Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

2 de set. de 2012

Mancha



Indiciamento – o que é? O texto é de 2006. Hoje a Polícia Civil já não utiliza aquele software que não possibilitava, por ex., classificar o indivíduo como “averiguado”. De qualquer forma, se você quiser saber mais sobre o indiciamento, vale a pena conferir...
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Mancha
Tenho aversão à excessiva burocracia que rege a persecução penal e sou favorável a soluções práticas, muitas vezes verbais, para parte das situações que chegam ao conhecimento da Polícia.
No que tange à técnica procedimental, no entanto, gosto de compreender o exato sentido técnico de cada palavra antes de adotá-la em documentos oficiais.
Costumo ter cautela ao classificar as pessoas envolvidas em cada ocorrência. Pode parecer preciosismo, mas o caso é que muitas vezes se adotam nomes para designar coisas ou pessoas sem que se saiba, exatamente, o sentido das tais designações.
O termo “indiciado”, por exemplo, é usado com mais freqüência do que deveria. Quando alguém é apontado como autor de crime, naturalmente a incriminação se constitui um indício contra tal pessoa. O indiciamento a que a lei se refere, no entanto, exige mais do que um mero indício: requer suficiência de indícios, um conjunto de indicativos da autoria do crime. Para efeitos penais, considera-se indiciamento a atribuição, por parte do Delegado de Polícia, da autoria de uma infração penal a determinada pessoa. Tal atribuição é provisória, pois sujeita à análise, via de regra, do Promotor de Justiça, que pode denunciar o investigado por outro crime ou mesmo requerer o arquivamento da investigação, tendo em vista sua atribuição constitucional para a promoção da ação penal pública.
Fico especialmente preocupado com a má-utilização do termo “indiciado” nos boletins de ocorrência, visto que normalmente são confeccionados com base em informações preliminares que de início não são objeto de nenhuma verificação. Os destinatários dos boletins de ocorrência da Polícia Civil, notadamente daqueles elaborados por intermédio do software IDP, em uso na maioria das Delegacias (porque propicia impressão mais rápida em impressoras matriciais do que os textos do tipo Word), já devem ter reparado que basta a comunicação de um ato criminoso e a conseqüente indicação da autoria para que a mencionada pessoa figure como “indiciada” no documento.
O problema é que o citado software, que carece da devida técnica, oferece um rol limitado de opções para a classificação das partes envolvidas e deixa de trazer opções mais “brandas”, como “investigado”.
Como já dito, não basta que a Autoridade Policial esteja movida por mera suspeita para decidir pelo indiciamento. É necessário que disponha de indícios suficientes sobre a autoria, que esteja efetivamente convencida depois da análise de todo o conjunto probatório. A partir de então o indiciado deverá ser interrogado e formalmente identificado, sendo certo que se não portar documento, deverá ser identificado dactiloscopicamente. Suas garantias serão reforçadas, mormente o direito de ficar calado e de não produzir prova contra si mesmo. O registro do indiciamento passará a figurar no banco de dados da Polícia e qualquer Delegacia do Estado, ou mesmo de outros Estados, terá acesso a tal informação. Ainda que haja posterior arquivamento do inquérito a pedido do Ministério Público e que o investigado, antes de ser condenado, continue tendo acesso ao seu atestado de antecedentes sem qualquer menção à investigação, diante de qualquer policial o indivíduo será visto sempre com reservas em razão do registro que continuará pairando sobre o seu nome no banco de dados da Prodesp. Alguns Juízes, mencione-se, chegam até mesmo a considerar os indiciamentos como maus antecedentes em processos futuros... Imagine o efeito de um indiciamento injusto por estupro?
Justamente pela amplitude dos efeitos do indiciamento é que o Delegado deve analisar com prudência as provas colhidas e, em qualquer caso, justificar pormenorizadamente a solução que adotar.
É bem por isso que nos boletins de ocorrência jamais se deveria apontar alguém, diante da mera notícia de crime, como “indiciado”. Infelizmente a limitação técnica do software IDP, como já dito, às vezes impõe a injusta rotulação, sendo mais coerente adjetivar a pessoa reclamada como “averiguada”, termo menos agressivo do que “investigado”. Neste caso é melhor “pecar pela falta do que pelo excesso”.
Não podemos nos esquecer, ainda, de que dezenas de notícias falsas são levadas diariamente ao conhecimento da Polícia, o que exige ainda mais cautela do policial antes de “rotular” cada pessoa envolvida, até mesmo para que não se faça prejulgamento de ninguém.
Igualmente não se justifica que a designação “indiciado” seja adotada na grande maioria das capas dos inquéritos policiais. Normalmente uma investigação começa com o boletim e prossegue com exames periciais, oitivas da vítima e das testemunhas. Muitas vezes o investigado é ouvido preliminarmente para que só então ao final, diante da análise global das provas, a Autoridade decida ou não pelo indiciamento. No ato da instauração, portanto, salvo casos excepcionais, ainda não há ninguém “indiciado”. Melhor seria que se fizesse constar “investigado”, designação mais “suave” do que a primeira. A determinação de indiciamento exarada na portaria do inquérito, seja porque não se tem uma visão geral do ocorrido, seja porque normalmente é carente de fundamentação, geralmente prejudica o investigado. Em muitos casos acaba sendo tido como resultado de uma precipitação, pois até mesmo a confissão inicial do investigado pode ser revertida, revelada como falsa ou como objeto de coação no curso do inquérito.
Na dúvida, portanto, o Delegado deve concluir o inquérito sem indiciar ninguém, ou seja, sem dizer formalmente se entende que o investigado foi mesmo o autor do delito. O não-indiciamento deve ser adotado, da mesma forma, quando não se tem certeza sequer se houve delito (evidências de legítima defesa ou da insignificância da ação etc.). Em qualquer caso, a fundamentação é essencial. Alguns Delegados, equivocadamente, entendem que não indiciar significa não exercer a parcela de poder que o Estado lhes deferiu; que deixar a decisão para o Promotor possa significar insegurança ou insuficiência de conhecimento. Esquecem-se, todavia, das conseqüências que a decisão provoca na vida do investigado e de que o exercício de qualquer poder implica, antes de tudo, em perigosa responsabilidade. Ter o poder de decidir nem sempre significa deter conhecimento para tanto, qualquer que seja a atividade exercida. Decidir bem é o que mais importa. O indiciamento não pode ser utilizado como instrumento de vingança quando a Autoridade é incapaz, qualquer que seja o motivo, de produzir provas suficientes. As divergências de opinião são comuns no Direito. Na dúvida, deve-se deixar que o Promotor analise os autos, pois pelo menos se ele convencer o Juiz sobre a necessidade de arquivamento, não restará, nos dados cadastrais do investigado, a “mancha” decorrente do indiciamento que poderia ter sido evitado.
No mais, principalmente aos órgãos de comunicação, recomendo que o termo “indiciado” seja adotado somente quando corresponda à real situação jurídica do investigado, por considerar que qualquer pessoa está sujeita a figurar injustamente em um boletim de ocorrência.
Se o uso de termos equivocados para a designação das pessoas não despertasse tanto incômodo (além de milhares de ações penais e indenizatórias, cabíveis, inclusive, quando manifesta a desnecessidade do indiciamento), não depararíamos todos os dias com confusões motivadas por “simples” apelidos...
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Delegado de Polícia de Guarantã
Responsável pelas Unidades de Pongaí e de Uru

(publicado no Getulina Jornal de 8/10/2006 e no Correio de Lins de 30/11/2006)