Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

20 de out. de 2015

É preciso saber ouvir... [sobre a prova oral]


O interessante texto “História oral: os riscos da inocência”, de Michael M. Hall, traz importante alerta para delegados de polícia, promotores de justiça, juízes, policiais e todos aqueles que cotidianamente trabalham com depoimentos e informações trazidas pela população, como conselheiros tutelares, assistentes sociais, jornalistas, médicos etc.
Na verdade, ele não foi redigido especificamente para os citados profissionais que operam O Direito Penal, mas para pesquisadores e historiadores que se valem de informações para recomporem fatos.
Segundo o autor, “os relatos produzidos pela história oral devem estar sujeitos ao mesmo trabalho crítico de outras fontes que os historiadores costumam consultar”. Ele observa que há muito a ser pesquisado sobre o funcionamento da memória humana e sobre o quanto nossas lembranças estão suscetíveis aos envolvimentos emocionais. Ressalta que a memória de fatos está sempre sujeita às “alterações grosseiras pelas experiências posteriores na vida do entrevistado, e por uma variedade de outras modificações conscientes ou inconscientes”. Afirma, ainda, que não se podem desprezar distorções intencionais decorrentes, por exemplo, da exagerada importância dada a determinados acontecimentos; da ocultação de ações e da tentativa de vingança de velhos ressentimentos.
Muitos dos exageros ou distorções, no entanto, podem advir de puro equívoco sobre o contexto a que o entrevistado se reporta, ou mesmo da tentativa de transferir opiniões atuais para o passado.
Quando apresenta uma história pronta, o entrevistado pode nem se dar conta, por exemplo, do quanto a simplificação, que às vezes ocorre até mesmo de forma involuntária, pode ser prejudicial à revelação da verdade.
O problema se intensifica à medida que se constata, segundo o autor, que o entrevistado responde de maneira diferente segundo a identidade do entrevistador (sexo, idade, classe social etc.) ou mesmo influenciado pela maneira como a pergunta é formulada.
Para Hall, “não é necessária má-fé consciente para sair de uma entrevista tendo ouvido exatamente o que esperamos”, diante da possibilidade de inclusão de perguntas que conhecidamente o entrevistado gostaria de responder e da omissão daquelas que porventura o constrangeriam.
Em resumo, deve-se sempre levar em conta a confiabilidade relativa da memória humana.
A legislação processual penal é cautelosa ao estabelecer regras para as oitivas de testemunhas. Ora preocupa-se com o esquecimento ou distorção de informações importantes; ora procura evitar que depoimentos “encomendados” possam interferir na busca da verdade.
O Código de Processo Penal, no art. 204, autoriza que testemunhas se baseiem em algumas anotações durante depoimentos. As notas escritas, no entanto, devem se resumir às informações das quais o inquirido não se lembre com facilidade, como nomes de lugares e/ou pessoas, datas, valores e informações análogas. No tocante aos demais fatos, para evitar a manipulação prejudicial à realização da justiça, devem ser resumidos oralmente pelo inquirido, exceção feita aos depoimentos do Presidente e do Vice-Presidente da República e dos Presidentes do Senado, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal, que podem se pronunciar por escrito.
A forma oral permite ao inquiridor que avalie o grau de sinceridade e de espontaneidade do entrevistado.
A vedação legal à leitura de depoimento previamente escrito não impede, na plenitude, manipulações, mas funciona como fator de desestímulo à sua ocorrência, pois aumenta sensivelmente o risco daquele que pretende faltar com a verdade de cair em contradição.
De qualquer forma, Júlio Fabbrini Mirabete (Processo Penal, 2003) resume com precisão os cuidados a serem observados na obtenção ou interpretação de um depoimento: “É dos mais discutidos o valor do testemunho humano, sabido que nossos sentidos frequentemente nos iludem. Para Chaparède, há uma tendência inata de a testemunha diminuir o fator tempo e as dimensões das coisas, a desprezar o insólito (incomum) e o contingente (aleatório, ocasional, incerto), concluindo, afinal, que na vida judiciária há evidentes fontes de erros na prestação do testemunho, mesmo nos casos de boa-fé sem qualquer fator estranho de pressão. Não há no testemunho, observa ele, a precisão e a objetividade de um instrumento físico ou mecânico, ocorrendo frequentemente erros comuns de percepção de cores, de tempo e de distância e até mesmo de sons. Isso sem falar na mendacidade (falsidade) que frequentemente vicia o depoimento, estimulada por interesses pessoais ou sugestão ou ainda por sentimentos vários como amor, amizade, ódio, inveja etc.”.
Como se vê, o ato de inquirir requer muita habilidade e malícia por parte do inquiridor, que deve considerar todo o contexto e principalmente investigar se o inquirido está movido por alguns dos tais sentimentos pessoais; se tem interesse em determinado desfecho; se sua vida pregressa transmite confiança aos seus relatos etc. Exige, ainda, que se averigúe se o inquirido realmente acompanhou o ocorrido (ou se não há risco de uma mentira dita mil vezes ter se tornado uma verdade, ou seja, de a versão ser fruto do “disse-que-me-disse”) e, em caso positivo, se no momento em que vivenciou os fatos que estão sendo objeto da inquirição, a pessoa eventualmente estava alcoolizada, sonolenta, drogada, desequilibrada ou de qualquer outra forma influenciada a distorcer a compreensão do que ocorria ao seu redor; e até mesmo se maliciosamente está se aproveitando de qualquer dos estados para omitir ou alterar a verdade...
Esta lição vale até mesmo para os pais que ainda se preocupam em ouvir seus filhos e para aqueles que os ouvem demais...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
www.direitoilustrado.blogspot.com.br
(publicado na edição de 15/10/2015 do Diário de Penápolis e abordado em entrevista concedida à Rádio Regional Esperança aos 19/10/2015 – versão atualizada do texto publicado no Getulina Jornal de 27/6/2004)




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