Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

2 de set. de 2012

Como interrompi um velório...

Como interrompi um velório...
         A experiência que a atividade policial nos proporciona é realmente fascinante. A variedade das situações que enfrentamos durante o exercício da dinâmica profissão, acreditamos, não é proporcionada por nenhuma outra.
         Nos últimos quinze dias estive respondendo pelo expediente da Delegacia de Polícia de Guaimbê e deparei com o caso de um cego que foi furtado por um mudo. Imediatamente relembrei de algumas ocorrências exóticas que já vivenciei e resolvi deixar de lado, nesta edição, o trabalho de prevenção, para tornar pública uma situação bastante curiosa.
         Tarde fria de terça-feira, quinze de setembro de mil novecentos e noventa e oito, 32º Distrito Policial, Bairro de Itaquera, Zona Leste de São Paulo(SP). Na condição de Delegado Plantonista, por volta de 16h50min recebi um telefonema. Uma senhora que não quis se identificar revelou que um cadáver estava sendo velado no Cemitério de Itaquera, e que seria enterrado às 17 horas. A viúva teria exibido no setor administrativo uma cédula de identidade com dados falsos do falecido. Mais uma vez estava eu diante de uma situação que exigia a tomada de decisão em poucos minutos...
         Imediatamente requisitei o concurso de alguns Investigadores e nos deslocamos para o local. O indivíduo, até então identificado como Alcides Santana Rocha, havia tentado cobrar uma dívida relacionada à venda de um carro e foi atingido por três disparos. Segundo os meus colegas de trabalho, que prestavam serviços há mais tempo naquele bairro, muitos criminosos estavam presentes no lotado velório.
         O corpo não poderia ser enterrado sem que a dúvida fosse sanada, sob pena de ser preciso exumá-lo logo depois. Sequer sabíamos, a princípio, se algum golpe contra seguradora estava sendo perpetrado (se estavam simulando a morte de algum segurado para o recebimento do prêmio). Solicitei a cédula de identidade à viúva e prontamente constatei sinais da falsidade: fotografia fixada incorretamente; impressão digital colhida com tinta para carimbo de cor vermelha etc. A farsa ficou imediatamente comprovada quando interpelamos algumas pessoas e descobrimos que o corpo era, verdadeiramente, de Wilson Ferreira Rocha, que provavelmente fazia uso do documento falso porque era “procurado”. Já era hora do enterro, mas expliquei a situação à família e solicitei à Administração do Cemitério que aguardasse a chegada de equipes de apoio que eu já havia solicitado.
         Algum tempo se passou até que desembarcou no local uma equipe do Instituto Médico-Legal. A inquietude era geral, mas se fazia necessário colher as impressões digitais do cadáver, pois através delas seria possível identificá-lo com absoluta precisão (as digitais, ao contrário das imagens, não sofrem alterações com o passar do tempo). Pedimos a todos que se retirassem da sala onde o caixão estava, e que somente a viúva e a mãe do falecido testemunhassem o nosso trabalho. A providência, apesar de imprescindível, foi drástica: pedi que as mãos do cadáver fossem “garimpadas” dentre as flores e que suas impressões digitais fossem colhidas ali mesmo, dentro da urna funerária. Ainda assim, foi melhor do que recolher o corpo e encaminhá-lo ao IML...
         Um ditado popular diz que “cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém”. Se o falecido nunca tivesse requerido a expedição de cédula de identidade no Estado de São Paulo, ou mesmo em qualquer outro Estado brasileiro (algumas pessoas passam a vida toda sem solicitar o citado documento), as impressões digitais não serviriam para nada, pois não existiria padrão para comparação. Posto isso, em atenção ao meu pedido, fotógrafos da Polícia se deslocaram da Zona Oeste, mais especificamente do Butantã, para retratar o rosto do cadáver. As flores que estavam ao redor da cabeça de Wilson foram retiradas para o aperfeiçoamento do foco. Duas fotografias foram extraídas, a decoração foi recomposta e o acesso à sala foi novamente liberado.
         Em meio às lágrimas da viúva e da genitora de Wilson, e sob as lentes das câmeras do Programa “Cidade Alerta” da Rede Record, as diligências se desenrolaram sem complicações. Houve somente um problema: o enterro só pôde ser consumado depois das 19 horas, e os holofotes da equipe de reportagem foram substituídos pelos faróis de alguns veículos que tiveram de ser posicionados nas imediações da cova reservada ao então já famoso cadáver...
         Naquela época o programa jornalístico era apresentado por João Leite Neto, que salientou a estranheza da providência, mas reconheceu: “O Delegado está fazendo o trabalho dele...”.
         Não sei se os antecedentes criminais de Wilson lhe iriam proporcionar imediato descanso depois da morte física, mas o certo é que a matéria ainda demorou um pouquinho para ser depositada na sua última morada.
         Seria cômico, se não fosse trágico... “Ossos do ofício...”.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Delegado de Polícia, Diretor da Cadeia Pública
e da 37ª Ciretran de Getulina(SP)
(texto publicado na edição de 31/05/2003 do
Jornal “Espaço Notícias” de Getulina)