Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

31 de ago. de 2016

Ruídos produzidos por cães: “cada cabeça é uma sentença...”

No dia 10/7/2016, o “site” Consultor Jurídico exibiu entrevista intitulada “Os direitos nem sempre são uma coisa boa e ampliá-los nem sempre é uma boa ideia”. Anna Pintore, professora de Filosofia do Direito na Universidade de Cagliari, discorreu sobre o risco de criação de novos direitos: “... criando novos direitos, criam-se novas obrigações e, assim, se limitam os direitos e a esfera de liberdade”. Salientou que o Judiciário acaba tendo de moldar os direitos, porque a lei nem sempre consegue prevê-los com precisão e porque diante de conflitos é necessário recorrer ao princípio da razoabilidade para eleger o que deve preponderar.
A Constituição e as leis brasileiras materializam muitos direitos, algum deles, com “status” de “fundamentais”. Mas o fato é que as normas normalmente não preveem preponderância, pois a solução de conflitos, via de regra, depende da análise de detalhes de cada situação.
Dias atrás eu postei no Facebook notícia, extraída do mesmo “site”, de que a justiça tinha decidido que a dona de 23 cães teria de se desfazer dos animais e indenizar a vizinha por causa do ruído e do mau cheiro que eles produziam. Segundo foi divulgado, “ao manter o grande número de animais, a mulher abusa de seu direito de possuir animal doméstico, ferindo o direito ao sossego alheio”. Ficou consignado que, por maior que fosse a dedicação da criadora dos cães, ela não teria condições de higienizar o seu quintal e de evitar o barulho. Os desembargadores entenderam que a lei municipal que autorizava criar dez animais não gerava direito para a moradora, pois esse número de cães “não reduziria os transtornos evidentemente causados à vizinhança" (Apelação 0005619-47.2012.8.26.0338).
Houve quem se sensibilizasse e criticasse a determinação judicial de desfazimento dos cães, como era de se esperar, mas sem formulação de proposta de solução efetiva. Parece que a decisão realmente foi acertada.
O juiz enfrenta constantemente esse dilema de ter de dizer qual direito deverá prevalecer. Mesmo que goste de cães, tem de tentar se colocar no lugar de cada parte e decidir com isenção.
Os artigos 1.277 e seguintes do Código Civil tratam do uso anormal da propriedade e suas consequências. Autorizam medidas contra “interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde”. Um deles explica: “Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança”.
O Tribunal de Justiça de São Paulo já manteve multa fixada para clínica veterinária que descumpriu ordem de retirada de cães fora do horário comercial e de adoção de medidas para a cessação dos ruídos (Ag. 2262811-56.2015.8.26.0000). Noutro processo, impôs produção de prova pericial para apurar se “pet shop” que oferecia hospedagem de animais estava produzindo ruídos e mau cheiro excessivos (Ap. 1257297004). Certa vez determinou que a dona de quarenta cães se desfizesse deles gradativamente e ficasse apenas com dez (Ap. 0004810-30.2012.8.26.0153). Mas também já reduziu o número de animais de quinze para três (Ag. 0334465-16.2010.8.26.0000). Um dos acórdãos que pesquisei deixou claro que a reclamação contra os latidos não tinha cunho pessoal, pois outros vizinhos também se sentiam incomodados, e confirmou “antecipação de tutela para obrigar o vizinho a eliminar, no prazo de trinta dias, o latido alto e incessante do seu animal, em horários inusuais, adotando as providências necessárias para a sua cessação ou diminuição a níveis e frequência toleráveis, sob pena de multa de R$ 500,00 diários, limitados a R$ 50.000,00” (Ap. 1010843-46.2013.8.26.0068). Numa situação específica, o TJSP reverteu sentença que tinha determinado o afastamento de cães do corredor que faz divisa com a residência do reclamante: “Desproporcional e desarrazoada a limitação da circulação do animal doméstico em sua própria residência – Aplicação por extensão do dispositivo previsto no artigo 5º, inciso XI, da CF – Diálogo e conciliação como forma de superação do caráter litigioso das relações humanas” (Ap. 0061463-63.2012.8.26.0602). Nesse julgado, a desembargadora relatora aplicou em favor do animal a previsão de que “a casa é asilo inviolável do indivíduo” e transcreveu até a “Prece do Cão” (!) para sensibilizar o autor da ação a tentar solucionar amigavelmente o impasse, o que, no seu entender, poderia ser facilitado se ele tentasse fazer amizade com o canino...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito
Facebook Adriano Ponce Jurídico
www.direitoilustrado.blogspot.com
www.youtube.com/adrianoponce10

(publicado na edição de 21/7/2016 do Diário de Penápolis)