Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

21 de mar. de 2014

Violência doméstica - discordei de arquivamento proposto pelo Ministério Público




Proc. ????

            O Ministério Público propôs o arquivamento de inquérito policial instaurado para apurar delito previsto no art. 129, § 9º, do Código Penal.

            Com a devida vênia, discordo do referido posicionamento.

            a) Decisão do Supremo a respeito da natureza incondicionada da ação tendente a apurar agressão classificada como violência doméstica

            Eis o que decidiu o egrégio Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.424:

Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente a ação direta para, dando interpretação conforme aos artigos 12, inciso I, e 16, ambos da Lei nº 11.340/2006, assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher no ambiente doméstico, contra o voto do Senhor Ministro Cezar Peluso (Presidente). Falaram, pelo Ministério Público Federal (ADI 4424), o Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos, Procurador-Geral da República; pela Advocacia-Geral da União, a Dra. Grace Maria Fernandes Mendonça, Secretária-Geral de Contencioso; pelo interessado (ADC 19), Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o Dr. Ophir Cavalcante Júnior e, pelo interessado (ADI 4424), Congresso Nacional, o Dr. Alberto Cascais, Advogado-Geral do Senado. Plenário, 09.02.2012.

            Com base nesse precedente, Supremo tem acolhido reclamações sobre o assunto:

DECISÃO RECLAMAÇÃO. PENAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LEI N. 11.340/2006. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. DESRESPEITO À DECISÃO PROFERIDA NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.424. PLAUSIBILIDADE JURÍDICA. MEDIDA LIMINAR DEFERIDA. INFORMAÇÕES. VISTA AO PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA. (...)

