Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

2 de set. de 2012

Direito de “transar”?

Direito de “transar”?
         É evidente que o termo um tanto quanto coloquial demais foi utilizado no título tão-somente para chamar a atenção (e até porque foi assim que se pronunciou uma pessoa que nos procurou recentemente), mas será que o marido detém o direito de manter relacionamento sexual com a esposa no momento em que bem entender?
         Não é bem desta maneira...
         Não foi assim que pensava um indivíduo que chegou a agredir sua companheira na cidade de Guarantã(SP).
         O casal havia se desentendido na noite anterior e por volta das 06 horas da manhã, quando acordou para ir ao trabalho, o rapaz exigiu que sua parceira mantivesse consigo relação sexual. Diante da negativa, ele a segurou pelos cabelos e a atingiu com tapas que provocaram um corte na parte interna dos lábios.
         Inconformada, a vítima procurou pelo auxílio da polícia judiciária.
         A princípio, a situação foi classificada como lesão corporal leve, mas a riqueza de desfechos que a “exigência” poderia ter propiciado nos motivou a fazer breves comentários.
         O Código Civil trata do assunto nos arts. 1556 e 1557. O primeiro diz que o casamento pode ser anulado por erro essencial quanto à pessoa do outro. O segundo inclui entre os erros essenciais a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável, que inclui a impotência para o ato sexual, quer do homem, quer da mulher. Para a lei, a frustração da expectativa de satisfação sexual torna intolerável a vida em comum. A falta de atividade sexual decorrente de defeito físico, portanto, pode fundamentar pedido de anulação do casamento. O mesmo Código estabelece que pode fundamentar a separação judicial qualquer ato que importe grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum (art. 1572). Ao avaliar cada caso, o Poder Judiciário avaliará decidirá pela existência ou não de negativas reiteradas e injustificadas para o ato sexual em número suficiente para fundamentar a ruína do casamento. Segundo Carlos Roberto Gonçalves, “se um dos cônjuges, depois de certo tempo, passar a negar-se à prática do ato sexual, dá causa, também, à separação judicial, por infração ao dever de coabitação” (Direito de Família, Ed. Saraiva, 2002). As recusas isoladas, eventuais e/ou justificadas, é evidente, não serão bastantes à separação, e é por isso que cada caso deverá ser minuciosamente estudado.
         No âmbito criminal, no entanto, a situação merece outro tratamento, tudo porque a mulher não pode ser compelida fisicamente ao ato. Já houve decisões judiciais no sentido de que a investida do homem não poderia ser classificada como crime, mas nosso tribunais têm decidido que a relação forçada configura estupro. No caso em análise, o indivíduo não forçou a cópula e, portanto, nem sequer iniciou qualquer ato executório do hediondo delito, motivo pelo qual o fato mereceu classificação inicial infinitamente mais branda.
         Caso tivesse matado a companheira por causa da negativa dela sem qualquer espécie de investida para o relacionamento forçado, o fato seria classificado como homicídio qualificado e também sofreria o rigor da Lei dos Crimes Hediondos, diante da torpeza com que teria movido sua ação delituosa, ou seja, diante da repugnância do motivo à luz dos nossos costumes.
         O mesmo desfecho, desta vez consumativo de atentado violento ao pudor (art. 214 do Código Penal), se daria no caso de o indivíduo ter forçado a companheira à prática de qualquer outro ato libidinoso diverso da conjunção carnal, como o sexo anal e o sexo oral.
         Não existe propriamente, portanto, um “direito ao relacionamento sexual”, mas uma mera expectativa de que ele ocorra, que, nos termos da lei civil, uma vez não correspondida, enseja a adoção de medidas judiciais para o desfazimento legal da relação afetiva, mas nunca o uso da força ou de grave ameaça.
         Havendo notícia de qualquer espécie de constrangimento, este deverá ser apurado, a fim de que se assegure à mulher a plenitude do gozo da sua liberdade sexual. Em alguns casos, principalmente quando não houver efetivo emprego de violência física, em razão da apuração, pela sua própria natureza, ter o condão de impor relativo constrangimento à vítima, a decisão sobre a instauração do procedimento ficará a cargo dela.
         As mesmas considerações dizem respeito às eventuais coações que porventura afetarem o homem, com exceção da incidência do delito de estupro, que somente existe quando a vítima for mulher.
         Em qualquer caso, quando o motivo torpe já não estiver previsto no dispositivo penal (como é o caso do homicídio qualificado), normalmente incidirá, ainda, uma causa de aumento sobre a pena originariamente prevista no delito que vier a ser investigado.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Delegado de Polícia de Guarantã(SP)
(publicado no Getulina Jornal de 16/1/2005)