Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

2 de set. de 2012

Vou morrer e não vou ver tudo...

Vou morrer e não vou ver tudo...
         O atendimento ao público, qualquer que seja a profissão que você exerça, é uma fonte inesgotável de situações curiosas...
         Por mais que se lide com pessoas às vezes menos esclarecidas, algumas indagações chegam à beira do ridículo e acabam sendo lembradas pelo resto da carreira.
         Recordo-me do dia em que um servidor público dirigiu-me uma indagação que me fez ficar absolutamente sem reação por alguns instantes, como se morto estivesse.
         Logo depois do nosso diálogo é que fui compreender o motivo da consulta ter sido formulada pelo telefone, e não pessoalmente.
         O interlocutor, logo depois de ter se identificado, revelou que há alguns anos tinha “perdido” um filho, posto que logo depois do nascimento a criança havia falecido numa cidade da região. Ele nem cogitava que seu descanso eterno poderia ser comprometido...
         Constatado o óbito, como não poderia ser diferente, o pai do falecido tomou as providências para o seu sepultamento. Como na ocasião não dispunha de túmulo de família no município do falecimento, o tal pai “emprestou” o túmulo da família de um conhecido.
         Ocorre que, decorrido o prazo para que o jazigo pudesse ser novamente utilizado, ou seja, chegada a hora da recolha dos ossos do cadáver, este mesmo pai pretendia tomar providências para “liberar” a cova, para deixá-la novamente à disposição do gentil amigo.
         Segure-se na sua cadeira. Neste momento ele teve a “brilhante” idéia de telefonar para a Delegacia e de inquirir-me: “O Sr. não poderia me dar uma autorização para eu receber os restos mortais do meu filho e ‘jogá-los num rio’?”.
         Perguntei a ele onde tinha ouvido falar na tal “autorização” e soube que a atendente do cemitério o tinha orientado naquele sentido.
         Pedi-lhe um tempo e telefonei para o citado cemitério. Eu precisava saber detalhes de tão esdrúxulo e desconhecido procedimento que, segundo o interessado, precisava contar com o meu consentimento. Só então fui informado pela atendente de que na verdade ela nunca havia recebido solicitação semelhante, mas que, ao recebê-la, simplesmente tinha “transferido a responsabilidade” para mim, tendo dito ao pai da criança: “Se o Delegado daí autorizar, eu lhe entrego os ossos para que faça o que for determinado pela Autoridade”.
         Voltei a falar com o interessado e disse a ele que, conforme havia sido anunciado pela atendente do cemitério, a “autorização” que solicitava não tinha nenhum amparo legal e jamais lhe seria fornecida.
         Naquele instante o rapaz contou que pretendia fazer aquilo para não ter que arcar com os custos da transferência dos restos mortais para o cemitério da cidade onde residia, custos estes que, tenho certeza, poderia suportar, mesmo que com a ajuda de familiares ou órgãos públicos. Alegou, ainda, que entendia possível jogar os ossos num rio porque já tinha visto uma reportagem sobre o arremesso de cinzas decorrentes de cremação no mar. Informei a ele que a cremação é um procedimento pautado em rigorosas regras que preservam o respeito aos mortos e a respeitam a saúde pública, e que não poderia ser comparada ao “arremesso” que planejava executar. Fi-lo entender, ainda, que não tinha sentido agir e muito menos pensar daquela maneira.
         Evidentemente, não foi muito difícil expor minhas razões.
         Sob o ângulo religioso, disse–lhe que deveria fazer o possível e o impossível para trazer os restos mortais para perto de sua família, a fim de que pudesse orar e cultuar, nos termos da sua crença, aquele que tivera sido “sangue do seu sangue”. É por isso que costumamos dizer que policiais, vez ou outra, notadamente em cidades pequenas, acabam tendo que se pronunciar como se religiosos, assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras, reconciliadores, julgadores ou padrinhos de casamentos eles fossem...
         No campo da saúde pública, perguntei a ele: “Já imaginou se um dia o Sr. fosse pescar e deparasse, na margem do rio, com crânios, costelas e outros fragmentos ósseos que alguém, por conveniência, tivesse decidido arremessar nas águas?”.
         Por fim, ressaltei que até pelo fato de a legislação proteger o respeito aos mortos, aquela “brincadeira de arremessar ossos de cima da ponte” eventualmente poderia caracterizar alguma infração penal.
         É evidente que os esclarecimentos foram repassados com o respeito, a ponderação e a urbanidade que qualquer cidadão respeitador e ponderado merece, independentemente da estranheza que me causou a pergunta.
         Depois daquele dia, nos moldes do conhecido ditado popular, eu tive a certeza de que “vou morrer e não vou ver tudo...” Aliás, todos nós um dia nos sujeitaremos à morte. Só espero que nossos restos sejam respeitados, de forma a compensar o descaso recebido, em vida, de alguns dos nossos governantes e, imotivadamente, de algumas pessoas que muitas vezes estão à nossa volta.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Delegado de Polícia de Guarantã(SP)
(publicado no Getulina Jornal de 24/4/2005)