Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

2 de set. de 2012

Anencefalia e interrupção da gravidez – parte IV

Anencefalia e interrupção da gravidez – parte IV
         Ao final das minhas pesquisas concluí que o fato anencéfalo é um ser vivo privado, autonomamente, ou seja, sem auxílio mecânico ou suporte da estrutura materna, de desfrutar das funções vitais indispensáveis e em processo indesviável e inevitável de morte iminente. Também entendi que se a vida e a morte pudessem ser graduadas, considerando que a existência do cérebro viável é pressuposto para a aferição do grau de higidez e/ou de comprometimento e até para a detecção da morte para fins de transplante, o feto portador de anencefalia é menos vivo (ou mais morto) do que o indivíduo com morte encefálica declarada.
         Em conseqüência, a mãe, antes do parto, cumpre apenas o papel que os aparelhos irão assumir depois dele, ou seja, a falta de percepção do feto em relação às coisas da vida se manterá inalterada depois que o cordão umbilical for seccionado. A proteção constitucional à vida, portanto, sem embargo das respeitáveis opiniões contrárias, já não impede a autorização judicial para a interrupção da gravidez.
         A normatização, conforme já exposto, prevê algum rigor para a retirada de órgãos do neonato (recém-nascido) anencéfalo.
         Todavia, a restrição (leia-se, a necessidade de parada respiratória prevista na portaria do Ministério da Saúde) certamente está mais adstrita à polêmica que envolve a anencefalia e à tentativa de, antes da decisão judicial final sobre o tema ou mesmo a sua regulamentação por lei específica, não fornecer subsídios aos médicos simpatizantes do aborto (que poderiam recorrer, por analogia, à permissão de transplantes para justificá-lo); do que propriamente à idéia, não manifestada até hoje, de reversibilidade do quadro clínico do anencéfalo.
         Confesso, aliás, apesar de não ser afeto aos conhecimentos médicos, que não consegui compreender a distinção de um indivíduo com morte cerebral daquele que sequer cérebro possui viável, para o fim de transplante de órgãos.
         O fato é que a citada portaria só agravou o sofrimento das mães, as quais acabam sendo obrigadas a acompanhar os neonatos por horas ou dias (já se tem a notícia de que até por meses) em unidades de terapia intensiva, atrelados a respiradores e outros equipamentos, na certeza de que as medidas protetivas serão inócuas, apenas paliativas, protelatórias da parada cardíaca, esta, sim, evento certo e iminente.
         E ao que parece, o parto natural ou ao final dos nove meses nada acrescentaria ao neonato, na medida em que sequer seria capaz de assimilar o evento e as suas conseqüências, tampouco as percepções decorrentes da sua condição de “vida” extra-uterina.
         Os respeitáveis posicionamentos contrários ao aborto do anencéfalo que se baseiam na proteção à vida, por isso, com a devida vênia, são questionáveis, seja porque a falta absoluta de atividade cerebral no ventre já pode fundamentar, para uns, a inexistência de vida, e para todos, a certeza de morte (que, como já vimos, é um processo que se inicia com a ausência daquela função cerebral); seja porque depois do parto o neonato, desprovido das funções cerebrais, somente preservará a circulação sangüínea se estiver indispensavelmente amparado por aparelhos, não aqueles biológicos de que se servia no ventre, mas os mecânicos criados pelo homem muitas vezes para salvar vidas, outras, apenas para prorrogar sofrimentos. Aliás, muitas discussões sobre a interrupção da “vida” (eutanásia etc.) somente passaram a existir depois da evolução tecnológica que a tem, em alguns casos, com exclusivamente, sustentado. Noutros tempos as teses protetivas sequer eram cogitadas, pois o desfecho do processo biológico da morte já iniciado, além de inevitável, era improrrogável...
         Não vejo o abortamento, por isso, como ofensa ao direito constitucional à vida, pois o anencéfalo, tal como acima defendi, nada mais é do que um ser vivo (porque foi outrora concebido e detém algumas funções biológicas) em processo de morte (porque a caminho da falência total das suas funções). E o fato de ter aparência humana não pode interferir na tecnicidade da decisão...
         (confira a próxima edição)
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito de Cafelândia(SP)
(publicado no Correio de Lins de 7/5/2009)