Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

2 de set. de 2012

E agora, Doutor?

E agora, Doutor?
         Nos últimos dias atuava no Plantão Policial de Lins quando policiais militares me apresentaram três indivíduos com os quais haviam apreendido, em momentos distintos, porções de maconha.
         Segundo os policiais, durante a observação de uma casa apontada como ponto de tráfico, eles conseguiram identificar dois compradores que foram abordados logo depois das aquisições. Os encontros da droga em poder deles e a conseqüente confirmação do tráfico permitiram, ato contínuo, que a equipe desembarcasse na residência do vendedor e então o detivesse, mesmo porque estocava mais uma porção da mesma substância.
         Em relação ao morador, não havia dúvida de que seria preso em flagrante por tráfico de drogas, diante da suficiência de elementos de convicção: provas testemunhais da venda, apreensões em poder dos clientes e do próprio vendedor e, principalmente, condenações anteriores pelo mesmo crime. Além do mais, as embalagens e os formatos das porções encontradas eram absolutamente idênticos.
         No tocante aos compradores, era preciso aferir as suas condições (traficantes ou simples usuários possuidores), e em princípio a quantidade da droga (43 e 70 gramas, respectivamente) depunha em seu desfavor, apesar de este não ser o único critério para a avaliação.
         Cientifiquei ambos de que estavam sendo investigados pela posse da droga e que, por isso, tinham o direito constitucional de permanecerem calados durante suas inquirições. Disse-lhes, ainda, que se no passado havia disposição expressa no Código de Processo Penal acerca da possibilidade de interpretar o eventual silêncio em prejuízo da própria defesa; atualmente há previsão justamente do contrário, ou seja, no sentido de que o silêncio não poderia prejudicá-los, até mesmo em face da previsão do direito ao silêncio pela Constituição Federal. Informei-lhes, no entanto, que a confissão, caso optassem por ela, figurava no art. 65 do Código Penal como circunstância atenuante da pena.
         Nenhum deles acatou a sugestão de acionar advogado, em pese a aparente condição de fazê-lo. Preferiria que o tivessem feito...
         À medida que eu os orientava, eles analisavam algumas possibilidades. Como foram detidos em posse da droga e abordados justamente porque tinham sido vistos a adquirindo, pouco adiantaria negar alguma coisa. Em contrapartida, se confessassem, apesar da benesse na fixação de pena, comprometeriam o vendedor, pessoa que lhes inspirava certo temor pela própria condição de traficante. Sob outra ótica, se silenciassem sobre as invocadas condições de usuários, poderiam ser equiparados ao traficante principal, posto que as quantidades apreendidas lhes permitiam revender a droga.
         “E agora, doutor?” Era a indagação, muito comum no filme “Carandiru”, que eu mais ouvia durante aquela madrugada... Expliquei-lhes que não assumiria a responsabilidade pelas decisões de prestar ou não os esclarecimentos por escrito, pois quaisquer que fossem as escolhas, posteriormente alguém poderia criticá-las e sugerir parcialidade nas minhas sugestões. Cada pergunta recebida eu devolvia da seguinte maneira: “‘E agora’, digo eu, pois tenho a obrigação legal de fundamentar minha decisão com base no que está nos autos, e não no que informalmente estão me dizendo...”. Não posso negar certa aflição em decidir o que seria de ambos sem os respectivos pronunciamentos...
         Instalou-se uma longa conversa (o registro da opção pelo silêncio teria sido muito mais prático!) e eu acumulava as condições de Delegado e de imparcial orientador, principalmente porque a transparência inspirava confiança aos dois detidos. E não poderia ser diferente, porque a função da Autoridade Policial não é a de acusar, mas a de investigar, a de tentar se aproximar o quanto possível da verdade e de oferecer suas convicções à Justiça, ainda que o investigado se beneficie com o trabalho investigativo.
         Ao mesmo tempo em que seriam interessantes formais indicações do traficante por parte dos compradores (que já o tinham delatado espontânea e informalmente, mas avaliavam o custo-benefício de fazê-lo por escrito), solidarizava-me com os justificáveis temores que externavam e com o arrependimento dos abordados. “Já não tenho mais idade para isso”, “e se meus clientes descobrirem”, lamentavam os reféns do vício com os olhos lacrimejantes...
         O meu relativo desconforto somente cessou quando ambos decidiram enfrentar o problema: confessaram as aquisições e as condições de usuários há longos anos; indicaram o vendedor (que tinha sido preso quase que concomitantemente, e sem a interferência dos compradores) e justificaram que para não se exporem, costumavam adquirir maconha que os servissem por algum tempo. Convenci-me de que eram usuários, pois os únicos antecedentes criminais que ostentavam referiam-se justamente às posses de drogas por ambos. Acatei as justificativas e ambos foram compromissados e em seguida liberados. Desta maneira, auxiliaram a si próprios (sujeitar-se-ão, acaso condenados, a penas condizentes com a sua situação) e à Justiça; e o mais importante é que agiram espontaneamente, cientes dos direitos e das conseqüências dos seus atos. Talvez eu teria de ter tomado uma decisão que a princípio entendo que seria injusta em razão do cogitado silêncio dos detidos, pois apesar de o silêncio, como já dito, não poder ser utilizado para prejudicar, em razão dele eu teria certa dificuldade para justificar a solução que efetivamente tomei.
         É por isso que a doutrina dominante defende o caráter misto do interrogatório: meio de prova e ao mesmo tempo meio de defesa.
         Nem sempre a confissão reflete a verdade (há casos de coação, de tentativa de favorecer terceiro etc.), mas, aliada a outros indícios, não há dúvida de que demonstra arrependimento e de que traz tranqüilidade àquele que vai decidir. Assim, em que pesem algumas divergências doutrinárias, na maioria dos casos deve influir favoravelmente ao réu na futura decisão judicial, inclusive, na minha opinião, quando o investigado, antes mesmo dela ocorrer, já fizer jus à pena mínima prevista em lei, sob pena de, uma vez primário e de bons antecedentes, ele não se sentir estimulado a proferi-la.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Delegado de Polícia de Guarantã
Responsável pelas Delegacias de Pongaí e de Uru
(publicado no Getulina Jornal de 26/2/2006)