9. Superado esse fundamento apontado pela autoridade Reclamada, de se observar que, em 9.2.2012, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, julgou procedente a Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 19 para declarar a constitucionalidade dos arts. 1º, 33 e 41 da Lei n. 11.340/2006 e, por maioria, julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.424 para, dando interpretação conforme aos arts. 12, inc. I, e 16 da Lei n. 11.340/2006, assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão, independentemente da sua extensão, praticado contra a mulher em ambiente doméstico. Tem-se neste julgado: “O Plenário, por maioria, julgou procedente ação direta, proposta pelo Procurador Geral da República, para atribuir interpretação conforme a Constituição aos artigos 12, I; 16 e 41, todos da Lei 11.340/2006, e assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão corporal, praticado mediante violência doméstica e familiar contra a mulher. Preliminarmente, afastou-se alegação do Senado da República segundo a qual a ação direta seria imprópria, visto que a Constituição não versaria a natureza da ação penal — se pública incondicionada ou pública subordinada à representação da vítima. Haveria, conforme sustentado, violência reflexa, uma vez que a disciplina do tema estaria em normas infraconstitucionais. O Colegiado explicitou que a Constituição seria dotada de princípios implícitos e explícitos, e que caberia à Suprema Corte definir se a previsão normativa a submeter crime de lesão corporal leve praticado contra a mulher, em ambiente doméstico, ensejaria tratamento igualitário, consideradas as lesões provocadas em geral, bem como a necessidade de representação. Salientou-se a evocação do princípio explícito da dignidade humana, bem como do art. 226, § 8º, da CF. Frisou-se a grande repercussão do questionamento, no sentido de definir se haveria mecanismos capazes de inibir e coibir a violência no âmbito das relações familiares, no que a atuação estatal submeter-se-ia à vontade da vítima. No mérito, evidenciou-se que os dados estatísticos no tocante à violência doméstica seriam alarmantes, visto que, na maioria dos casos em que perpetrada lesão corporal de natureza leve, a mulher acabaria por não representar ou por afastar a representação anteriormente formalizada. A respeito, o Min. Ricardo Lewandowski advertiu que o fato ocorreria, estatisticamente, por vício de vontade da parte dela. Apontou-se que o agente, por sua vez, passaria a reiterar seu comportamento ou a agir de forma mais agressiva. Afirmou-se que, sob o ponto de vista feminino, a ameaça e as agressões físicas surgiriam, na maioria dos casos, em ambiente doméstico. Seriam eventos decorrentes de dinâmicas privadas, o que aprofundaria o problema, já que acirraria a situação de invisibilidade social. Registrou-se a necessidade de intervenção estatal acerca do problema, baseada na dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), na igualdade (CF, art. 5º, I) e na vedação a qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (CF, art. 5º, XLI). Reputou-se que a legislação ordinária protetiva estaria em sintonia com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher e com a Convenção de Belém do Pará. Sob o ângulo constitucional, ressaltou-se o dever do Estado de assegurar a assistência à família e de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Não seria razoável ou proporcional, assim, deixar a atuação estatal a critério da vítima. A proteção à mulher esvaziar-se-ia, portanto, no que admitido que, verificada a agressão com lesão corporal leve, pudesse ela, depois de acionada a autoridade policial, recuar e retratar-se em audiência especificamente designada com essa finalidade, fazendo-o antes de recebida a denúncia. Dessumiu-se que deixar a mulher — autora da representação — decidir sobre o início da persecução penal significaria desconsiderar a assimetria de poder decorrente de relações histórico-culturais, bem como outros fatores, tudo a contribuir para a diminuição de sua proteção e a prorrogar o quadro de violência, discriminação e ofensa à dignidade humana. Implicaria relevar os graves impactos emocionais impostos à vítima, impedindo-a de romper com o estado de submissão” (Informativo n. 654). 10. Dessa forma, neste exame preambular, a exposição dos fatos e a verificação das circunstâncias presentes e comprovadas na ação conduzem ao deferimento do pedido de medida liminar, por se verificar plausibilidade jurídica dos argumentos apresentados na inicial. 11. Pelo exposto, defiro a medida liminar para suspender o efeito das decisões objeto da presente reclamação e determinar que o juízo da 4ª Vara Criminal da Comarca de Osasco/SP dê andamento às Ações Penais ns. 0050818-85.2012.8.26.0405 e 0043710-05.2012.8.26.0405 com observância do que decidido por este Supremo Tribunal, em 9.2.2012, no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 19 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.424, Relator o Ministro Marco Aurélio. Comunique-se ao juízo da 4ª Vara Criminal da Comarca de Osasco/SP, autoridade ora Reclamada, para ciência desta decisão e para prestar, com urgência e por fax, informações pormenorizadas quanto ao alegado na presente reclamação e junte cópia dos documentos que considerar pertinentes. Remeta-se, com o ofício, a ser enviado, com urgência e por fax, cópia da inicial e da presente decisão. 12. Prestadas as informações, vista ao Procurador-Geral da República. Publique-se. Brasília, 28 de junho de 2013. Ministra CÁRMEN LÚCIA Relatora (Rcl 15926 MC, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, julgado em 28/06/2013, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-148 DIVULG 31/07/2013 PUBLIC 01/08/2013).

            Ao enfrentar o tema, Ministros que participaram do julgamento da ADI 4.424 fizeram comentários interessantes[1]. Muito embora digam respeito especificamente à modalidade de ação penal, os argumentos servem à defesa da tese de que a notícia de fato típico e antijurídico classificado como “violência doméstica” não deve ser prematuramente arquivada em nome da tranquilidade doméstica.

            Ficou claro que a condição de procedibilidade, se fosse mantida, tal como ficou decidido, esvaziaria a proteção constitucional assegurada às mulheres.

            Para a Min. Rosa Weber, a exigência de representação atenta contra a própria dignidade humana. O Min. Luiz Fux afirmou que não é razoável exigir-se da mulher que apresente queixa contra o companheiro num momento de total fragilidade emocional em razão da violência que sofreu:

Sob o ângulo da tutela da dignidade da pessoa humana, que é um dos pilares da República Federativa do Brasil, exigir a necessidade da representação, no meu modo de ver, revela-se um obstáculo à efetivação desse direito fundamental porquanto a proteção resta incompleta e deficiente, mercê de revelar subjacentemente uma violência simbólica e uma afronta a essa cláusula pétrea.

            No entender da Min. Cármen Lúcia, houve mudança de mentalidade no que se refere aos direitos das mulheres. Lucidamente,

citando ditados anacrônicos – como, “em briga de marido e mulher, não se mete a colher” e “o que se passa na cama é segredo de quem ama” –, ela afirmou que é dever do Estado adentrar ao recinto das “quatro paredes” quando na relação conjugal que se desenrola ali houver violência.

