Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

2 de set. de 2012

Anencefalia e interrupção da gravidez – parte VI (final)

Anencefalia e interrupção da gravidez – parte VI (final)
         No final da decisão que recentemente proferi, decidi autorizar a antecipação do parto do feto anencéfalo. Não poderia exigir que o feto viesse a causar ainda mais mal à mãe, ou seja, que efetivamente colocasse em risco efetivo a vida da gestante, para só então autorizar o aborto.
         Na definição de 1947 da Organização Mundial de Saúde, “saúde é o estado de mais completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de enfermidade”.
         Certamente se houvesse plena ou até parcial viabilidade do feto e fundado risco de morte para a gestante, esta, se fosse consultada e pudesse opinar, até se arriscaria a preservar a gravidez e até a abrir mão da própria vida em favor da vida de seu filho.
         No caso da anencefalia, ao contrário, foi a gestante que, decididamente, entrevistada por duas vezes, quando poderia ter se aventurado em aborto clandestino, veio clamar pelo apoio do Poder Judiciário para a cirurgia, pois “não tinha escolha” (expressão utilizada pelo seu companheiro na segunda oitiva): de um lado estava a sua “saúde psicológica” e um provável risco para a sua “saúde física” (se é que é possível desmembrar o significado de “saúde”); de outro, a certeza da inviabilidade. E se a tal inviabilidade não fosse certa uma mãe não exporia o seu feto àquilo que alguns classificam como uma “brutalidade” e não se privaria de gerá-lo.
         Ademais, os requerentes já possuíam uma filha de 12 anos e revelaram que a mulher, por decisão conjunta, se submeteria à laqueadura, o que demonstrou que o triste evento até interferiu na opção do casal por outros filhos.
         Nem mesmo a maior probabilidade de doação de órgãos justificaria o “arrastamento” da gestação até o final, pois não há escala para a proteção do sofrimento, ou seja, o sofrimento de quem aguarda o transplante (e vem sendo assistido pela ciência médica) não é mais importante do que o sofrimento da gestante que carrega o feto inviável (e que não há tratamento que possa abrandar).
         Quanto aos direitos sucessórios, argumentei que o abortamento não interferiria na sua definição, já que se o feto viesse a nascer naturalmente, como faleceria, o patrimônio que viesse a adquirir seria devolvido aos seus pais por força do art. 1.829, inc. I, do Código Civil.
         Instado a decidir sobre o aborto do anencéfalo, longe de preocupar com a complexidade do tema e com as conseqüências que adviriam da procedência, confesso que me senti grato à requerente por poder de alguma forma minorar a sua angústia. A decisão certamente seria mais difícil de ser tomada se eu estivesse diante de uma gravidez de um ser perfeito, mas decorrente de estupro. Além disso, foi gratificante enfrentar a questão, pois ainda que um indivíduo, mesmo que seja Magistrado, opine livremente e despretensiosamente sobre um tema, somente quando é convidado a se manifestar formalmente e quando da sua decisão podem decorrer efeitos tão irreversíveis é que ele de fato firma uma posição.
         Expedi a ordem com uma condição: dentro do possível, a cirurgia seria precedida de todos os cuidados necessários ao eventual aproveitamento de órgãos cuja doação foi devidamente autorizada pelos pais. Recebi, todavia, relatório no sentido de que as condições não propiciaram o aproveitamento.
         Soube que o feto sobreviveu cinco horas depois da retirada, é evidente, assistido em unidade de terapia intensiva.
         O Dr. Cristiano Fernandes Rosas, Médico, Presidente da Comissão Nacional de Violência Sexual e Interrupção da Gravidez da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia – Febrasgo -, num debate sobre aborto publicado na Revista Ser Médico (edição Cremesp, nº 40, ano X, julho a setembro de 2007, p. 20-25), definiu a aflição de uma mãe que busca o aborto decorrente de violência sexual: “Cria-se um ser humano a partir do momento em que se estabelece um vínculo afetivo fraterno com ele, ou seja, quando a mãe reconhece seu embrião como alguém amado e desejado”. E prosseguiu: “A mulher grávida em conseqüência de violência sexual não reconhece aquele embrião nem como feto; às vezes acha que carrega um ‘demônio’ no corpo e solicita desesperadamente a interrupção da gestação”...
         Vale a pena refletir...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
                                      Juiz de Direito de Cafelândia
(publicado no Correio de Lins de 12/5/2009)