Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

2 de jun. de 2015

Violência doméstica – apuração incondicionada

Com o surgimento da Lei 9.099/1995, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais estaduais, a apuração da lesão corporal leve passou a depender de representação da vítima, ou seja, de pronunciamento favorável dela no prazo de seis meses contado do conhecimento da autoria da agressão. O Estado, detentor do poder de punir, entendeu que em alguns casos as vítimas talvez pudessem querer relevar a ofensa.

As lesões são consideradas leves quando não resultam incapacidade para as ocupações habituais por mais de trinta dias; perigo de vida; debilidade permanente de membro, sentido ou função; aceleração de parto; incapacidade permanente para o trabalho; enfermidade incurável; perda ou inutilização do membro, sentido ou função; deformidade permanente ou aborto.

A Lei 11.340/2006, mais conhecida como “Maria da Penha”, ao tratar da violência doméstica, previu: (1) Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial (...) tomar a representação a termo, se apresentada; (2) Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação (...) só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

A interpretação literal do que foi escrito fez com que a representação da mulher agredida continuasse sendo exigida e permitiu que ela se retratasse na fase judicial e dessa forma evitasse a responsabilização do agressor. Na prática, a mulher oprimida muitas vezes não tinha alternativa e a impunidade continuava a imperar. A falta de representação da mulher ou a sua retratação em juízo muitas vezes estimulavam agressores a se tornarem ainda mais violentos.

Mas o Supremo Tribunal Federal, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.424, decidiu que a apuração de violência doméstica não depende de pronunciamento favorável da vítima, ou seja, não carece da “autorização” dela. Em consequência, afastou a possibilidade de a persecução penal ser interrompida a pedido da mulher, o que popularmente se denomina “retirar a queixa” (muito embora “queixa” tenha significado jurídico próprio e diverso). O julgado reconheceu a natureza incondicionada da ação penal. A deflagração da apuração, portanto, não está sujeita a condição alguma. A polícia e o Ministério Público podem agir independentemente da vontade da mulher vitimada. Qualquer pessoa pode denunciar a ocorrência de violência doméstica, mesmo anonimamente.

Os Ministros que participaram do julgamento da ADI 4.424 fizeram comentários interessantes. No entender da Min. Cármen Lúcia, houve mudança de mentalidade no que se refere aos direitos das mulheres e “é dever do Estado adentrar ao recinto das ‘quatro paredes’ quando na relação conjugal que se desenrola ali houver violência”. Para o eminente Min. Ricardo Lewandowski: “as mulheres, como está demonstrado estatisticamente, não representam criminalmente contra o companheiro ou marido em razão da permanente coação moral e física que sofrem e que inibe a sua livre manifestação da vontade”. No entendimento do Min. Ayres Britto: “em um contexto patriarcal e machista, a mulher agredida tende a condescender com o agressor”. Sustentou o Ministro Celso de Mello que é fundamental que se dê atenção ao artigo 226, parágrafo 8º, da Constituição Federal, que prevê a prevenção da violência doméstica e familiar pelo Estado.

Como se vê, o ordenamento jurídico e a jurisprudência, tendo em vista a intenção de reforçar a prevenção e a repressão à violência doméstica, procuraram evitar que houvesse entraves à persecução penal. A razão de ser dessa nova mentalidade foi justamente o fato de, no passado, como dito, muitas apurações terem sido evitadas ou interrompidas porque, respectivamente, as vítimas não representaram ou se retrataram.

Já deparei com proposta de arquivamento de apuração de violência doméstica com base no argumento de que os envolvidos, por conta do processo, poderiam deixar de conviver. Imediatamente discordei. Também não concordo que a possibilidade de a pretensa vítima não cooperar com a produção da prova, o que às vezes acontece porque em juízo ela tenta “maquiar” a agressão sofrida, justifique o arquivamento do inquérito. Afinal, o relato judicial da vítima não é o único elemento de convicção. Mesmo que ela venha a negar a agressão é possível condenar. O arquivamento, nos citados casos, consistiria, com o devido respeito, num retrocesso; em fazer “ressurgir das cinzas” aquilo que há alguns anos se denominava “medida de política criminal” para tentar preservar a convivência, mas cuja aplicação sistemática acabou por incentivar a violência.

Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
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(publicado aos 28/5/2015 no Diário de Penápolis e aos 30/5/2015 no Correio de Lins; abordado em entrevista na Rádio Regional Esperança aos 25/5/2015)