            Para o eminente Min. Ricardo Lewandowski:

estamos diante de um fenômeno psicológico e jurídico, que os juristas denominam de vício da vontade, e que é conhecido e estudado desde os antigos romanos. As mulheres, como está demonstrado estatisticamente, não representam criminalmente contra o companheiro ou marido em razão da permanente coação moral e física que sofrem e que inibe a sua livre manifestação da vontade.

            O Min. Gilmar Mendes até cogitou algum risco em torna a ação penal pública incondicionada, já que a demanda poderia ser “elemento de tensão e desagregação familiar”, mas acompanhou o relator.

            Comentário interessante foi feito pelo Min. Ayres Britto: “em um contexto patriarcal e machista, a mulher agredida tende a condescender com o agressor”.

            Sustentou o Ministro Celso de Mello: “Estamos interpretando a lei segundo a Constituição e, sob esse aspecto, o ministro-relator deixou claramente estabelecido o significado da exclusão dos atos de violência doméstica e familiar contra a mulher do âmbito normativo da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), com todas as consequências, não apenas no plano processual, mas também no plano material”. Enfatizou que é fundamental que se dê atenção ao artigo 226, parágrafo 8º, da Constituição Federal, que prevê a prevenção da violência doméstica e familiar pelo Estado.

            O Min. Cezar Peluso advertiu que, se o caráter condicionado da ação foi inserido na lei, houve motivos justificados para isso. Mas, no meu entender, esse argumento não basta para privilegiar a modalidade condicionada da ação, uma vez que as leis brasileiras sistematicamente são promulgadas com defeitos, cabendo ao Judiciário justamente detectá-los e compatibilizar as normas com os princípios e diretrizes constitucionais.

            Em suma: o Supremo, quando decidiu pela natureza incondicionada da ação tendente a apurar violência doméstica, o fez escorado em princípios e conclusões que não autorizam o acolhimento do parecer ministerial.

            b) Análise específica do caso concreto

            Vê-se que o ordenamento jurídico e a jurisprudência, tendo em vista a intenção de reforçar a prevenção e a repressão à violência doméstica, procuraram evitar que houvesse entraves à apuração.

            A razão de ser dessa nova mentalidade foi justamente o fato de, no passado, muitas apurações terem sido interrompidas pela falta de representação ou por retratação.

            Não tenho como aceitar, assim, como justificadora do arquivamento, argumentação que se escore na probabilidade de os envolvidos, por conta do processo, deixarem de conviver; na possibilidade de a pretensa vítima não cooperar com a produção da prova etc. São apenas hipóteses. O relato judicial da vítima não é o único elemento de convicção. E se o posicionamento agora questionado prevalecer, pouquíssimas ofensas seriam apuradas, o que colocaria em xeque todo o sistema de proteção implantado pela Lei “Maria da Penha”.

            A bem da verdade, o arquivamento sob tal pretexto consistiria, com o devido respeito, num retrocesso; em fazer “ressurgir das cinzas” aquilo que há alguns anos se denominava “medida de política criminal”, mas cuja aplicação sistemática acabou por incentivar a violência.

            Acrescente-se, por fim, que a apuração trata de conduta reprovável: consta que o agressor mantinha relacionamento extraconjugal e que investiu contra a vítima dez anos mais velha (69 anos) e indefesa, deixando marcas no seu corpo. Ouvido na fase policial, ele não refutou as agressões. E a vítima em parte se desinteressou pela apuração porque, segundo ela mesmo disse, o investigado costuma levá-la nos consultórios médicos. A situação é típica de subserviência da mulher, que, também por isso, precisa de proteção especial. O nosso sistema jurídico já não ampara eventual “tolerância” da vítima. A dívida do agressor não é com a vítima, mas com o Estado.

            Isso posto, remetam-se os autos à Douta Procuradoria Geral de Justiça, para aferição da promoção de arquivamento ora contestada, nos termos do art. 28 do Código de Processo Penal.

            Ciência ao Ministério Público.

                                                           Penápolis(SP), 20/2/2014.



                                                           Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira

                                                                        Juiz de Direito








[1] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=199853>. Acesso em 13 set. 2013.