Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

2 de set. de 2012

Inoponibilidade das exceções pessoais ao terceiro de boa-fé

         Tratarei de assunto que, apesar do nome um tanto quanto estranho (utilizado justamente para chamar a sua atenção), está presente no dia-a-dia da maioria das pessoas.
         É muito comum se recorrer às Delegacias de Polícia para noticiar desacertos comerciais que invariavelmente culminam na sustação de cheques.
         Normalmente o autor da sustação, seja por orientação do gerente do banco ou do advogado, seja por ter “ouvido falar”, solicita à Autoridade Policial o registro de um boletim de ocorrência sobre “preservação de direitos”.
         Desconhece, contudo, que não há qualquer obrigatoriedade de a polícia judiciária registrar o fato, mas mera recomendação, visto que tal tarefa refoge das suas atribuições constitucionais e legais, e, portanto, desvia a estrutura policial da sua já tão difícil missão. A obrigatoriedade se resume na orientação do interessado.
         É preciso que os recursos policiais sejam direcionados à sua finalidade maior, que é a apuração de infrações penais, o policiamento ostensivo e a preservação da ordem, conforme artigo 144 da Constituição Federal.
         Ressalte-se, ainda, que nenhum correntista está obrigado a registrar ocorrência para sustar o pagamento de cheques. Isso porque o cheque é uma ordem ao banco e tal ordem não é irretratável. O correntista tem o direito de dizer se seu patrimônio deverá ou não ser desfalcado, desde que alegue motivo justo para a contra-ordem.
         Para preservar seu pretenso direito, aquele que se julga titular deve agir conforme a lei, documentar todos os seus atos (recibos, fotografias etc.) e angariar testemunhas que possam auxiliá-lo quando for preciso. A mera declaração unilateral à Polícia não é suficiente, pois não se pode garantir a verossimilhança, a autenticidade do alegado (não raramente é mentirosa).
         Mas o que o correntista menos tem conhecimento é de que em relação à maioria dos títulos de crédito vigora a “inoponibilidade das exceções pessoais ao terceiro de boa-fé”.
         O cheque e os demais títulos de crédito, em regra, nasceram para circular, apesar de o Banco Central, recentemente, ter proibido que os cheques sejam endossados mais de uma vez para forçar o depósito e aumentar a arrecadação de CPMF. A circulação se dá por meio de endosso.
         Para que eles circulem, é preciso que tenhamos relativa segurança de que o emitente honrará o pagamento e de que as operações anteriores transcorreram sem qualquer anormalidade, pois se assim não fosse ninguém aceitaria cheques de terceiros e a circulação que traduz a grande utilidade dos títulos restaria prejudicada.
         Quando repasso um cheque a um pedreiro, por exemplo, a regra é a de que eu só possa discutir se honrarei o pagamento perante tal profissional. Caso não fique satisfeito com o serviço prestado, não há dúvida de que será possível sustar o pagamento, bastando, para tanto, que eu declare ao banco os motivos. Essa mera declaração, salvo se provada a sua falsidade, já inibirá a minha responsabilização por estelionato, pois evidenciará a intenção de discutir o débito, de pleitear o refazimento da tarefa ou de descontar danos advindos da imperícia do prestador do serviço.
         Acaso o mesmo pedreiro tenha repassado o cheque na quitanda do seu bairro, terei que saldá-lo, salvo de ficar provado que o comerciante agiu em conluio com o profissional. Isso porque o comerciante não tem a obrigação de saber do desacerto anteriormente havido.
         Cada negócio que envolve o título de crédito, portanto, é autônomo em relação ao negócio anterior.
         É bem por isso que quando o título já circulou, o emitente, acaso não consiga provar a má-fé do atual portador, terá que saldar a dívida e voltar-se contra o primeiro recebedor para discutir seu prejuízo. Não será suficiente, portanto, a sustação e, muito menos, o registro de ocorrência. Caso tenha convencido algum policial a registrar a famigerada “preservação de direitos”, além de ter consumido, em vão, seu próprio tempo e seus recursos materiais, terá, em prejuízo da sociedade, consumido pelo menos seis folhas de papel (quantidade de vias impressas) e a respectiva tinta ou fita para impressão; no mínimo dez minutos para narrar o fato (alguns são tão complexos que demandam muito tempo para a compreensão) e outros dez para aguardar a impressão (normalmente feita em impressoras matriciais); o tempo de espera de alguém que eventualmente esteja aguardando para efetivamente registrar um crime sofrido; alguns minutos do escrivão para lançar a ocorrência em livros, distribuir suas vias em pastas e remetê-la ao Delegado; outros preciosos minutos para o Delegado analisá-la e normalmente decidir pelo arquivamento em face da inexistência de crime a ser apurado e, por fim, mais um pouco da atenção do escrivão para arquivá-la na pasta própria e registrar o arquivo no livro próprio, isso tudo em meio ao atendimento de outras pessoas e de telefonemas, monitoramento do rádio e, principalmente, aos imprevistos que surgem a toda hora no cotidiano policial.
         Otimizemos, portanto, o uso da estrutura policial; saibamos das desvantagens em recorrer a ela no caso de sustação de cheques que já estão em posse de terceiros de boa-fé; e divulguemos a suficiência da declaração feita ao banco!
         Para evitar todos os transtornos, nada melhor do que nominar o destinatário no corpo do cheque e cruzá-lo para impedir o endosso, além de escrever no seu verso o motivo do repasse (ex.: referente instalação de um vaso sanitário); sempre exigir recibo e notificar o portador por escrito, com recibo ou aviso de recebimento, acerca da sustação e de seus fundamentos.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Delegado de Polícia de Guarantã(SP)
Responsável pelas Delegacias de Pongaí e de Uru
(publicado no Getulina Jornal de 19/3/2006)

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