Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

1 de set. de 2012

Calvário de um “ex-pai”

Calvário de um “ex-pai”
         As audiências de Direito de Família são as que mais reservam situações inusitadas, pitorescas, emocionantes e tensas no cotidiano forense.
         Não tenho vergonha de dizer que certa vez chorei ao conduzir as partes (pai e avó materna) a um acordo sobre a visitação de uma criança cuja mãe vivia vegetativamente. Não me contive ao ter ciência de que a criança muitas vezes se sentava sobre a mãe no leito e chamava por ela... Por mais que tenha de decidir com a razão, o Juiz, felizmente, não é de ferro!
         Ainda que o Juiz exerça o poder de polícia nas audiências, a “lavagem de roupa suja” nem sempre pode ser evitada. Alguma bobagem sempre escapa da boca dos envolvidos.
         Noutros casos, casais civilizados se divertem com pequenas “alfinetadas” enquanto alinhavam, de forma urbana e às vezes bem-humorada, as separações.
         São muitas as nuances e não é sempre que o ambiente fica pesado. Recentemente, por exemplo, conduzi uma audiência sobre divórcio. Uma idosa senhora pretendia se divorciar do ex-marido que já não via havia cerca de trinta anos. Ele não foi encontrado para ser citado e não compareceu à audiência. “Ele me abandonou e voltou para o Norte”, explicou a requerente. Entendendo que havia espaço para a sempre bem-vinda descontração (a requerente já tinha constituído outra família e estava bem feliz com a sua situação atual etc.), comentei, em tom de brincadeira: “Se a senhora quiser, a Justiça lhe dará uma passagem para que possa revê-lo no Norte...”. E a simpática senhora respondeu, antes de dar uma gargalhada: “Deus me livre, Doutor! Não quero nem saber dele... Mas se o senhor me der o dinheiro da passagem, eu quero!”. Todos nos divertimos, a audiência prosseguiu e percebi que de certa subestimei a esperteza daquela simpática idosa...
         Mas como eu ia dizendo, o Direito de Família às vezes gera situações tensas. Até agora a que mais me marcou esteve relacionada com uma discussão sobre regulamentação de visitas.
         O pai tinha acabado de deixar a prisão por causa do homicídio da mãe da criança. O garoto, agora com cerca de oito anos, enquanto tinha apenas dois tinha sido testemunha presencial do estrangulamento da mãe pelo próprio pai. Enquanto o genitor estava no cárcere, foi criado por uma tia materna. Analisando o caso em conjunto com o Ministério Público, concluímos que deveríamos incentivar a reaproximação entre pai e filho. Não havia registro de maus-tratos contra a criança. A postura do pai indicava que o crime, que decorreu de uma acirrada discussão, tinha sido um fato isolado na sua vida. A impressão que ele passava era a de que estava arrependido e tencionava recuperar o tempo perdido. Já colocado no mercado de trabalho, ele alegava que não mediria esforços para retomar a convivência. Com muito jeito, expliquei à tia materna do garoto que a reaproximação, pelo menos em tese, seria saudável para o desenvolvimento dele, desde que, evidentemente, a criança estivesse de acordo. Ela, sensatamente, concordou. Não reprimiu o algoz da sua falecida irmã.
         Resolvi, então, consultar aquele cuja opção superaria toda e qualquer decisão judicial que pudesse ser prolatada. Deparei com um menino inteligente, desenvolto e, para a minha felicidade, corintiano (o termo inclusive está previsto no Dicionário Eletrônico Aurélio!). A princípio ele não rechaçou a possibilidade de reaproximação. Justificou, no entanto, que tinha medo. Instado a explicar o seu temor, sentenciou, com a firmeza que muitos adultos não transmitiriam: “Tenho medo dele me matar” (sic)! Sobreveio silêncio geral. Fiquei estupefato, respirei fundo e prossegui aconselhando aquele menino, movido pela esperança de que seu pai estava bem-intencionado e de que a convivência lhe seria útil, pois costumo dizer que mãe, a tia ou a avó podem até substituir o pai em muitas coisas, mas nunca em tudo (e vice-versa).
         Felizmente a audiência terminou com o consentimento do menino para que encontros supervisionados pelo Conselho Tutelar passassem a acontecer semanalmente.
         E percebi, nos olhos daquele ex-presidiário, que o que mais realmente lhe importava era deixar de ser um “ex-pai” e poder resgatar, ainda que gradativamente, a confiança do filho que outrora presenciara o assassinato da própria mãe. O seu calvário apenas tinha começado, mas fiquei feliz porque a oportunidade lhe foi concedida pelo garoto e mesmo por tê-la, enquanto Magistrado, viabilizado, já que a esperança é o combustível da vida.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito de Cafelândia(SP)
(publicado no Correio de Lins de 25/11/2008 e no Getulina Jornal de 16/11/2008)