Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

1 de set. de 2012

Tiro pela culatra

Tiro pela culatra
         Nas ações criminais há momento apropriado para que o Advogado arrole testemunhas de defesa.
         Via de regra, o Advogado constituído (contratado) aproveita e relaciona o máximo de testemunhas previsto em lei. O bom Advogado dativo (custeado pelo Estado, para quem não pode contratar) costuma tentar contatar o réu ou família dele para indicar testemunhas. Alguns poucos Advogados dativos acomodados (para não dizer outra coisa) costumam alegar, a meu ver, injustificadamente, que não foram procurados pelo réu ou familiares para a indicação de nomes, como se não devessem, por força do juramento que fizeram quando se inscreveram na Ordem dos Advogados e das regras do Convênio de Assistência Judiciária, irem ao encontro do réu (mormente se este estiver preso, contatando a direção do estabelecimento prisional) ou, por qualquer meio, dos familiares (normalmente encontráveis no endereço e/ou pelo telefone constante no processo).
         As testemunhas de defesa ou informam que presenciaram os fatos em apuração ou situações precedentes ou subseqüentes, mas relacionadas; ou que apenas ouviram comentários sobre eles; ou que sequer tiveram conhecimento do objeto da apuração. Neste último caso, costumam ser arroladas apenas para se pronunciarem sobre a pessoa do acusado e o próprio Advogado costuma se adiantar: “Doutor, são apenas referenciais”.
         Particularmente, costumo explorar bastante os relatos das testemunhas que apenas referenciam a pessoa do acusado. É preciso colher subsídios para saber até que ponto estão aptas a atestarem a idoneidade do réu, tal como determina o art. 203 do Código de Processo Penal.
         É relativamente comum uma testemunhal referencial dizer que o réu é de boa índole mesmo que ele possua uma vasta folha de antecedentes e condenações. Nesse caso, se a intenção de falsear ou omitir a verdade for manifesta, se estará diante do crime de falso testemunho. Caso contrário, a testemunha no mínimo é desinformada e as informações serão recebidas com reservas.
         Há testemunhas que propriamente não omitem a verdade, mas apenas desconhecem por completo a conduta do acusado. Neste caso, surge na cabeça do Magistrado a seguinte indagação: será que não havia mais ninguém para vir depor? Tempos atrás, por exemplo, uma senhora de mais de 60 anos tentava inocentar um acusado de tráfico. Segundo as provas colhidas, ele permanecia por todas as madrugadas nas imediações de um bar, onde foi preso portando “crack”... A tal senhora, no entanto, se limitou a dizer que não sabia de nada que desabonasse o réu. Instigada por mim, arrematou: “Costumo dormir todos os dias no máximo às 21 horas...”. No mínimo, houve erro de estratégia da defesa em arrolar alguém que não “freqüentava a noite”...
         Uma situação inusitada aconteceu numa audiência que também versava o tráfico de drogas... O réu estava sendo investigado havia algum tempo por envolvimento no tráfico. A Advogada nomeada tinha confiado no potencial das testemunhas que o réu ou a família dele tinha fornecido e não se ateve ao perfil das pessoas indicadas. A primeira testemunha entrou na sala. Na Magistratura, mais do que nunca, não se pode fazer pré-julgamento de ninguém, mas o depoente, desleixado no jeito de se vestir, de andar e de falar, bem como descuidado com a aparência, aparentava envolvimento com drogas. A própria Advogada se assustou com o que viu. Questionado, o depoente admitiu que já tinha sido usuário de maconha (em Juízo é sempre assim: o vício sempre já foi superado, independente do grau da dependência, sem ajuda de qualquer tratamento! Todo mundo é ex-viciado!). Ao longo do depoimento, perguntado sobre o acusado, o depoente, de forma um tanto quanto debochada, assim se pronunciou: “Cara, nunca ouvi falar nada sobre ele”. Em seguida eu o adverti que a forma de tratamento que usou não era adequada para o momento e a Defensora demonstrou clara insatisfação com o “estilo” do depoente e com o seu relato. A oitiva se encerrou sem outros “incidentes” e a Advogada, em seguida, dispensou outras duas testemunhas e desabafou: “Vou desistir antes que aconteça o pior”, deixando claro que o primeiro testemunho, para não dizer outra coisa, não tinha sido muito interessante para o seu cliente.
         Noutro caso, o réu portador de nanismo alegou que nada tinha a ver com droga apreendida no chão do bar em que foi abordado. Alegou que apenas jogava sinuca no local. Ocorre que o seu cunhado foi arrolado como testemunha de defesa e quando o questionei sobre se o acusado jogava sinuca ele sorriu e arrematou: “Não dá por causa do tamanho dele”... Foi um silêncio geral...
         Lembrei-me dos fatos e me inspirei a escrever assim que li um trecho do livro “Código da Vida”, do Advogado Saulo Ramos. O autor contou como desenhou a estratégia inicial de atuação para defender um pai cujo direito de visitar estava sendo discutido na Justiça. A demanda tinha se iniciado por conta de alegação, feita pela ex-esposa, de que o pai tinha abusado sexualmente dos filhos. O eminente jurista bem sintetizou os riscos que envolvem a eleição de testemunhas e o grau de importância da escolha: “Eu queria dos dois uma investigação completa: vida do casal antes da separação, período posterior, comportamento de ambos. Nós mesmos teríamos que descobrir quem poderia testemunhar, já que testemunhas trazidas pelos clientes nem sempre ajudam o bastante. Acabam sendo testemunhas de canonização. Só elogiam a santidade da parte. Precisávamos de fatos, e fatos relevantes, capazes de influir na decisão da lide, mediante demonstração inequívoca de que nosso cliente não era culpado” (p. 35).
         Em suma: a cautela é indispensável para que o tiro não saia pela culatra!
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito de Cafelândia(SP)
(publicado no Correio de Lins de 21/10/2008 e no
Getulina Jornal de 19/10/2008)