Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

1 de set. de 2012

“João de Deus”

“João de Deus”
         As audiências judiciais reservam um sem-número de situações quando o assunto é o grau de vulgaridade de expressões ditas ou referenciadas pelas testemunhas.
         Em muitos casos, o Magistrado precisa se esforçar para acalmar os mais exaltados e adequar o vocabulário deles à solenidade própria do ato judicial.
         O Código de Processo Penal, por exemplo, no seu art. 213, determina que “o juiz não permitirá que a testemunha manifeste suas apreciações pessoais, salvo quando inseparáveis da narrativa do fato”.
         Mas os palavrões nem sempre devem ser repelidos. Ao contrário, se inseparáveis da narrativa, às vezes são bem-vindos e noutras vezes são imprescindíveis à produção da prova.
         Por incrível que pareça, o Juiz muitas vezes tem de incentivar a vítima ou a testemunha a reproduzirem determinado palavrão dito no contexto apurado.
         É que a ocorrência de delitos contra a honra e de desacato, por exemplo, muitas vezes está atrelada a uma ofensa verbal que necessariamente precisa ser reproduzida durante a oitiva para que o Juiz possa aferir o seu grau de lesividade ao bem jurídico protegido pela norma.
         Ocorre que nem sempre é fácil fazer com que a vítima ou a testemunha reproduzam o palavrão diante do Juiz. A maioria das pessoas felizmente ainda conserva elevado grau de pudor, de decência e de respeito pela Autoridade. Mas tenho de insistir, já que o desfecho do processo pode exigir a menção à grosseria que o deflagrou.
         Muitas vezes não basta dizer apenas uma vez à vítima ou à testemunha que os palavrões estão sempre presentes no cotidiano forense, que estou acostumado a ouvi-los, que são necessários para a avaliação do caso etc. Ainda que esclarecidas sobre a necessidade, absolutamente sem jeito, muitas deles se limitam a repetir que “A disse besteiras para B” ou que um ofendeu o outro, e relutam em detalhar as falas. Somente depois de muita insistência é que acabam por relatar, acanhadamente, o que de fato se passou no local.
         A insistência, apesar de necessária, gera respostas inusitadas. Recentemente eu ouvia um rapaz sobre ameaças e ofensas verbais que supostamente tinha feito à ex-esposa na sua cidade de origem. Ele fez um verdadeiro desabafo: salientou que não era capaz de fazer mal a ela; sustentou que havia um conchavo entre a ex-mulher e a filha para prejudicá-lo; comentou que até estava com depressão por causa das desavenças familiares e terminou dizendo que ela “falava as coisas dele e que por isso ficava nervoso, perdia a cabeça...”.
         Sobreveio um “silêncio eloqüente” que me instigou a prosseguir: “Como assim? Que coisas ela comentava? O que lhe incomodava tanto?”. Eu precisava saber se ele tinha agido em legítima defesa etc. O interrogando relutou e eu insisti. Ele avançou um pouco e alegou que a ex-esposa estava comentando que ele não saía da casa do “João de Deus”. Obviamente estranhei como aquilo o havia atormentado tanto. De início ele não explicou o porquê. Depois de alguns esclarecimentos, o impasse foi solucionado. O interrogando espalmou as mãos, as colocou emparelhadas, distanciadas cerca de 20 cm, respirou fundo e me disse: “Doutor, o João de Deus é um cara que tem um p...ão deste tamanho naquela cidade!”. Pelo menos num primeiro momento, estava explicada a sua ira com os tais comentários atribuídos àquela que reclamava ter sido por ele ameaçada...
         Costumo cumprir à risca a regra do art. 215 do Código de Processo Penal: “Na redação do depoimento, o juiz deverá cingir-se, tanto quanto possível, às expressões usadas pelas testemunhas, reproduzindo fielmente as suas frases”.
         Entretanto, fui surpreendido com a indignação do acusado e confesso que preferi ditar a expressão “pênis grande” para o escrevente, além de, é claro, explicar, no termo, o gesto feito pelo “espontâneo” cidadão...
         Só me restou, por fim, pedir calma ao (aparentemente) sincero indivíduo, na tentativa de evitar outras reações se alguém voltasse a mexer no seu “ponto fraco”...
         Alguns dias depois recebi outra carta precatória para ouvi-lo. Tratamos com descontração dos fatos que deveriam ser abordados no interrogatório, mas, desta vez, não perguntei e nem ele quis fazer referência aos motivos das várias desavenças com a ex-esposa... Deixei para lá...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito de Cafelândia(SP)
(publicado no Getulina Jornal de 26/10/2008 e
no City News 25/10/2008)