condição alguma. A polícia e o Ministério Público podem agir
independentemente da vontade da mulher vitimada. Qualquer pessoa pode denunciar
a ocorrência de violência doméstica, mesmo anonimamente.
Os Ministros que
participaram do julgamento da ADI 4.424 fizeram comentários interessantes. No
entender da Min. Cármen Lúcia, houve mudança
de mentalidade no que se refere aos direitos das mulheres e “é dever do Estado
adentrar ao recinto das ‘quatro paredes’ quando na relação conjugal que se
desenrola ali houver violência”. Para o eminente Min. Ricardo Lewandowski: “as mulheres, como está demonstrado
estatisticamente, não representam criminalmente contra o companheiro ou marido
em razão da permanente coação moral e física que sofrem e que inibe a sua livre
manifestação da vontade”. No entendimento do Min. Ayres Britto: “em um contexto patriarcal e machista, a mulher
agredida tende a condescender com o agressor”. Sustentou o Ministro Celso de Mello que é
fundamental que se dê atenção ao artigo 226, parágrafo 8º, da Constituição
Federal, que prevê a prevenção da violência doméstica e familiar pelo Estado.
Como se vê, o
ordenamento jurídico e a jurisprudência, tendo em vista a intenção de reforçar
a prevenção e a repressão à violência doméstica, procuraram evitar que houvesse
entraves à persecução penal. A razão de ser dessa nova mentalidade foi
justamente o fato de, no passado, como dito, muitas apurações terem sido
evitadas ou interrompidas porque, respectivamente, as vítimas não representaram
ou se retrataram.
Já deparei com
proposta de arquivamento de apuração de violência doméstica com base no
argumento de que os envolvidos, por conta do processo, poderiam deixar de
conviver. Imediatamente discordei. Também não concordo que a possibilidade de a
pretensa vítima não cooperar com a produção da prova, o que às vezes acontece
porque em juízo ela tenta “maquiar” a agressão sofrida, justifique o
arquivamento do inquérito. Afinal, o relato judicial da vítima não é o único
elemento de convicção. Mesmo que ela venha a negar a agressão é possível
condenar. O arquivamento, nos citados casos, consistiria, com o devido
respeito, num retrocesso; em fazer “ressurgir das cinzas” aquilo que há alguns
anos se denominava “medida de política criminal” para tentar preservar a
convivência, mas cuja aplicação sistemática acabou por incentivar a violência.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
(publicado aos 28/5/2015 no Diário de Penápolis e aos
30/5/2015 no Correio de Lins; abordado em entrevista na Rádio Regional
Esperança aos 25/5/2015)