Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

2 de set. de 2012

Preconceito

Preconceito
         Há poucos meses assisti ao filme “Animal”, exibido pela Rede Globo, e me diverti bastante com o cômico enredo.
         Na oportunidade, cheguei à conclusão que as melhores comédias do cinema retrataram atrapalhados policiais (prefiro nem tentar saber o porquê de tamanha afinidade!), a exemplo daqueles encarnados por Leslie Nielsen em “Corra que a Polícia vem aí” e dos que estrelaram “Loucademia de Polícia”. Deixa para lá...
         No filme ora comentado havia um personagem que a todo momento ilariamente dizia: “Por que está me olhando assim? Só porque sou negro?”.
         No domingo passado as câmeras televisivas flagraram um jogador de futebol chamando outro de “macaco” durante desentendimento havido no jogo Atlético Mineiro versus América/MG.
         De vez em quando a Polícia recebe reclamações relacionadas ao uso de expressões dadas como racistas. No penúltimo plantão que coordenei em Lins foi registrado um desentendimento entre um caminheiro e funcionários de uma empresa. O primeiro dizia que os últimos olhavam para a sua esposa na boléia do caminhão. Os demais negavam qualquer comentário sobre a mulher e alegavam que durante o “bate-boca” foram adjetivados de “macacos”. Ambos eram negros. O caminheiro confirmou o xingamento.
         A Constituição Federal estabelece como um dos princípios da República Federativa do Brasil o repúdio ao racismo. No art. 5º, inciso XLII, prevê que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.
         A imprescritibilidade significa que o autor do delito poderá ser processado e condenado a qualquer tempo, diferentemente do que ocorre com outros delitos.
         O art. 140 do Código Penal trata da injúria, que se configura quando alguém atribui a outrem uma qualidade negativa (ex. prostituta), ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro. O § 3º reza que se a injúria consiste na utilização de elementos preconceituosos ou discriminatórios referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, a pena será de reclusão de 1 a 3 anos, e multa. Ele foi introduzido pela Lei Federal 9.459/1997 e alterado pela Lei Federal 10.741/2003, e tem sido criticado pela pena excessiva. Cezar Roberto Bittencourt alerta que as penas são mais gravosas do que as previstas para o homicídio culposo (ex.: matar alguém com um disparo acidental), e que por isso “a própria proteção jurídica é preconceituosa” (Tratado de Direito Penal, Vol. 2, Parte Especial. São Paulo : Saraiva – 3ª ed. revista e ampliada, 2003, p. 385).
         O art. 20 da Lei Federal 7.716/1989 também trata do assunto: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional - Pena: reclusão de um a três anos e multa”. Ele foi incluído pela mesma Lei 9.459. Aliás, esta lei abrange crimes resultantes de discriminação ou preconceito não só de raça ou cor, mas de etnia, religião ou procedência nacional. Várias situações foram criminalizadas, dentre elas a negativa de emprego e de acesso ou atendimento em qualquer estabelecimento comercial ou meio de transporte.
         Não se pode atribuir a um mero desentendimento a prática de “racismo” (até porque não há um crime que tenha recebido especificamente este nome). Até mesmo a injúria qualificada requer, para a sua configuração, que o autor externe especial fim de discriminar o ofendido em razão da raça ou da cor.
         É preciso ter cautela na classificação. Da mesma forma que o personagem do filme, alguns negros discriminam a si próprios ou tendem a entender como racistas quaisquer abordagens e/ou situações. No caso atendido no plantão linense, tive a informação de que os reclamantes nem desejavam registrar o ocorrido, mas que foram “instigados” pelo esposo de uma advogada que tencionava fazer uso do registro para interpor ação judicial.
         Posto isto, diante de uma pena desproporcional (se comparada a outras), à Autoridade incumbe fazer um juízo de valor para interpretar o ocorrido e verificar se não houve provocação do suposto envolvido; se ele não está sendo manipulado por outrem; se não há “sensacionalismo” por parte da imprensa ou de associações de classe e se, de fato, o xingamento tem caráter preconceituoso. De se ressaltar que, no caso da injúria, o juiz pode deixar de aplicar a pena quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente o xingamento; ou no caso de retorsão imediata que consista em outra injúria (art. 140, § 1º, do Código Penal).
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Delegado de Polícia de Guarantã(SP)
(publicado no Getulina Jornal de 20/3/2005)