Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

2 de set. de 2012

Anencefalia e interrupção da gravidez – parte III

Anencefalia e interrupção da gravidez – parte III
         Estudemos a disciplina legal e regulamentar dos transplantes e as previsões relativas ao fato anencéfalo.
         A conclusão do legista Genival França sobre o que é a morte (“ausência de sinais de vida organizada”) vai ao encontro do que prevê a legislação brasileira sobre transplantes.
         A Lei Federal nº 9.434/1997 dispõe sobre a retirada de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. Ela foi regulamentada pelo Decreto 2.268/1997. A morte encefálica é imprescindível, mas, como nem poderia ser diferente, é dispensável a “morte circulatória”, ou seja, a cessação da circulação sangüínea.
         O Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução CFM nº 1.480/1997, disciplinou a atuação médica. Dispôs que “a morte encefálica deverá ser conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida” (art. 3º). Nas justificativas, destacou: “CONSIDERANDO que a parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte, conforme critérios já bem estabelecidos pela comunidade científica mundial; CONSIDERANDO o ônus psicológico e material causado pelo prolongamento do uso de recursos extraordinários para o suporte de funções vegetativas em pacientes com parada total e irreversível da atividade encefálica; (...) CONSIDERANDO a necessidade da adoção de critérios para constatar, de modo indiscutível, a ocorrência de morte; CONSIDERANDO que ainda não há consenso sobre a aplicabilidade desses critérios em crianças menores de 7 dias e prematuros...
         A Portaria GM/MS nº 487 de 2/3/2007, do Ministério da Saúde, que tratou da “remoção de órgãos e/ou tecidos de neonato anencéfalo para fins de transplante ou tratamento”, deixou bem claro que “a retirada de órgãos e/ou tecidos de neonato anencéfalo para fins de transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de parada cardíaca irreversível”. Considera-se neonato a criança recém-nascida.
         Já há quem defenda que o feto anencéfalo na verdade já está morto no ventre da mãe, pois não é dotado de qualquer atividade cerebral. Nesse sentido: “A mulher é a mãe da humanidade e é por isso que o humanismo reverencia este ser humano, sabendo que há o elo básico de interdependência entre a mulher e o feto. Após o diagnóstico da anencefalia, a mulher tem a certeza de que não está gerando vida, mas morte, para não dizer que é durante toda a gestação do anencéfalo um caixão ambulante. Assim, não ocorrerá o bem-estar físico, psicológico e social dela porque o seu sentir e os seus olhos estão voltados para a morte. A vida inviável a deixou mentalmente ferida. (...) forçar a mulher pobre a levar no ventre um ser sem vida até o final da gravidez é uma das mais profundas feridas que podem ser infligidas à sua mente e ao seu corpo... Magistrados não análgicos nem dogmáticos autorizarão (sem culpa nem remorso) a interrupção da gestação de feto possuidor de malformações congênitas ou com enfermidade incurável. Assim decidindo, não fazem somente a justiça inadiável que o caso concreto pede, mas também homenageiam as suas mães e as mulheres despossuídas, alienadas, exploradas e maltratadas por todos os dogmas...” (Autorizar aborto é preservar o princípio da vida. Nogueira Júnior, Antonio de Assis. Disponível em: www.conjur.com.br ).
         De qualquer forma, ainda que não se acate o posicionamento anteriormente exposto e que não se conclua que o feto anencéfalo não desfruta de vida, o que não se duvida é que ele é inviável e o que não se discute é que o óbito (na sua acepção mais conhecida), se não acontece no ventre ou durante o parto, o sucede, já que o feto ou se sustenta biologicamente da sua ligação com a mãe ou, mecanicamente, por pouco tempo, do aparato tecnológico que por vezes transmite aos demais a falsa (e dolorosa) impressão de que ele será capaz de “sobreviver”.
         Enfim, se alguém me pedisse uma definição do feto anencéfalo, na minha humilde opinião de bacharel em Direito, mas com base nas pesquisas realizadas, eu assim me pronunciaria: o fato anencéfalo é um ser vivo privado, autonomamente, ou seja, sem auxílio mecânico ou suporte da estrutura materna, de desfrutar das funções vitais indispensáveis e em processo indesviável e inevitável de morte iminente. E me atreveria a complementar: se a vida e a morte pudessem ser graduadas, considerando que a existência do cérebro viável é pressuposto para a aferição do grau de higidez e/ou de comprometimento e até para a detecção da morte para fins de transplante, o feto portador de anencefalia é menos vivo (ou mais morto) do que o indivíduo com morte encefálica declarada.
         (confira a próxima edição)
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito de Cafelândia(SP)
(publicado no Correio de Lins de 5/5/2009)