A Constituição Federal de 1988 estabeleceu amplo acesso à
justiça. Conforme art. 5º, inciso XXXV, “a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Entretanto, esse acesso deve obedecer às chamadas “condições
da ação” disciplinadas pelo direito processual. Uma das condições é o
“interesse de agir”. Resumidamente, demandar somente se justifica se a pessoa
demonstra que a sua pretensão não foi atendida pela outra parte, ou seja, que
existe pretensão resistida.
Entendo que a parte tem de esgotar todas as tentativas de
solucionar o seu problema administrativamente antes de distribuir uma ação.
Admito que nem sempre os tribunais decidem dessa forma, o que, contudo, nem
sempre é suficiente para que eu admita o prosseguimento.
No âmbito do Direito do Consumidor, por ex., a
insatisfação pode ser noticiada primeiramente ao próprio fornecedor do produto
ou do serviço. Se o diálogo não for suficiente, a parte pode e deve formular
reclamação escrita. Se a empresa se recusar a protocolizar a reclamação, ela
pode ser enviada pelo correio com aviso de recebimento, isso se o “site” não
disponibilizar correio eletrônico ou formulário próprio para reclamação. Também
é possível promover notificação extrajudicial (via cartório). No caso de
atendimento por sistema telefônico do tipo “0800”, é recomendável que o
consumidor utilize o seu telefone celular com o sistema de “viva-voz” acionado
e se sirva de outro aparelho para gravar a conversa, de forma a produzir prova
daquilo que lhe foi prometido. Ainda que seja possível requisitar judicialmente
essa gravação no curso do processo, isso levará tempo e se o fornecedor alegar
que o contato não aconteceu, o impasse poderá prejudicar o esclarecimento do
defeito no produto ou no serviço. A falta de pronunciamento do fornecedor
depois do decurso de prazo razoável para resposta justifica que o interessado
compareça ao Procon. Acredito que somente depois disso tudo é que o ajuizamento
de ação deve ser considerado legítimo. Se houver urgência, a propositura de
pedido cautelar ou mesmo de antecipação dos efeitos da tutela principal de
plano, evidentemente, se justificará.
Quando a insatisfação tiver por alvo uma repartição
pública haverá mais razão para se exigir da parte a prévia reclamação por
escrito. As repartições normalmente protocolizam requerimentos. Instar o
servidor público a se manifestar por escrito sobre a sua pretensão normalmente
faz com que ele reflita melhor sobre a negativa que lhe informou verbalmente e,
muitas vezes, reconsidere a conclusão contrária aos seus interesses. Da mesma
forma, a recusa de protocolo poderá ser suprimida por remessa postal. Mas, no
caso do serviço público, sempre haverá uma autoridade superior que poderá ser
“provocada” a tomar conhecimento da atitude indevida do subordinado que tiver
se negado a receber pedido escrito. A exigência de petição à repartição antes
da distribuição de ação judicial, longe de significar vedação de acesso à
justiça, somente vem a consagrar a separação dos poderes que também tem
previsão no referido art. 5º. Em suma: antes de o Judiciário intervir no
funcionamento do Executivo ou do Legislativo, estes Poderes devem ser
formalmente acionados a justificarem eventuais negativas aos cidadãos. Não é
demais ressaltar que o art. 5º, no inciso XXXIV, assegura a todos, independentemente do pagamento de taxas, “o
direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direito ou contra
ilegalidade ou abuso de poder”. Negar-se a receber petição do cidadão configura
falta injustificável do servidor público. A Lei Federal 9.265/1996
estabeleceu gratuidade aos atos necessários ao exercício da cidadania, dentre
eles, quaisquer requerimentos ou petições que amparem garantias individuais e a
defesa do interesse público.
Em seara previdenciária, nota-se ajuizamento de milhares
de ações sem que haja demonstração da protocolização de prévio requerimento
administrativo e da subsequente negativa ou omissão, depois de decorrido tempo
razoável para resposta, por parte Instituto Nacional do Seguro Social. Em
consequência, o Poder Judiciário, já tão abarrotado de ações, tem funcionado
como uma verdadeira repartição do INSS, absorvendo atribuições que legalmente e
processualmente não se justificam. O INSS, por sua vez, em vez de ampliar o
atendimento ao público (é claro que já houve expressivos avanços nesse
sentido), por exemplo, por meio de unidades volantes que poderiam atender com
mais frequência aos cidadãos das pequenas cidades que não contam com agências
da Previdência, tem se acomodado com a atuação do Poder Judiciário como
verdadeira filial de seus escritórios. Os interessados, por sua vez, também já
se acostumaram a acionar diretamente a justiça e, tenho conhecimento (porque
debato o assunto com outros Magistrados), é crescente (mesmo que ainda seja
minoria) o número de captadores que de forma espúria arregimentam clientes para
alguns advogados em troca de comissões (o que configura falta disciplinar).
Ainda falando do serviço público, a necessidade de
medicamento e/ou de tratamento de saúde, no meu entender, também deve ser
objeto de prévio requerimento. Esse contato direto da repartição com o enfermo
é fundamental para a análise da procedência do pedido.
É preciso repensar a idéia de procurar o Judiciário e
obrigar o serviço público a se pronunciar oficialmente, cada vez mais, sobre as
pretensões dos cidadãos. As repartições não podem se acomodar. Ao contrário,
devem aperfeiçoar os atendimentos. E resolver administrativamente acaba
privando o ente público de gastos com o processo.
Não pretendo aqui estimular negativa de atendimento ao
jurisdicionado. Defendo apenas o uso racional do serviço judiciário e a maior
distribuição de responsabilidades entre os envolvidos para as soluções de
entreveros. A partir do momento em que o Judiciário passar a ser procurado
apenas em caso de necessidade manifesta, teoricamente, terá condições de atuar
com mais agilidade.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
(publicado no Correio de Lins de 30/6/2015 e no Diário de
Penápolis de 2/7/2015)