A Constituição e as leis brasileiras materializam muitos
direitos, algum deles, com “status” de “fundamentais”. Mas o fato é que as
normas normalmente não preveem preponderância, pois a solução de conflitos, via
de regra, depende da análise de detalhes de cada situação.
Dias atrás eu postei no Facebook notícia, extraída do
mesmo “site”, de que a justiça tinha decidido que a dona de 23 cães teria de se
desfazer dos animais e indenizar a vizinha por causa do ruído e do mau cheiro
que eles produziam. Segundo foi divulgado, “ao manter o grande número de
animais, a mulher abusa de seu direito de possuir animal doméstico, ferindo o
direito ao sossego alheio”. Ficou consignado que, por maior que fosse a
dedicação da criadora dos cães, ela não teria condições de higienizar o seu
quintal e de evitar o barulho. Os desembargadores entenderam que a lei
municipal que autorizava criar dez animais não gerava direito para a moradora,
pois esse número de cães “não reduziria os transtornos evidentemente causados à
vizinhança" (Apelação 0005619-47.2012.8.26.0338).
Houve quem se sensibilizasse e criticasse a determinação
judicial de desfazimento dos cães, como era de se esperar, mas sem formulação
de proposta de solução efetiva. Parece que a decisão realmente foi acertada.
O juiz enfrenta constantemente esse dilema de ter de
dizer qual direito deverá prevalecer. Mesmo que goste de cães, tem de tentar se
colocar no lugar de cada parte e decidir com isenção.
Os artigos 1.277 e seguintes do Código Civil tratam do
uso anormal da propriedade e suas consequências. Autorizam medidas contra “interferências
prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde”. Um deles explica: “Proíbem-se
as interferências considerando-se a natureza da utilização, a localização do
prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os
limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança”.
O Tribunal de Justiça de São Paulo já manteve multa
fixada para clínica veterinária que descumpriu ordem de retirada de cães fora
do horário comercial e de adoção de medidas para a cessação dos ruídos (Ag. 2262811-56.2015.8.26.0000).
Noutro processo, impôs produção de prova pericial para apurar se “pet shop” que
oferecia hospedagem de animais estava produzindo ruídos e mau cheiro excessivos
(Ap. 1257297004). Certa vez determinou que a dona de quarenta cães se desfizesse
deles gradativamente e ficasse apenas com dez (Ap. 0004810-30.2012.8.26.0153).
Mas também já reduziu o número de animais de quinze para três (Ag.
0334465-16.2010.8.26.0000). Um dos acórdãos que pesquisei deixou claro que a
reclamação contra os latidos não tinha cunho pessoal, pois outros vizinhos
também se sentiam incomodados, e confirmou “antecipação de tutela para obrigar
o vizinho a eliminar, no prazo de trinta dias, o latido alto e incessante do
seu animal, em horários inusuais, adotando as providências necessárias para a
sua cessação ou diminuição a níveis e frequência toleráveis, sob pena de multa
de R$ 500,00 diários, limitados a R$ 50.000,00” (Ap.
1010843-46.2013.8.26.0068). Numa situação específica, o TJSP reverteu sentença
que tinha determinado o afastamento de cães do corredor que faz divisa com a
residência do reclamante: “Desproporcional e desarrazoada a limitação da
circulação do animal doméstico em sua própria residência – Aplicação por
extensão do dispositivo previsto no artigo 5º, inciso XI, da CF – Diálogo e
conciliação como forma de superação do caráter litigioso das relações humanas”
(Ap. 0061463-63.2012.8.26.0602). Nesse julgado, a desembargadora relatora
aplicou em favor do animal a previsão de que “a casa é asilo inviolável do indivíduo”
e transcreveu até a “Prece do Cão” (!) para sensibilizar o autor da ação a
tentar solucionar amigavelmente o impasse, o que, no seu entender, poderia ser
facilitado se ele tentasse fazer amizade com o canino...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito
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(publicado na edição de 21/7/2016 do Diário de Penápolis)