Quem sou eu

Juiz de Direito desde 2007. Titular do Juizado Especial Cível de Lins(SP). Ex-Professor do Curso de Direito do Unisalesiano em Lins(SP). Ex-delegado de polícia. Motociclista, tatuado e corintiano do "bando de loucos".

2 de set. de 2012

“Investigação de gente grande”

“Investigação de gente grande”
         Tenho observado que os vários delitos conexos que se originam de atos infracionais têm sido os mais trabalhosos no que tange à apuração pela Polícia Civil, principalmente nas pequenas cidades.
         A princípio, devo esclarecer que o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – denomina “ato infracional” toda conduta praticada por criança ou adolescente que esteja descrita como crime ou contravenção penal. É um equívoco, portanto, dizer que criança não pratica ato infracional, sendo certo que somente as conseqüências legais é que se diferenciam das aplicáveis às faltas cometidas pelos adolescentes, ou seja, os que já completaram 12 anos.
         Voltando ao tema principal, o caso é que os tais atos infracionais normalmente se desdobram em vários outros delitos, desta vez praticados por maiores de 18 anos, que demandam extensa investigação.
         Para demonstrar minha conclusão tomo por base os corriqueiros furtos. Normalmente as subtrações são praticadas por grupos de adolescentes (sentem-se mais seguros quando acompanhados ou prática conjunta é tido como “mais divertida”) que, ato contínuo, dividem entre si os objetos furtados. Diferentemente dos adultos, que muitas vezes furtam exatamente aquilo que querem para si, os adolescente muitas vezes subtraem coisas que não estão diretamente na sua órbita de interesse. Em conseqüência, logo em seguida cada integrante do grupo repassa a terceiros aquilo que conseguiu, a fim de que o proveito obtido com o repasse sirva de degrau para a aquisição de algo mais “interessante” e que, quase nunca, pode ser rotulado como de necessidade primária (drogas, roupas de grife etc.). O resultado é a multiplicação de investigados e a grande dificuldade na recuperação total do que foi furtado.
         O ECA determina, no artigo 177, que os elementos de convicção da prática de ato infracional devam ser encaminhados pelo Delegado ao Promotor de Justiça para as providências cabíveis. O artigo 179 estabelece que o Promotor deverá proceder à imediata e informal oitiva do infrator, dos pais ou responsável, da vítima e das testemunhas.
         Talvez com base nos tais dispositivos alguns Delegados, “data maxima venia”, se precipitam quando remetem ao Promotor, mesmo diante de desdobramentos de atos infracionais como acima exemplificado, apenas os documentos confeccionados no início da investigação.
         Sem prejuízo das regras do ECA e em que pese o Estatuto, até mesmo para reduzir o contato do adolescente com a Polícia, não ter feito referência expressa ao inquérito policial, em muitos casos a comunicação ao Promotor deve ser retardada e feita somente ao final das diligências. Isso porque no citado exemplo necessariamente haverá inquérito policial para apurar as responsabilidades dos receptadores dos objetos subtraídos pelos adolescentes, ou mesmo a sua participação no furto. Em decorrência, somente no final do inquérito é que haverá detalhadas informações sobre a participação de cada um, seja adolescente, seja maior de 18 anos.
         Desta forma, com o mero recebimento do boletim de ocorrência ou do relatório de investigação que aponte ato infracional, o Promotor iniciará uma “investigação paralela” à que obrigatoriamente se desenvolverá na Polícia. Além de não dispor do necessário aparelhamento (agentes, viaturas etc.), o Promotor, diante da sobrecarga de trabalho, poderá não atingir o nível de detalhamento necessário para aferir com profundidade a personalidade do infrator e, assim, propor a medida mais adequada ao caso. A “dupla investigação”, diga-se de passagem, poderá provocar até mesmo conclusões contraditórias em face das diferenças nos conjuntos probatórios, além do evidente desgaste da vítima e das testemunhas. É possível que a vítima tenha de dizer as mesmas coisas na Delegacia e na Promotoria, sem prejuízo da oitiva no futuro processo criminal contra os maiores receptadores, o que aumentará o seu dissabor. Tornar-se-á “vítima duas vezes” e na próxima vez poderá até omitir a comunicação do fato para não sofrer prejuízos referentes à falta ao trabalho etc.
         É por isso que costumo, diante de casos desta natureza, evidentemente quando não há adolescente custodiado, instaurar inquérito policial para apuração conjunta do ato infracional e dos crimes relacionados praticados por maiores de 18 anos. A solução se fundamenta na complexidade da investigação e não afronta qualquer garantia constitucional. E o faço com base no magistério do saudoso Paulo Lúcio Nogueira (Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Ed. Saraiva, 3ª ed., 1996, p. 162), jurista consagrado que tive o prazer de ter como professor na Faculdade de Direito de Marília.
         Assim agindo, o Delegado oferecerá ao Promotor, quando da análise de todas as provas colhidas no inquérito (oitivas, perícias, relatórios de investigação etc.), a possibilidade de, convencido da responsabilidade de todos os investigados, denunciar os imputáveis (maiores de 18 anos) e solicitar ao Juízo a extração das cópias necessárias à formação do expediente próprio para discussão da medida pertinente às faltas dos adolescentes.
         Como à Polícia não incumbe apenas a tarefa de provar a culpa, mas de buscar a verdade, é possível, ainda, que a análise total do inquérito revele elemento favorável que não integrava a comunicação inicial sobre o ato infracional. Desta forma, se fará justiça inclusive pela possibilidade de consideração desse elemento favorável, por exemplo, indicativo da não-participação de determinado adolescente a princípio considerado como suspeito, em favor daquele que, de outra forma, poderia ser lesado pela injusta e precipitada rotulação de infrator. Com base no inquérito o Promotor terá condições de requerer o arquivamento do caso em relação ao adolescente inocente, o que às vezes não seria possível diante da mera análise do boletim inicialmente analisado. Pode ser mais vantajoso para o adolescente se submeter a uma “investigação de gente grande”...
         As regras do Estatuto, portanto, estão a merecer interpretação teleológica por parte da Autoridade Policial, que deve adequá-las a cada caso e aos preceitos constitucionais.
         Não resta dúvida, isso posto, sobre a conveniência e a legitimidade da utilização do inquérito policial, respeitada a condição peculiar do adolescente de pessoa em desenvolvimento, também para a apuração de atos infracionais, como forma de promoção da justiça.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Delegado de Polícia de Guarantã(SP)
Responsável pelas Delegacias de Pongaí e de Uru
(publicado no Correio de Lins de 9/5/2006 e no Getulina Jornal de 30/4/2006)